Por Carlos Mariano

Texto novo do Professor Mariano, que apresenta o grande samba dos parceiros aqui do Na Cadência da Bateria para a disputa na Escola de Samba, Império Serrano.

Mesmo sem data para a realização do Carnaval 2021 devido à pandemia da covid-19, o glorioso Império Serrano, que atualmente desfila no grupo de acesso A, realizou no sábado (24/10), uma live para apresentar os 31 sambas que concorrerem ao título de hino da escola. O Menino de 47 tem como enredo o tema “Mangangá”, do carnavalesco Leandro Vieira. Ele contará a saga histórica do capoeirista do recôncavo baiano Manoel Henrique Pereira, que ficou conhecido como Besouro Mangangá.

No geral, a safra dos sambas concorrentes do Império está num bom nível contudo, nesse artigo, quero falar especificamente do samba número 5, composto pelo quarteto formado pelos meus amigos e parceiros, Eduardo Poeta, compositor talentoso e experiente que já ganhou disputa de samba na tradicional Acadêmicos do Cubango, e os novatos e inspirados, André Gustavo, Cícero Simões e Leozinho Ribeiro.

Hoje, todos nós, sabemos como é difícil incluir um samba-enredo numa concorrência em uma grande escola de samba. Não me refiro às características artísticas, mas, especialmente, ao fator econômico. O custo para gravar e divulgar o samba na disputa é muito alto, fator que afasta o compositor pobre e talentoso da competição. O resultado é uma elitização e, por que não dizer, um branqueamento do samba-enredo nas últimas décadas. Afinal, sabemos que, na sociedade desigual brasileira, a renda de um trabalhador negro é bem menor do que a dos brancos.

Mesmo com esta dura realidade econômica e desigualdade social, esse quarteto de compositores negros – formado por um trabalhador assalariado, dois funcionários públicos e um estudante, – que tenho a honra de ser amigo, não desistiu da sua utopia. Inspirado na valentia e ousadia do homenageado no enredo do Império, o valente Besouro Mangangá, o quarteto se uniu e, com o apoio dos amigos, conseguiu juntar os recursos necessários para materializar esse valoroso e talentoso trabalho artístico. Foi formada uma rede de solidariedade virtual, que contou com uma rifa de um belo fone de ouvido. Sem mecenas e nem escritórios, esses compositores conseguiram materializar o sonho de entrar na disputa que é sempre acirrada.

Cumprida essa difícil etapa financeira, foi no excelente samba que os nobres amigos fizeram bonito e tiveram destaque. O samba, além de ter dois fortes refrãos e ritmo contagiante, conta a história do lendário herói da região do Recôncavo Baiano, Besouro Mangangá, de forma bela e poética. O refrão principal inicia falando da morte do mítico homenageado (onde o uso da licença poética fez com que os compositores o levassem a morar no Orum, o mundo invisível, segundo as tradições iorubanas, habitado por entidades e encantados) cujo corpo fechado fora aberto por um golpe do facão de ticum, madeira enfeitiçada capaz de quebrar encantamentos. Mas, emenda falando de sua ressurreição nos braços da Serrinha, que o traz de volta à vida por meio do desfile do Império Serrano.

Nessa trajetória, nos convida ao alvorecer à beira-mar (lembrando que em vida, Besouro fora companheiro de Ogum, em quem se referenciava). Alvorecer do dia, que traz o nascer do sol, bem como o alvorecer dessa nova vida do personagem que, ressuscitado, vai logo comemorar numa roda de capoeira. Assim, temos a descrição de uma roda de capoeira da qual Besouro participa, não sem antes fazer a tradicional saudação aos pés do coro de berimbau (que pode ser dividido em três tipos: gunda, médio e viola).

Lembra ainda as raízes quilombola, (símbolo de luta por liberdade, de oposição à opressão, de um modo de vida alternativo e coletivo) do jogo, com sua costumeira malandragem, ginga, mandinga e golpes mortais.

Entra o segundo refrão com toques de capoeira que puxam o jogo e saúdam a volta do maior de todos os capoeiristas, mestres dos mestres da arte negra. Dessa forma, ele renasce na lapinha, onde o famoso canto diz que ele deveria ser enterrado quando morresse. E é de lá que dá a benção a seus seguidores, sendo por eles reverenciado, bem como, por todos os que lutam contra o preconceito e a violência da qual é alvo o povo preto, por parte do racismo estrutural e estruturante do modelo de sociedade que vivemos. O samba comemora, então, a RESISTÊNCIA desse povo, palavra que também remete às origens da própria Escola de Samba.
A segunda parte da canção retrata Besouro relembrando momentos de sua vida, a relação com os orixás que o abençoam, guiam e protegem, seu corpo fechado contra todos os tipos de armas, inclusive do fogo, passando pelos ensinamentos de mestre Alípio, sua missão como justiceiro vingador, as lendas a seu respeito (o poder de voar, citado no refrão central, que destaca o voo, símbolo da liberdade) como o poder de se metamorfosear, dentre outras coisas, em bananeira, e de seu momento derradeiro em que, ferido a traição, acaba tendo sua vida ceifada.

Impressiona como o final dessa segunda parte se liga, perfeitamente, ao refrão principal, mostrando que a trajetória trágica do personagem tem início, meio e recomeço, pois um herói nunca morre para sempre: mantém-se presente na memória e na vida daqueles que dão continuidade a sua luta e que, não raro, acabam tendo o mesmo destino.

Portanto, vimos que a letra do samba cumpre bem a função de complementar a sinopse feita pelo carnavalesco Leandro Vieira, mas, ao mesmo tempo, inova em relação à maioria dos sambas concorrentes a hino do Império, na medida em que conta com lirismo e, muita criatividade, a bela e fantástica história de Besouro Mangangá.

O samba também resgata na memória outro clássico do samba-enredo: Iaiá do Cais Dourado, de 1969, da minha querida Vila Isabel, samba de autoria do genial Martinho da Vila, em parceria com Rodolfo de Souza. A aproximação do samba dos meus parceiros com o da Vila se dá por tratarem do tema da capoeira de forma muito similar, principalmente nos quesitos inovação, criatividade e malícia poética, fundamental num enredo que trate da arte dos capoeiristas.

Para encerrar, desde já, respeitando todos os outros 30 sambas concorrentes no Império Serrano, saliento que o samba da parceria Eduardo Poeta, André Gustavo, Cícero Simões e Léo Ribeiro não só é o mais bonito, como também é inovador, pois sai da mesmice dos sambas adjetivados, cheios de clichês e verdadeiras cópias de sinopse. Sem imitar fórmulas prontas, eles ousaram e criaram um samba com a identidade dos compositores.

Espero que o Império Serrano analise os sambas por suas qualidades e inovação porque assim, não tenho dúvida do sucesso dos nossos companheiros, aqui da Na Cadência da Bateria. No mais, desejo boa sorte aos meus amigos de samba e de cerveja nessa árdua empreitada. O mundo do Carnaval e o Império Serrano merecem ter a linda canção de vocês.

Confira o samba:


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval e articulista e comentarista do Blog Na Cadência da Bateria, desde 2006.

Texto envia do pelo professor Aurélio Fernandes – Professor de História, educador popular e militante dos Círculos pela revolução brasileira.

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