Por Lincoln Penna –
Em 2016 lancei o livro República e Insurgências, pela editora Autografia. Ele contém um conjunto de episódios dos mais significativos da história contemporânea brasileira, a começar com a Proclamação do regime republicano. Este livro foi escrito a partir dos eventos de junho de 2013, que sacudiram as principais cidades do país. Manifestações difusas do ponto de vista das pautas, cada qual mais díspares a representar uma verdadeira catarse coletiva, levou-me a reforçar a denominação que emprestei ao título, uma vez que todos os fatos registrados apresentavam um dado comum, pois eram todos contra a ordem.
E mesmo difusa e bem diversificadas, aquelas manifestações que encheram as grandes avenidas e praças das metrópoles brasileiras tinham em comum esse traço, ou seja, eram contra e a favor de pleitos que punham em cheque as autoridades públicas, mesmo as que se rebelavam contra a própria democracia. Assim, insurgentes sãos todos que se opõem à situação vigente e aos governantes em função.
Naqueles momentos não poderia imaginar que cinco anos depois, o eleitor brasileiro instado pela insatisfação por diversas razões fosse escolher como seu presidente um capitão, posto na reserva em razão de uma punição abrandada que resultaria em sua ida para o legislativo, inicialmente eleito vereador e depois deputado federal. E eleito para coibir e punir corruptos e corruptores e com isso restaurar a credibilidade na política, quando na condição de representante do povo sua prática fora inócua e marcada por um profundo desprezo pela democracia.
Mas, ainda assim, o capitão da reserva Bolsonaro foi e é um insurgente. Do mal, por certo, uma vez que despreza a ordem democrática da qual tem se beneficiado eleitoralmente e achincalha os demais poderes e as entidades e instituições representativas do povo e da República. Todos os seus gestos têm sido abonados pelos militares, numa conivência que macula a tradição das Forças Armadas permanentemente sujeitas aos destemperos de um ex-oficial subalterno que saiu pela porta dos fundos da corporação, julgado que foi pelas instâncias superiores.
Não poderia imaginar que a subversão da ordem democrática republicana chegasse ao nível de ter como principal agente o próprio presidente da República, comandante em chefe das FFAA, cujos componentes a ele devem acatamento até certos limites, porque ordens e atitudes contrárias aos interesses do país não devem ser cumpridas, assim reza a tradição corporativa militar. Afinal, por razões de suspeições somadas a interesses estratégicos norte-americanos, o presidente João Goulart foi derrubado. E em 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu um impeachment tão rigoroso a ponto de ser qualificado por muitos, e com razão, como um golpe parlamentar com respaldo jurídico, mas de qualquer forma de natureza política e de cunho claramente ideológico, sem que se entre nos problemas reais de sua gestão presidencial.
Ainda bem que a Constituição de 1988 oferece uma excelente alternativa para que o poder seja realmente do povo, ao sentenciar nos seus Princípios Fundamentais, que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Logo, os legisladores constituintes abriram a possibilidade de o povo tomar para si a iniciativa de se fazer diretamente representado, e através de sua capacidade organizativa influir decididamente nos rumos que venham atender às suas expectativas. A força do poder popular é capaz de substituir a inércia dos poderes institucionais e, sobretudo, as práticas das velhas conciliações que emperravam as medidas necessárias para a sua real emancipação.
A insurgência que precisa ser assumida diante desse panorama nacional, que sob certa forma independe do que venha a acontecer no resto do mundo e em particular nos resultados das eleições norte-americanas, é a insurgência da rejeição ao retrocesso. Nenhum recuo no que diz respeito às conquistas que incompletas ou não os atuais representantes do governo atual queiram retirar do povo brasileiro. Não há modernidade que justifique perdas conquistadas com o esforço de muitas gerações.
E enquanto não alcançarmos uma correlação de forças que resulte na derrota desse desgoverno, unamo-nos de mãos dadas para resistir às imposições contrárias aos interessas nacionais e populares, nem que tenhamos mais à frente que adotar a desobediência civil, uma vez organizados, unidos, e empenhados na derrocada definitiva do espólio deixado pela ditadura militar e empresarial.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Universo.
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