Redação

Magistrados afirmam falsamente que a entidade desaconselhou o uso de lockdown contra o coronavírus por falta de comprovação sobre sua eficácia.

Dois juízes de cidades do interior paulista usaram, nos últimos dias, uma informação falsa atribuída à Organização Mundial da Saúde (OMS) para fundamentar decisões contrárias a medidas sanitárias restritivas impostas por decretos municipais e estaduais. Nos dois casos, os magistrados afirmam que a OMS apelou para que governantes não usem o lockdown como medida de prevenção à disseminação do vírus que provoca a Covid-19 e que não há comprovação sobre a eficácia da medida. A organização, contudo, nunca fez tal apelo.

A decisão mais recente foi tomada no domingo passado (28/3) pelo juiz Augusto Bruno Mandelli, que atendia ao plantão judicial na cidade de Avaré. O magistrado questiona o consenso científico que aponta o distanciamento social como uma forma eficaz de se evitar o contágio. Para ele, não há prova de que restringir determinadas atividades ajuda a conter a disseminação do vírus. Ele afirma, na decisão, que as restrições não apresentaram qualquer resultado positivo até hoje. “A História apresenta vários exemplos de pandemias. A única exceção presente é a forma como se está lidando com ela, com medidas nunca antes experimentadas e que não contam com embasamento científico algum”, diz.

Ao declarar ilegal decreto municipal de Avaré que proibiu a venda de bebidas alcoólicas em determinado período, o juiz Bruno Mandelli afirmou que “há meses a OMS se pronunciou contra as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos (lockdown — ainda que disfarçado de quarentena) que, por sua vez, jamais justificaram, a não ser por gráficos e números imprecisos e sem qualquer base científica, suas providências”. A íntegra da decisão pode ser lida aqui.

Argumentos semelhantes foram usados pelo juiz Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, de Ribeirão Preto. O magistrado afirmou que estudos demonstram a “ineficácia de medidas como as estabelecidas nos decretos governamentais” ou “do chamado lockdown” na contenção da pandemia. “E a Organização Mundial da Saúde já apelou aos governantes para que deixem de usar o lockdown, medida que ‘tem apenas uma consequência que você nunca deve menosprezar: torna os pobres muito mais pobres’. Qual, então, o respaldo do decreto governamental, no qual se fundou a prisão do indiciado, diante da Constituição da República, da decisão do Supremo Tribunal Federal pertinente ao tema, das orientações da Organização Mundial da Saúde e da ciência?”, questiona o juiz.

Na decisão (leia aqui a íntegra), ele determinou a soltura de um comerciante preso por descumprir de forma reiterada as determinações impostas pelas medidas sanitárias e por incitar outros comerciantes a fazer o mesmo. Para justificar a afirmação de que a OMS fez apelos contra lockdown, o magistrado Serra Azul Guimarães faz referência a uma notícia publicada no site Frontliner, desmentida por diversas agências de checagem. O link indicado pelo juiz para dar sustentação à sua afirmação sobre a OMS não está mais no ar.

No último dia 3 de março, o blog Estadão Verifica, do jornal O Estado de S.Paulo, checou as informações publicadas pelo site indicado pelo juiz de Ribeirão Preto. De acordo com o jornal, o texto é enganoso e “distorce a fala de David Nabarro, emissário especial da Organização Mundial da Saúde, durante entrevista para a revista britânica The Spectator”. A Lupa, agência de checagem da revista piauí, também publicou texto desmentindo informação atribuída à OMS de que a Suécia seria um bom exemplo a outros países por não ter realizado lockdown.

Em texto publicado em seu site no dia 31 de dezembro de 2020, a OMS fala sobre imunidade de rebanho, lockdown e Covid-19 — clique aqui para ler a íntegra, em inglês. O texto esclarece a posição da instituição sobre o lockdown. “Medidas de distanciamento físico em larga escala e de restrições a movimentação, muitas vezes chamadas de ‘lockdowns’, podem retardar a transmissão do Covid-19 ao limitar o contato entre as pessoas”. A OMS ainda afirma que “alguns países não tiveram escolha a não ser emitir pedidos de permanência em casa e outras medidas”.

A entidade internacional alerta, sim, para o fato de que medidas restritivas podem ter impacto profundo sobre as pessoas ao paralisar atividades econômicas. Mostra especial preocupação com grupos historicamente desfavorecidos, como pessoas em situação de pobreza, migrantes e refugiados. Mas em momento algum do texto a OMS afirma que “a única consequência” de medidas restritivas é tornar os pobres mais pobres, tampouco se pronunciou de forma frontalmente contrária à adoção de medidas que impõem restrições e distanciamento social.

Isso não evitou, contudo, que os argumentos falsos fossem usados como parte da fundamentação dos juízes para decidir. Para o advogado constitucionalista Lenio Streck, jurista colunista da ConJur, é evidente que um magistrado não pode usar material mentiroso na fundamentação de uma decisão.

“Trata-se no mínimo de uma atitude imprudente, já que há informações fidedignas à disposição sobre o tema versado nas sentenças. A ninguém é dado o direito de ser negacionista em tempos de ciência e quando há site oficial da OMS. Tendo em vista que a decisão pode gerar prejuízos à saúde pública, o juiz poderia responder a processo. É como se o juiz decidisse prender uma pessoa com base no Código Penal do Império. Ou invocar a Constituição de 1969 para dizer que uma lei é inconstitucional e, assim, deixar de a aplicar”, afirmou Streck.

A pedido da ConJur, o professor examinou as decisões judiciais. No caso de Avaré, Streck percebeu que o juiz decidiu com base na sua opinião pessoal sobre o assunto: “Ele chega a elogiar a parte que ingressou com a ação. Contamina a decisão com sua apreciação moral. Porém, o uso dos dados falsos não são o ponto fundamental da decisão. Os dados falsos não foram a condição de decidir. Há o uso de outros argumentos. Parece claro que ele primeiro decidiu a favor do comerciante e depois buscou uma justificação. Atirou a flecha e depois pintou o alvo”.

Diferente, na avaliação do professor, é a decisão do juiz de Ribeirão Preto. “É mais grave porque as informações não verdadeiras parecem se constituir em condição de seu raciocínio. Se no primeiro caso há outros fundamentos, no segundo as informações são o ponto de apoio. Ele invoca a decisão do STF e, a partir dela, sob pretexto de a cumprir, usa os ‘dados da OMS’.”

Para a advogada criminalista Maria Jamile José, em tese, a conduta de um juiz que usa em sua decisão informações falsas facilmente verificáveis ou faz afirmações que sabe — ou deveria saber — serem enganosas, pode ser enquadrada em dois dispositivos da Lei Orgânica da Magistratura (Loman): artigos 41 e 49.

O artigo 41 fixa que o magistrado não pode ser punido por suas opiniões ou pelo teor de suas decisões, salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem. De acordo com Jamile José, “há a possibilidade de processo administrativo porque o uso de informações falsas em decisões pode ser tido como caso de impropriedade”. E o artigo 49 da Loman estabelece que o juiz responderá por perdas e danos quando, “no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude”.

Na esfera penal, a advogada entende que não há punição possível. Jamile José rememora que durante a tramitação da lei conta o abuso de autoridade (Lei 13.869/2019) houve a preocupação de se enquadrar atos de abuso sem abrir brechas para a criação de crime de hermenêutica. Assim, o parágrafo 2° no artigo 1° da lei é expresso: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Logo, na visão de Jamile, não cabe responsabilização penal nestes casos.

O advogado Marcelo Bessa, membro do Instituto de Garantias Penais (IGP), entende que o uso deliberado de informação ou fato falso para fundamentar decisão judicial pode configurar violação aos deveres do artigo 35 da Loman — mais especificamente os incisos I e VIII. “É que rompe com o dever de ‘serenidade e exatidão’ que qualquer magistrado deve ter na sua atividade judicante. Configura também, a meu juízo e em tese, violação ao dever de ‘manter conduta irrepreensível na vida pública e particular’, vez que traduz conduta reprovável por disseminar, em ato de ofício, notícias falsas ou deturpadas (fake news)”.

Bessa ressalta que a fundamentação de decisões, ou seja, a prática de atos oficiais no exercício da função jurisdicional, não pode se confundir com exercício da liberdade de opinião ou o direito de ver o mundo como bem entender. Nas decisões, os juízes falam como Estado. Logo, têm o dever de verificar a exatidão dos dados veiculados em seus atos oficiais.

Já o criminalista Fábio Tofic Simantob acredita que o exame das decisões passa por um debate mais amplo, sobre a qualidade dos processos e das próprias sentenças judiciais. “O erro é algo muito mais comum do que se imagina. Nestes casos sobre a OMS, é evidente e poderia ser evitado com a consulta de fontes que estão ao alcance de alguns cliques. Mas não é raro verificar, em decisões, equívocos de outra ordem, menos evidentes para quem não faz parte das ações, mas nem por isso menos graves”.

Tofic ressalta que essas hipóteses de erro, ainda que o magistrado não haja com dolo, podem causar prejuízos ou lesões a direitos. E, quando causam, não há mecanismos realmente efetivos para reparar quem foi prejudicado. O advogado aponta que apesar de regras e instrumentos até existirem — como as ações regressivas — a jurisprudência consolidada não dá guarida a elas e, talvez por isso, são muito pouco usadas. Por isso, defende uma nova visão do sistema. Erros não precisariam necessariamente ser punidos com censura ou advertência, mas, a partir de critérios bastante objetivos, seriam inscritos na ficha do juiz e passariam a ser considerados, por exemplo, para fins de promoção.

Para ele, é preciso ampliar o debate porque, por um lado, não se pode tolher a prerrogativa de livre convencimento do juiz. Em outras palavras, juízes não podem ter receio de tomas decisões. Por outro lado, a liberdade e a autonomia para decidir não são cheques em branco para que magistrados façam constar na decisão aquilo que lhes vier à cabeça. De acordo com o criminalista, o juiz de Direito não pode agir como se jurado fosse. “É claro que ninguém, para tomar decisões, estará imune a seus princípios, sua fé, sua visão de mundo. Mas o magistrado tem de tentar se afastar disso em seus julgamentos.”

O advogado anota que que, quando passa em um concurso para a magistratura, o juiz não recebe uma credencial para falar sobre todos os temas da vida com mais autoridade do que os outros: “O juiz é investido do cargo para aplicar o Direito, que é o que faz melhor do que as outras pessoas. Mas em relação a outras áreas do conhecimento, áreas científicas, o magistrado é um cidadão como qualquer outro. Por isso, quando pode se socorrer de especialistas, de áreas técnicas próprias, é dever dele fazer isso”.

As análises sobre as decisões feitas pelos especialistas a pedido da ConJur não dizem respeito ao erro ou ao acerto delas no mérito. Limitam-se exclusivamente ao fato de os juízes, em nome do Estado, lançarem mão de argumentos sabidamente falsos para justificá-las. Outras decisões recentes revelam que, mesmo para derrubar medidas sanitárias restritivas, não é necessário fazer uso de argumentos falaciosos ou distorcer premissas científicas.

É o caso do Habeas Corpus preventivo e coletivo deferido pelo juiz Wagner Roby Gidaro, em 26 de março, a pedido da Defensoria Pública de São Paulo. O magistrado suspendeu a aplicação de parte do decreto do prefeito da cidade de Campinas, que determinou toque de recolher sob pena de detenção das pessoas que não o respeitassem, com determinação expressa de abordagem feita pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal.

Na decisão, o juiz Gidaro ressalta que já reconheceu, em outros casos, a validade de medidas que restringem o funcionamento de estabelecimentos comerciais que não são considerados essenciais. “Primeiro porque não é possível a intervenção jurisdicional em medidas discricionárias pela intangibilidade do mérito administrativo, desde que respeitados os princípios norteadores do direito administrativo. Depois, porque cabe exclusivamente à autoridade administrativa a fixação dos serviços ditos essenciais e, por fim, irremediável e iniludível a necessidade de políticas públicas de contenção da doença.”

Ainda de acordo com o magistrado, não se pode fechar os olhos para a necessidade de medidas restritivas para conter a disseminação do vírus, “mormente em situações graves como as atuais em que o número de mortos ultrapassa 300 mil pessoas no Brasil”. Tampouco, para ele, “se nega a autoridade dos órgãos de cúpula das estruturas administrativas (em qualquer âmbito) de buscar providências e políticas públicas para conter o avanço da doença”.

Mas no caso do toque de recolher sob pena de prisão, o juiz entendeu que a administração pública municipal extrapolou suas atribuições e feriu a Constituição Federal. Em uma decisão de dez páginas, o magistrado impôs limites ao poder restritivo do prefeito sem que fosse necessário, para isso, fazer grandes colóquios cheios de expressões vagas e com doses de desinformação. Decisão judicial não é, afinal, lugar de fazer proselitismo político. Houve recurso e o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a decisão de primeira instância. A Defensoria interpôs agravo e o TJ paulista ainda discutirá a questão.

Há outros exemplos. A sobriedade usada nos argumentos frente à pandemia que se enxerga na decisão do juiz de Campinas, também se revela na liminar deferida pelo juiz Antonio Carlos Martins, de Praia Grande. O magistrado concedeu liminar para garantir a um advogado o direito de circular pela cidade. Mas, para isso, não se valeu de quaisquer informações falsas.

O juiz louva o esforço da prefeitura de Praia Grande e das demais cidades da Baixada Santista de impor medidas para restringir a circulação do vírus que causa a Covid-19. Mas anota que há direitos que não podem ser restringidos, como o dos advogados de circular e exercer seu ofício: “Apesar dos esforços e melhores intenções da Autoridade impetrada, nem estas autorizam a invasão a direitos constitucionalmente estabelecidos, como o direito ao trabalho, tanto quanto o de ir e vir , os quais, não por acaso, estão positivados na Constituição Federal, respectivamente, em seus incisos XIII e XV do artigo 5º, dispositivo que inaugura o Título II da Carta Maior, que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, e se fundamentais são, não podem ser cassados por via oblíqua, mesmo que pautada a cassação no combate à disseminação do vírus”.

ConJur procurou os juízes de Avaré e de Ribeirão Preto para ouvi-los sobre os motivos que os levaram a usar informações falsas atribuídas à OMS na fundamentação de suas decisões. Por meio da assessoria de imprensa do TJ de São Paulo, os magistrados agradeceram o contato, mas informaram que não se manifestariam sobre processos em andamento por impedimento imposto pela Loman: “Art. 36. É vedado ao magistrado: II — manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.


Fonte: ConJur