Por Aderson Bussinger –
Em recente artigo, escrevi que o Brasil era vítima de duas Pandemias, uma virótica do covid-19 e outra que denominei “trabalhista”, que tem haver com a limitação e redução de direitos, edição de leis de cunho sanitário, mas que aproveitam para ir mais além, alterar o já precário sistema de proteção trabalhista vigente no Brasil há décadas e que os empresários estão aproveitando a crise sanitária para acelerar o seu desmonte. Em verdade, faz-se necessário sempre situar, tudo que está ocorrendo nesta área, (a mercê ou sob o pretexto da pandemia), não é novidade e tem como principal suporte a Lei 13.467/2017 que instituiu a denominada “reforma trabalhista” e introduziu assim um outro princípio, oriundo das relações de Direito Civil, em nossas relações laborais: o primado do negociado sobre o legislado.
É preciso dizer, antes de adentrar no exame, ainda que de forma resumida, da recente lei aprovada, que princípios mais importantes e basilares do Direito do Trabalho nos ensinam categoricamente que não é o trabalhador que deve arcar com os riscos do negócio, mas aquele que com este lucra, o que afasta entendimentos de que, em épocas de crise, o prejuízo deve ser suportado igualmente por todos. O segundo princípio é o da dignidade humana, que coloca a vida acima de tudo, especialmente sobre o lucro, o que importa dizer que principalmente nos períodos de crise, como na atual Pandemia, deve haver mais proteção ao empregado e, portanto, a menor perda de direitos possível.
Na contramão destes princípios e de toda Doutrina protetora deste especial Direito, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente da República sancionou a Lei 14.020, no último 6 de julho, que criou o Programa Emergencial do Emprego e da Renda e que foi muito festejado por todo o empresariado, maioria dos parlamentares e Governo Federal. O motivo para efusivo e tamanho apoio da maioria dos empresários e políticos é simplesmente porque, em seu conteúdo, a nova lei mantém o principal conceito e traços principais da MP 936, quais sejam: 1- Exclusão quase total do Sindicato da negociação coletiva e protagonismo durante a pandemia; 2- Redução do valor dos salários e suspensões de contratos; Com efeito, ao lado das medidas de socorro financeiro ás empresas, na forma de custeio de beneficio emergencial, bem como dispor sobre a garantia de emprego das gestantes e trabalho dos aposentados, são os dois pontos itens, acima, exclusão sindical e redução salarial que compõem a base da nova legislação.
Em relação a exclusão do Sindicato da negociação coletiva, que infelizmente foi chancelado pelo STF quando da análise da precedente MP, foi fixado um limite para empresas com receita bruta, em 2019, superior a R$ 4,8 milhões, sendo que, nestes casos, tanto a redução salarial como a suspensão de contrato poderão ser realizadas por acordo individual, nos percentuais de 50% e 70%, no que diz respeito a empregados que recebem igual ou mais que R$ 12.202,12 e por empregados com salário de até R$ 2.090,00 (dois salários mínimos), ou seja, se reduziu um pouco o limite para acordos individuais, que antes era até o valor de R$ 3.135,00.
De outro lado, não se incluindo os empregados na faixa salarial acima, (e independente da renda bruta da empresa) a nova lei abre a possibilidade de redução salarial/suspensão de 50%/70% se tal acordo não acarretar diminuição do valor recebido anteriormente, somado ao beneficio emergencial, o salário reduzido e uma ajuda mensal compensatória a ser paga pelo empregador. O fato fundamental, contudo, é que, considerando que a base de pagamento do beneficio emergencial será a aplicação do percentual sobre o valor do salário-desemprego e não sobre a efetiva remuneração do trabalhador, o resultado é que sempre haverá perda salarial, em qualquer uma das modalidades previstas tanto na anterior MP como na nova lei, o que também refletirá negativamente sobre os recursos da previdência social, em vista da diminuição da massa salarial, via redução implementada por tais acordos que de “livres” não possuem nada.
Mas não é só. A lei permite a contratação de trabalhadores aposentados, desde que o empregador assuma o pagamento do beneficio emergencial, bem como cuidou a nova legislação de resguardar e proteger os acordos individuais e coletivos firmados durante a vigência da MP 936, que ficarão intactos em relação aos seus efeitos, sem influencia dos acordos anteriores e sem que possam ser afetados por novos acordos. Enfim, deu-se finalmente a segurança que o empresariado tanto exigia em relação principalmente sobre os acordos individuais, desde a polemica causada pela liminar concedida pelo Ministro Lewandowski permitindo a manifestação de objeção sindical ao acordado individualmente, que, todavia, foi depois revogada em julgamento da Ação Cautelar que requeria a participação sindical, a despeito do art. 8, IV da Constituição Federal estabelecer objetivamente como obrigatória a participação dos entes sindicais na negociação coletiva. Mais uma letra morta da Constituição de 1988…
Em resumo, o que houve foi uma verdadeira blindagem jurídica dos acordos realizados durante a Pandemia, pelo que somente as novas negociações coletivas poderão trazer novas possibilidades de avanços, o que, na prática, significa consolidar legalmente a vontade patronal durante todo este período em que, por um lado o trabalhador esteve ainda mais vulnerável, e, de outra parte, os sindicatos de trabalhadores engessados, tanto do ponto de vista da impossibilidade de realizar mobilizações e greves, como também juridicamente impedido até de negociar pela MP e agora através da nova Lei, durante o período de Pandemia. Um verdadeiro “estado de sitio” nas relações laborais, amordaçando sindicatos e juridicamente e estabelecendo quase que exclusivamente a “negociação individual”, que leia-se: a vontade unilateral do empregador.
Sobre este tipo de legislação, podemos dizer que se é verdade que realmente houve preservação dos empregos submetidos a uma parte das empresas que conseguiram se encaixar nestes critérios “emergenciais”, (que não representam a maioria das empresas, especialmente as pequenas e médias que ficaram ao lago destas medidas de proteção e auxilio), não é menos verdade que tais medidas partem sempre de um pressuposto de perda salarial, pois, conforme acima esclarecido, os percentuais são aplicados sobre o salário-desemprego. E notoriamente é sabido que os aluguéis, alimentação, remédios e escola das crianças não tiveram redução na mesma proporção, sendo que o item alimentação teve alta de preços. O que temos então é mais exploração do trabalho durante a Pandemia, subsidiado por dinheiro publico a saldar parte da massa salarial das empresas que puderam ingressar no programa de auxilio, ao lado de uma imensa quantidade de desempregados que já vinha desde antes. E muita precarização, com ameaça constante á saúde e segurança no trabalho, em níveis jamais vistos, conforme revelou a recente greve dos entregadores de aplicativos.
Felizmente também há muita resistência por parte da maioria absoluta das entidades de juízes do trabalho, procuradores do trabalho, advogados trabalhistas, sendo que o que o sindicatos mais poderiam fazer, que seria ir para as ruas, mobilizar os trabalhadores
principais prejudicados, estão no momento impossibilitados de fazê-lo, o que facilita enormemente a tramitação de tais propostas de legislações restritivas do direito do trabalho, que, sob o pretexto da Pandemia, acabam transbordando e excedendo para mudanças mais estruturais e longevas, com, ademais, temos assistido em diversas áreas e que ficou cunhado pela expressão “passar a boiada”, neste caso não sobre os direitos ambientais, mas em relação aos históricos direitos trabalhistas do povo brasileiro, como desconstruindo o “muro legal” de proteção que vinha sendo erguido desde o início do século XX, com a criação da Justiça do Trabalho, edição da CLT e uma série de outras medidas de proteção laboral. Em verdade, é a fase em que se encontra o capitalismo, desde a década de 70, quando passou a investir contra direitos trabalhistas, flexibilização e precarização, a fim de tentar resolver mais uma de suas crises cíclicas.
Caminhando para o final deste texto, a edição desta nova lei, na esteira de outras legislações durante esta crise sanitária, não somente comete dois crimes capitais nas relações trabalhistas, reduzindo salários e cerceando os sindicatos da negociação coletiva, mas também deixa de tratar de vários outros aspectos de interesse dos trabalhadores, como a exigência legal de testagens para covid-19 no interior das empresa, comércio e demais atividades econômicas, como também o drama das mães-empregadas que não possuem onde deixar os filhos para irem trabalhar, porque as creches publicas estão fechadas, sendo na maioria das vezes demitidas quando alegam esta circunstancia. Em um quadro de cerca de 10, 1 milhões de desempregados, conforme contabilizado em junho deste ano, 9, 7 milhões de pessoas afastadas do trabalho sem qualquer remuneração e outras 30,2 milhões de pessoas sub-ocupadas, conforme as estatísticas do Pnad Covid-19 (IBGE), a lei ora aprovada fornece um patamar muito baixo e limitado de proteção ao empregado e, concomitantemente, novas formas de extração de lucro, sob pandemia. Mais do mesmo, sendo que desta vez em dose ainda mais elevada e letal.
ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.
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