Redação –
Dois anos após o presidente Jair Bolsonaro derrotar o petista Fernando Haddad nas urnas, o cientista político da FGV/CPDOC Jairo Nicolau monta um quebra-cabeça de quem são os eleitores que tornaram possível a vitória de um candidato com ideias nada moderadas.
Em “O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018” (Zahar), que será lançado nesta segunda-feira, dia 5, amanhã, o pesquisador chama a atenção para as nuances do resultado, que indica o avanço do hoje presidente sobre regiões metropolitanas do Sul e Sudeste do país e identifica um eleitorado com média e baixa escolaridade, antes, mais alinhado ao petismo.
INVERSÃO – Apesar de os números reforçarem uma impressionante inversão eleitoral no país, Jairo Nicolau é cauteloso ao olhar hoje, às vésperas de uma nova disputa nas urnas, para a rede de apoiadores de Bolsonaro. “Não acho que exista um bolsonarismo orgânico operando no Brasil”, afirma em entrevista ao O Globo.
Frequentemente ouvimos que para ganhar uma eleição um candidato precisa moderar seu discurso. Bolsonaro não foi por esse caminho, como o senhor narra no livro. Por outro lado, também não participou de boa parte dos debates e ficou sem se manifestar após o atentado que sofreu ainda no primeiro turno. Parte do eleitorado elegeu Bolsonaro sem conhecer suas ideias?
Boa parte da descrença em relação à vitória de Bolsonaro se devia em larga medida pela posição política dele. Sabemos da dificuldade que candidatos que representam segmentos muito particulares têm quando enfrentam uma eleição majoritária, quando precisam ter pelo menos 50% dos votos, que não é tarefa simples. Uma parte grande dos descrentes na vitória do Bolsonaro, inclusive eu, se devia também ao perfil dele. A ideia era que Bolsonaro ficaria no nicho à direita, com um eleitor que vou chamar de conservador, jovens que viram no Bolsonaro um símbolo, alguém como ele se vendeu, que combateria corrupção, a desorganização política, o estado de coisas que o PT tinha criado. Toda a narrativa que ele inventou. Mas ele entrar num eleitorado moderado é a maior surpresa. Claro que esse eleitorado pode não ter conhecido o que pensa Bolsonaro, porque ele simplesmente não se fez conhecer na campanha. Desde o evento da facada até o dia da eleição, Bolsonaro praticamente ficou em silêncio, basicamente falando da recuperação, da saúde dele.
Há chance de uma reorganização futura desse eleitorado menos ideológico, já que agora ele tem a gestão de Bolsonaro concretamente para avaliar?
A gente está no meio de um processo de reorganização do quadro partidário. Tivemos duas décadas marcadas pelo conflito PT e anti-PT. Hoje, temos uma reconfiguração em curso. É difícil fazer qualquer diagnóstico no meio dessa areia movediça que a gente está vivendo. Mas a gente tem que lembrar que o bolsonarismo e a crise dos partidos tradicionais afetaram muito os três maiores partidos de centro que, desde a redemocratização, são pivôs centrais do jogo político: MDB, DEM e PSDB. Esses partidos tiveram cada um os seus piores desempenhos eleitorais de sua história. Os três foram muito mal, somaram menos de cem deputados. As forças tradicionalmente de centro foram mal nas eleições presidenciais e nas eleições para o Congresso. Esse processo de reconstrução do centro vai depender muito agora da eleição municipal, se a gente observar a possível retomada ou manutenção de algumas prefeituras, sobretudo nas regiões metropolitanas, nas grandes cidades. Há possibilidade de eles, em 2022, reconquistarem lugar fundamental. As eleições municipais vão demonstrar sua capacidade de ressurgimento.
Um dos pontos que o senhor ressalta é que Bolsonaro conquistou o cargo com forte penetração nas periferias das grandes cidades, mobilizando não só o Sudeste e o Sul do país, que concentram boa parte da população, mas principalmente eleitores com média e baixa escolaridade, que no passado escolheram o PT para representá-los. Como se deu essa transição?
Antes de ver os dados, não tinha a dimensão do bolsonarismo como um fenômeno metropolitano. E os dados mostraram que isso aconteceu de maneira muito mais enfática. A inversão que aconteceu nas regiões metropolitanas do Sudeste ilustra bem isso. Aqui no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, em São João de Meriti, um centro urbano importante da Baixada, em 2014, a Dilma teve 66% dos votos. Em 2018, caiu para 28%. Bolsonaro teve 72% dos votos. Você pode pegar vários grandes centros urbanos e você vai observar um padrão semelhante. O PT vinha caindo nessas cidades, mas a queda acontecia muito lentamente. Em 2018, foi um abismo. Foram milhares de votos perdidos: 40% dos que votaram em Bolsonaro votaram na Dilma em 2014. Tem mais eleitor do Bolsonaro que votou na Dilma em 2014 do aquele que votou no Aécio. Isso mostra que grande parte dos eleitores não se orienta por marcações ideológicas.
Parte da oposição e de seus apoiadores, porém, chama o eleitor que escolheu Bolsonaro de fascista…
Pode-se definir o fascismo de diversas formas, mas é um movimento que pressupõe um conhecimento ideológico mínimo, de como funcionam certas políticas pública, de como gerir um estado. Se esse eleitor é pragmático, troca o voto, não posso chamar esse eleitor de fascista. Não é uma boa, do ponto de vista analítico, confundir esse eleitor com pouca informação sobre questões macro da política com um eleitor, esse sim, que conhece a história do fascismo, que tem saudade do regime militar.
O bolsonarismo pode se consolidar nessas grandes cidades decisivas para eleger o presidente?
Eu prefiro não usar o termo bolsonarismo ainda, no máximo bolsonarista. Ainda não estou convencido de que existe um movimento orgânico em torno dele com ideias que mereçam esse nome. Eu vejo uma liderança — para usar o termo do sociólogo alemão Max Weber — carismática, com capacidade de se comunicar com um eleitorado que ele desenvolveu recentemente que é eficiente. O que estamos vendo é uma direita que entrou no baile. Há dez anos, era difícil alguém se identificar como candidato de direita. Era um certo tabu, ainda que fosse antipetismo ou anticomunista. O elogio ao regime militar veio com o Bolsonaro. Até recentemente havia um consenso mesmo entre conversadores de criticar o regime militar. O que observo é que tem candidato a vereador, a prefeito, que usa uma patente militar no nome. Tem uma nova direita, e boa parte dela olha para Bolsonarocomo um grande líder, mas eu não vejo ainda organização a ponto de formar um movimento. Os poucos candidatos que ele indicou apoio são de partidos diferentes. Os atores à direita não estão organizados em uma única legenda, não têm uma ideologia ainda definida, tudo é muito fragmentado. Não acho que exista uma bolsonarismo orgânico operando no Brasil.
O WhatsApp teve efeito significativo em 2018 na criação de ondas especialmente ligadas ao bolsonarismo, com a eleição inesperada de governadores, por exemplo, como o Witzel. Podemos esperar o mesmo nesta eleição?
Essas ondas precedem o WhastApp. O termo onda passou a designar vários processos similares em outras eleições anteriores: a onda Marina, a onda Gabeira, a onda Doria. Antes do WhastApp, já havia um movimento quase que como de contágio epidemiológico. É a ideia do meme, do RichardDawkins, um processo de transferência rápida de informação que acontece de maneira exponencial. Esse processo já acontecia. O que aconteceu em 2018 é que as redes sociais, e particularmente o WhastApp, permitiram com que essa onda acontecesse com uma velocidade muito maior. Você precisava de dez dias para criar um processo: tinha um debate na TV, depois a conversa no dia seguinte, que ia depois para um churrasco. Tem todo um processo que demorava um pouco e foi acelerado pelo WhatsApp. É impossível o fenômeno Witzel sem o WhatsApp, porque ele precisaria de uma rede mínima de apoiadores e tempo de TV que ele não tinha. Mas acho que essa potência de 2018 não volta. O WhatsApp agora tem certo controle para o envio de mensagens, a ferramenta mudou. Claro que pode ajudar a ter uma onda em uma cidade ou outra, mas não tem aquela força, você não pode passar 20 mensagens de cada vez. Sem contar que o WhatsApp já não dá um diferencial para determinado candidato. Todos vão usar também.
No livro, o senhor chama a atenção para o impacto das mudanças de regras eleitorais no pleito passado, como a redução do tempo de campanha e a mudança no financiamento, agora sem doação de empresas. Nas eleições municipais deste ano também teremos novas regras. A maior delas é o fim das coligações proporcionais. O que podemos esperar?
O fim das coligações proporcionais é a maior reforma do sistema eleitoral desde 1985. Vai ter impacto forte sobre os quadros partidários dos municípios. Em 95% dos municípios, são eleitos até dez vereadores. Você precisa de mais ou menos 10% dos votos para eleger um vereador. Um partido com 5% não vai conseguir uma cadeira. No passado, ele juntava esses 5% com outros partidos e se conseguia vagas. Agora muitos partidos vão ficar de fora das representações dos municípios. Vamos ter três ou quatro partidos em média nas Câmaras e isso vai ter muito impacto na vida política dos municípios. A tendência é que a gente tenha uma reorganização do quadro partidário por conta disso. Vamos ter um movimento de concentração da política brasileira. Vai ser uma devastação, sobretudo nos 95% dos municípios que elegem poucos vereadores.
A partir do diagnóstico que o senhor faz de 2018, que aspectos no pleito municipal podem antecipar o cenário de 2022?
A eleição do Rio tem significado especial, porque aqui surgiu Bolsonaro, que é seu domicílio eleitoral. Ele tem candidato que é o prefeito (Marcelo Crivella). E uma eventual derrota de Bolsonaro é importante para a política subsequente. Outra eleição é São Paulo, o lugar do PSDB. É importante ficar atento à sobrevivência do PSDB. Para o Doria, uma vitória na capital é fundamental. Eu diria para ficar atento também ao PT, que foi muito mal em 2016, e se vai dar certo essa estratégia de sair muito mais sozinho, com candidaturas próprias. Não só por decisão do partido, mas também por decisão dos outros partidos de esquerda. Por fim, também destaco os demais partidos de esquerda, que se colocam como alternativa, como PSB, PDT e PSOL, que tentam a sorte descolados do PT. O PT vai ser uma âncora da política brasileira porque é mais organizado e tem bases muito sólidas nos municípios, mas o espaço de disputa da esquerda não petista está aberto.
Fonte: O Globo, por Marlen Couto
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