Por Carlos Mariano –
Ao analisar as escolas de samba pela perspectiva de sua história social, é possível constatar que elas são fruto da luta do povo pobre da década de 1920 (Primeira República), excluído, sobremaneira, de moradia. Foi nessa realidade que se formaram as nossas primeiras favelas, que, na sequência, formariam também nossas escolas de samba. Nesse período, assistimos emergirem os barracos na favela da Mangueira, do Salgueiro e da Serrinha. Localidades que originaram três das mais tradicionais escolas de samba do Carnaval carioca: Estação Primeira de Mangueira, Acadêmicos do Salgueiro e Império Serrano.
Estas favelas foram constituídas a partir da chegada de imigrantes. Seus moradores, em sua grande maioria, eram negros oriundos do Vale do Paraíba, Minas Gerais e do Espírito Santo. É desse tecido social que se originaram as agremiações carnavalescas que democratizaram o elitista Carnaval carioca. É deles – e para eles – que nascem os cordões, blocos, ranchos e as próprias escolas de samba.
Mas, essa trajetória de luta por moradia e afirmação cultural negra foi marcada por perseguição e intolerância contra as favelas que cresciam motivadas por uma imigração galopante e por um urbanismo excludente que concentrava seus investimentos nas áreas ricas da cidade e expulsava do “progresso” os bairros e favelas dos subúrbios populares.
Na década de 1930, as escolas de samba seguem o fluxo da história, porém, com os ventos da mudança, trazidos pela chamada Revolução, liderada por Getúlio Vargas, percebem que devem participar da sociedade montando suas estratégias de negociação. Vargas propõe uma nova forma de Estado brasileiro, a qual pudesse constituir uma identidade nacional que desse a ideia de um Brasil unido, mesmo com tantas diferenças entre suas classes sociais. Tal proposta de cima para baixo visava controlar as camadas mais baixas, tirando delas a autonomia comunitária e capacidade de liderança. Ao mesmo tempo, ao valorizar e inserir a cultura popular no ideário de uma cultura nacional, os varguistas ofertavam uma oportunidade de ascensão e legitimidade à cultura popular negra, que até aquele momento era marginalizada pelas elites dirigentes da Primeira República, mesmo que esta ascensão e legitimidade significassem perda de autonomia e autenticidade.
A partir da Era Vargas, a escola de samba passou a compartilhar com o Estado uma identidade que acabou lhe conferindo um papel de dependência. Isto, principalmente, no que se referente à questão da subvenção pública para realizar seus desfiles. Assim, as escolas de samba passaram a ter uma atuação de negociação política intensa com os governos municipais, estaduais e federal. Essa inter-relação resultou em um afastamento da escola de samba com sua comunidade, com o comércio que, no início da sua trajetória, era quem ajudava as agremiações com o chamado “livro de ouro”. Era uma espécie de caixinha de arrecadação de dinheiro para as escolas levantar fundos e criar seus desfiles no Carnaval.
Dentro desta realidade de aproximação e dependência do Estado, as eleições municipais, acabam por gerar uma tensão no mundo do samba, pois é hora de sair a campo para buscar o melhor candidato para a escola.
Hoje, com o estabelecimento da “indústria do carnaval”, os interesses políticos entre as instituições carnavalescas e os setores da política aumentaram e foram além do debate da subvenção dada pela prefeitura para custear a festa das escolas na avenida. Em 2006, durante a gestão do, então, prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, foi construída a Cidade do Samba. Destinado às escolas de samba do chamado grupo Especial, o local serviria para que as principais agremiações do Carnaval materializassem suas fantasias e alegorias. Tal espaço é uma conquista para as escolas de samba, pois, devido à grandiosidade dos preparativos da festa e o número enorme de trabalhadores envolvidos, a construção de um local gigantesco para abrigar a “fábrica de sonhos e fantasias”, proporcionada pelas grandes escolas do Rio de Janeiro, era sim, algo necessário. Mas, a partir daí, abriu-se ainda mais um vínculo e uma articulação de interesses políticos entre candidatos e escolas de samba. Além disso, as outras agremiações dos grupos intermediários do Rio de Janeiro passaram também a reivindicar a construção da Cidade do Samba 2, destinadas às escolas dos grupos de acesso. E aí, vários políticos começaram a invadir quadras, aprenderam a sambar e prometer mundos e fundos em troca de voto.
Foi nesse compasso que, nas últimas eleições para prefeito do Rio de Janeiro, em 2016, a maioria das escolas de samba optou em votar no segundo turno no candidato conservador e evangélico, Marcelo Crivella. Crivella disputou, na ocasião, o segundo turno contra outro Marcelo, o Freixo, candidato da chamada “esquerda”. Na época das eleições, veio à tona uma colocação de Marcelo Freixo, feita em 2013 que, na sua opinião, para receber subvenção pública as escolas de samba teriam que ter uma contrapartida social. Freixo criticou a liberação de verba pública para patrocinar, por exemplo, um enredo que falava da “Ilha de Caras” – enredo este feito pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. A diretoria do Salgueiro se manifestou, obviamente, contra a declaração do candidato do PSOL. No segundo turno, a declaração dele voltou a fazer parte do debate. Conclusão: as escolas de samba formaram um bloco de apoio ao adversário de Freixo, Marcelo Crivella – mesmo este sendo pastor evangélico publicamente antipático à cultura popular e negra e ao Carnaval. Assim, ganhou o apoio maciço das escolas de samba e virou prefeito.
Na sua gestão, Crivella teve vários embates com as agremiações. Ele foi acusado de má vontade em relação ao Carnaval e chegou a ser declarado inimigo do samba.
Hoje, estamos diante de mais uma nova eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro e o candidato do DEM, Eduardo Paes, recebeu, recentemente pelas redes sociais, apoio de boa parcela das escolas de samba do Rio de Janeiro, inclusive daquelas fora do município carioca. O que causa espanto é que a eleição está ainda no primeiro turno e existem mais 13 candidatos ao cargo. Mas, mesmo assim, grande parte das escolas abraçou explicitamente a candidatura de Paes.
Essa atitude bizarra das escolas de samba, que estão localizadas, na sua grande maioria, nas zonas menos favorecidas, nos faz refletir sobre como foi a gestão Paes. Com o pretexto de fazer os grandes eventos, Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas do Rio de janeiro em 2016, promoveu uma grande onda de remoção do povo pobre na cidade. Foram removidas 67.000 famílias em nome da “modernização”. Um número maior que os dos governos de Carlos Lacerda (1961-1965) e as conhecidas reformas de Pereira Passos (1902-1906). Esses dados estão no livro “remoções no Rio de Janeiro Olímpico”, dos pesquisadores Lucas Fauhaber e Lena Azevedo. Paes deixou o Rio uma cidade ainda mais desigual, partida socialmente e mais cara para o pobre de baixa renda. Será que aquele sambista que sai na ala de bateria, o empurrador de carro alegórico, o passista se veria representado na candidatura de Paes? Essa decisão tomada pelas escolas de samba nos parece muito mais ser explicada pela forma como essas agremiações são administradas politicamente. De cima para baixo, por pessoas geralmente fora da comunidade que, por meio de estratégias políticas, assumem os postos de direção e se tornam verdadeiros “donos” dessas agremiações.
As escolas de samba, depois de apoiarem o bispo da Universal, juntam-se agora, em sua grande maioria, em torno da candidatura do conservador Eduardo Paes, que tenta seu terceiro mandato.
Paes construiu, ao longo da sua carreira, uma imagem de político sambista feita por puro marketing vazio. Costurou muito bem uma relação política de boa vizinhança com boa parte dos dirigentes das escolas de samba e, também, com os gestores das ligas das escolas (LIESA, LIESB e LIERJ). Com essa aliança sedimentada ao longo dos seus mandatos, ele fez esta imagem de “parceiro” das escolas de samba. Paes construiu a imagem de ser o candidato natural do mundo do samba. Mas, de concreto mesmo, para a vida do sambista no seu dia a dia, Paes fez muito pouco. Pelo contrário, fez a cidade ficar mais difícil de viver para seus moradores pobres.
Sambista de verdade é o ano todo do samba, mas, sobretudo, pertence a uma classe social. Portanto, cabe ao eleitor se lembrar disso nas suas estratégias sociais e relações políticas na hora de votar. Nem sempre o político que o presidente da sua escola de samba apoia tem a real compreensão ou comprometimento com a realidade de classe social daquela comunidade.
O curioso é que um candidato – ou candidata – poderia estar mais perto do que pensam. Nesse primeiro turno das eleições, entre os 12 esquecidos, há duas candidatas negras, vindas das camadas faveladas, com as mesmas origens das nossas escolas de samba: Benedita da Silva, experiente política do PT, com serviços prestados à política nacional, e a novata Renata Souza, do PSOL, jornalista, feminista e primeira mulher negra presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Diante desse panorama, lembro-me do refrão de um clássico do saudoso “sociólogo” das favelas, o bravo Bezerra da Silva, com o “Candidato Caô Caô.”
Meu irmão se liga
No que eu vou lhe dizer
Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda a polícia lhe bater.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval e articulista e comentarista do Blog Na Cadência da Bateria, desde 2006.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com
MAZOLA
Related posts
OPINIÃO – Vida pós-crise: como será?
DO DILÚVIO – por Miranda Sá
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo