Por Ricardo Cravo Albin –
“Quem acha vive se perdendo/por isso agora vou me defendendo” (Noel Rosa – 1936)
O novo normal pós pandemia vem sendo usado com insistência, sem pé nem cabeça, como uma nova era, o refundamento do Brasil, daqui há pouco um país menos injusto e mais organizado.
Pura balela, puro jogo de palavras. Piedoso, reconheço, como tentativa para animar um país a destilar o macabro de 70.000 mortes. Portanto, fica combinado que o novo normal não é novo, nem muito menos normal.
Agora nossa apreensão principal, venho reiterando isso há mais de dois meses, era e continua a ser a reabertura das cidades de todo o país. É claro que a tragédia principal – o número inquietante de óbitos, bem como o milhão e meio de infectados – projetou o país na mais grave crise tanto econômica quanto sanitária dos últimos cem anos. E o mais trágico paradoxo está na gangorra de abrir e ter que fechar em seguida a economia tanto das capitais quanto das milhares de cidades do país. Trágico pela escolha de Sofia, que desorienta ainda mais a população de como proceder: voltar a injetar dinheiro no país e retomar os empregos dos 13 milhões de brasileiros sem trabalho? Ou arriscar vida de milhares de novos infectados? Perguntarão não sem alguma razão (ou muita) os menos avisados da crudelíssima realidade em que o país mergulha.
Esse conflito de ideias não me sai da cabeça, e já me levou a acérrimas discussões com velhos amigos, inclusive muitos dos companheiros da bicentenária Associação Comercial do Rio de Janeiro. São tantas minhas inquietações, robustecidas pelo far-niente angustiante do isolamento a que me sujeito na Urca que, prefiro enumerá-las e, aqui ou acolá, lhes antepor breves comentários.
1- A principal causa da situação a que chegamos parece ter sido esclarecida pelo TCU (Tribunal de Contas da União), no voto do Ministro Vital do Rego, cujo relatório aponta para falta de gestão e coordenação do Ministério da Saúde, há meses com ministro interino não técnico, depois de dois ministros defenestrados em plena pandemia. Resultado disso, segundo Vital Rego:
a) Ausência de um plano confiável de comunicação da situação diária da Peste.
b) Falta de articulação federal (um claro dever em qualquer país do mundo) para mitigar aqui o déficit de profissionais de saúde, de equipamentos de hospitais e o mais inaceitável, falta de medicamentos e de leitos. O risco de colapso desses itens de tanto denunciados acabou por se transformar em “ladainhas que bradam aos céus pela ausência de comiseração”, como exclamava minha piedosa mãe.
c) Agora a falta de gestão e coordenação ataca a abertura das cidades. O que cabe aos estados e municípios.
d) O Ministério da Saúde deveria estar reunido dia e noite, ininterruptamente, com rodízio de prefeitos para impor/sugerir protocolos rígidos, baseados nas cidades que já abriram suas economias. A situação desse modo poderia estar mais bem administrada. Infelizmente volto ao relatório do Tribunal de Contas, que intui a inexistência federal desse procedimento obrigatório.
e) Como todos os que estudamos o Brasil sabemos que a maioria dos prefeitos e muito dos governadores são políticos toscos e cidadãos incultos, sem qualquer possibilidade de sequer entender os protocolos científicos e sanitários do que é, e como é, abrir suas cidades seguindo padrões severos já experimentados e comprovados. À situação de indigência cultural dos alcaides se soma uma nuvem negra que já está às vésperas, a eleição no final do ano. Vejo isso politicamente como quebra do rigor de normas sanitárias, portanto um acréscimo da pandemia nas cidades, sobretudo as do Brasil profundo, que já, mesmo sem período eleitoral vigente, inquieta o país pelo acréscimo galopante de contaminados + vítimas.
f) Alguém será ingênuo a ponto de acreditar em obediência olímpica dos prefeitos ante as normas técnico-científicas (e só elas deveriam existir) de abertura de lojas e demais equipamentos? Aliás, o prefeito de Itabuna na Bahia emitiu frase medonha sobre o desdém de óbitos, que me reservo o direito de não repetir, tal o engulho me provocou há dias.
g) Cabe observar aqui que as aberturas iniciais de algumas cidades foram a pique e em menos de 8, 10 dias forçadas a fechar de novo. Por que? Porque, no caso do Rio, o carioca é por natureza indisciplinado; centenas estavam em eventos de rua ou fechados no último sábado no Leblon sem observar cuidados obrigatórios, afastamento presencial (de 1 metro e meio) e uso de máscara.
h) Como eventos deletérios não chegam sozinhos, também na última sexta-feira o Presidente Bolsonaro baixou decreto flexibilizando o uso de máscara, inclusive nas escolas, que a imprudência do Prefeito anunciou abrir, contra todas as opiniões de infectologistas. Fiquei tão inquieto que nem consegui dormir. A pergunta é obrigatória: baseados em que protocolo? Se ambos, Presidente e Prefeito lixam-se para normas internacionais e não seguem experiências concretas de outros países, nada mais comento, até porque porque volto a conclusão óbvia do parecer do Tribunal de Contas, a falta de gestão.
i) Essa falta de gestão, acumulada com procedimento rebelde do Presidente acabou por abatê-lo. Mas fique claro que o país torce para sua pronta recuperação. Ele voltará da enfermidade muito mais consciente. Assim desejo.
j) Há um outro detalhe, esse de pura reflexão pessoal – mas que ainda não vi observado em lugar algum. Parece racional que restaurantes e bares deveriam ser os últimos equipamentos comerciais a abrir. Por que, cara pálida? Simples como água: a cegueira de nossas autoridades não deduziu que as pessoas retiram do rosto suas máscaras para comer e beber. Mas todos continuam a falar enquanto comem e bebem, em geral em salões fechados de restaurantes. O que por certo espalha vírus, tanto para seus interlocutores diretos à mesa, quanto para todo o ambiente fechado. O pior: há dias um grupo de cientistas concluiu que o vírus saído da boca por partículas fica no ambiente por mais tempo do que se supunha.
Anotei mais coisas a reclamar aqui, mas essas notas preocupantes me fizeram se acercar de mim uma pequena depressão.
k) Como asseverou Albert Einstein “A única coisa que interfere com meu aprendizado é a minha educação. Educação é o que resta depois de ter esquecido tudo que aprendi na escola”, o que se aplica como uma luva como paráfrase ao à jeunesse dorée (sem máscaras e grudados uns aos outros) no fim do Leblon sexta e sábado. Todos ricos, alunos dos colégios mais caros e filhinhos do papai. Serão eles o futuro dirigente do nosso desvalido país.
l) O poeta Drummond antecipou essa contradição no poema “Inocentes do Leblon” – Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar/Trouxe bailarinas?/trouxe imigrantes?/trouxe um grama de rádio?/Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente, e há um óleo suave/que eles passam nas costas, e esquecem.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin, Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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