Por Jorge Folena1 –
Em agosto de 2019, diante das pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, foi retomado o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que completava cem anos naquela oportunidade.
Os três erros da mencionada constituição seriam os artigos 24, 48 e 53 que, respectivamente, previam em linhas gerais que: (a) o presidente poderia dissolver o parlamento; (b) o presidente poderia, com a ajuda das forças armadas, intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e (c) a nomeação do primeiro ministro como atribuição do presidente.
Como afirma Sven Felix Kelerhoff2, essas regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933.
Para nós no Brasil é muito importante essa lição do passado não resolvido pela República de Weimar, uma vez que, a partir de janeiro de 2019, passamos a conviver sistematicamente com o autoritarismo e a barbárie, em que os direitos mínimos fundamentais e de convivência têm sido sistematicamente desrespeitados, ameaçando até mesmo as instituições políticas liberais, inclusive sob o argumento de uma imaginada “intervenção militar”, que, segundo seus apologistas, teria fundamento a partir do artigo 142 da Constituição Federal, que prevê o papel das forças armadas e a possibilidade delas serem empregadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a exemplo do que previa o artigo 48 da Constituição alemã de 1919, que manteve uma regra do antigo regime monárquico alemão, incompatível com a república.
Vale lembrar que o atual ocupante do cargo da Presidência da República, na infame reunião ministerial de 22 de abril de 2020, que veio a conhecimento público por decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, manifestou que ele era “o chefe das Forças Amadas” e que poderia empregar o artigo 142 da Constituição; numa clara ameaça às instituições e à democracia republicana.
Em razão disso e das ameaças constantes que representam o emprego das Forças Armadas em casos de segurança interna do país, num indevido exercício de “tutela da forças militares” sobre a política e os civis, é preciso ressaltar que esta construção é incompatível com a noção de república e soberania popular e representa um traço típico do antigo e vencido regime absolutista, construído a partir de um racionalismo desmedido, que colocou o monarca acima do povo como o representante máximo da nação.
Era o que se via na Constituição Monárquica de 1824, no Brasil, cujos artigos 10 e 11 previam que “os poderes políticos (…) são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial” e que “os representantes da nação brasileira são o imperador e a Assembleia Geral”.
Ou seja, o imperador colocava-se como uma instituição (“o representante primeiro da nação”) e acima do povo. Uma construção racional difundida por Hegel, a partir de sua Filosofia do Direito3, para justificar uma monarquia constitucional, principalmente depois do Congresso de Viena (1814-1815), que tinha como um dos seus princípios a restauração da antiga ordem absolutista, mesmo que sob uma forte intervenção militar contra os movimentos liberais.
É nesse sentido que a Constituição de 1824, em seu artigo 98, previa que: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”
O Artigo 102 da Constituição de 1824 estabelecia que “o Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado”; sendo que, pela redação do artigo 148: “ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Império.”
Assim, verifica-se que a força militar poderia ser empregada pelo imperador para garantir “a segurança” contra as rebeliões liberais promovidas por populares ou grupos oposicionistas à monarquia, no âmbito interno do Estado brasileiro; este tipo de utilização da força militar (prevista no artigo 148 da Constituição de 1824) segue a lógica do princípio da restauração, conforme proposto no Congresso de Viena (1814-1815), com o uso da intervenção militar interna para reprimir as ideais liberais e garantir a velha ordem absolutista, como forma de se manter a lei e a ordem em favor do antigo regime, como se verificou na derrubada da Comuna de Paris.
Vale destacar o emprego de mercenários europeus, contratados pelo imperador Pedro I, para assegurar seus interesses e reprimir rebeliões liberais que ameaçavam os interesses absolutistas e para garantir a unidade do território brasileiro, forjada pela coroa portuguesa.
Ocorre que a República deveria ter posto fim ao emprego das forças militares na manutenção da segurança interna, porém, a Constituição de 1891 manteve regra idêntica à do absolutismo, ao dispor em seu artigo 48 que “compete privativamente ao Presidente da República (…) exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União”.
Vê-se, assim, que as Forças Armadas, artífices da derrubada da monarquia, mantiveram para si o emprego da “defesa interna”, que passou a ser empregado contra a população negra, mestiça e pobre (como ocorreu em Canudos e no Contestado), para garantir a manutenção do sistema exploratório vindo da escravidão, que se iniciou no Brasil colônia, passou pelo império e continuou com a república.
Assim foi preservado o sistema de dominação em que os militares servem de guardiães da propriedade privada, asseguram a apropriação promovida por “elites civis beneficiárias do legado colonial”4 e preservam a injusta distribuição da riqueza nacional.
Seguindo essa diretriz de emprego das Forças Armadas na ordem interna, a Constituição de 1934 dispôs, em seu artigo 162, que “as forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, a ordem e a lei.”
Da mesma forma, a Constituição de 1946, em seu artigo 177, dispunha que “destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”; como a Emenda Constitucional 1, de 1969, que previa em seu artigo 91 que “as Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.”
Constituição de 1988, que é o documento jurídico da “Nova República”, igualmente, em seu artigo 142, dispõe que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
O ponto diferenciador da Constituição de 1988 em relação às constituições anteriores foi a extensão a todos os Poderes constituídos da capacidade de convocar as Forças Armadas, para sua própria garantia e da lei e da ordem. Esta ampliação foi uma tentativa de neutralizar eventuais abusos autoritários do Poder Executivo, na medida em que os outros poderes agora podem também requisitar o emprego da Lei e da Ordem.
Entretanto, esta ampliação do conjunto de autoridades que podem requisitar a GLO representou a possibilidade de um descontrole institucional do uso dos militares na segurança interna, pois esta não exige a observância das rígidas regras impostas para a decretação de estado de defesa (artigo 136 da Constituição), estado de sítio (artigo 137 da Constituição) e intervenção (artigos 34 e 36 da Constituição), para os quais se exige que sejam previamente ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional e que tenham autorização do Congresso Nacional e que são institutos jurídicos de uso extremo de um estado de exceção.
Vemos então que convocar uma GLO é muito mais simples do que declarar um estado de exceção; porém, uma vez que esta seja instaurada, as forças militares podem ser utilizadas indevidamente para impor um regime autoritário, sob um manto de falsa legalidade constitucional.
Ocorre que, a exemplo da República de Weimar5, a Garantia da Lei e da Ordem entre nós foi abusivamente empregada por sucessivos governos civis depois de 1988, tirando os militares dos quarteis para serem empregados indevidamente como forças policiais a serviço da repressão da população das favelas, como ocorreu sistematicamente no Rio de Janeiro, e que vem se ampliando nas periferias das grandes cidades brasileiras.
O histórico constitucional acima serve para ratificar como indevido o papel de “tutela militar”, assumido pelas Forças Armadas brasileiras depois do fim da monarquia; ficando claro que os militares, a exemplo do que fez o imperador, servem-se até hoje de uma falsa construção racional para tentarem colocar-se acima das instituições políticas e da soberania popular; quando, numa república, o papel das forças militares deveria ser exclusivamente de proteção do seu povo e contra forças estrangeiras que possam tentar tomar os bens do país e impor um regime de exploração.
Contudo, o que se tem visto no Brasil, seja no Império ou na República, são as forças militares reprimindo a população (majoritariamente negra e pobre), a qual deveriam proteger, como determina a Constituição, que diz que “todo poder emana do povo e em seu nome deverá ser exercido.”
Está claro, portanto, que não existe espaço para esse suposto “poder moderador” militar numa república; muito menos quando utilizado por quem quer que seja para justificar ameaças e pregar a intervenção militar para impor regimes autoritários, que não encontram amparo na Constituição. Infelizmente, as forças militares, ao longo dos regimes exploratórios, têm servido como instrumentos de repressão a serviço das classes dominantes, que lhes retribuem com benefícios patrimoniais e assistenciais pelos serviços prestados.
Não podemos permanecer no mesmo erro cometido pela Constituição de Weimar, ao manter uma regra do antigo regime feudal absolutista, incompatível com a República.
Sendo assim, o poder constituinte derivado deve, com urgência, reformar a Constituição para revogar o emprego da garantia da lei e da ordem por parte das Forças Armadas, devendo esta atribuição ser exclusivamente das forças de segurança pública, previstas no artigo 144 da Constituição.
1 Advogado. Doutor em ciência política, com pós-doutorado; diretor e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros.
2 Sven Felix kelerhoff. Die drei tödlichen Fehler der Weimarer Verfassung, 11.08.2019 Disponível em https://www.welt.de/geschichte/article198259345/Weimarer-Republik-Die-drei-toedlichen-Fehler-der-Verfassung.html Acesso em 04 de jul. 2020
3 Os artífices da mistificação partem das ideias contidas na Filosofia do Direito de Hegel, que considera que a livre manifestação de vontade individual forma a família, que forma a sociedade civil burguesa, que, por sua vez, forma o Estado. Contudo, no prosseguimento da construção hegeliana, o Estado não é controlado pelo povo (que por meio da sua vontade o constituiu), mas por uma monarquia constitucional, que se posiciona acima da população e se respalda na força militar para se manter no poder e controlar a soberania nacional (de conteúdo institucional e não popular).
4 Manuel Domingos Neto. Sobre patriotismo castrense. Dossiê os militares. Revista do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, n. 18, ano 13, out. 2019, p. 31.
5 Sven Felix kelerhoff. Die drei tödlichen Fehler der Weimarer Verfassung, 11.08.2019 Disponível em https://www.welt.de/geschichte/article198259345/Weimarer-Republik-Die-drei-toedlichen-Fehler-der-Verfassung.html Acesso em 04 de jul. 2020
JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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Olá Bom dia primoroso texto a Ordem tem que ter sempre -não a fak news – Sim a liberdade de Imprensa -e temos no Brasil desde 1954 Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro ( SJMRJ ) – que pode até ser Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro ( Fica a Sugestão – 2020 ) -desde 1954 e viva a Liberdade de Imprensa.
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