Redação

O professor Roberto Romano é uma das fontes mais acionadas pela imprensa brasileira, nos últimos 30 anos. Ele faz parte de um time conhecido como cientistas políticos, oriundos das ciências sociais, vulgarmente chamadas de “humanas”. Muitos desses cientistas, principalmente os que trabalham em televisão e nas mídias sociais, são conhecidos como media watchers.
Bacharel em filosofia pela USP, Romano fez seu doutorado na Escola de Altos Estudos de Paris (França). Em 1969, foi um dos dominicanos presos quando o DOPS paulista executou Marighella. É professor da UNICAMP e sua produção acadêmica além do magistério inclui vários livros sobre ética, moral e política. Um de seus temas preferidos é a doutrina da liberdade de imprensa.
Nessa entrevista ao Portal IMPRENSA por videoconferência, o prof. Romano discorre sobre temas essenciais da liberdade, como o direito da fala, já ensinado e exercido na Grécia Clássica do século V AC, por Sócrates. O direito romano é tributário dessa cultura libertária, na antiguidade clássica e que perpassa a idade média e renascença para se transformar em imperativos iluministas nas revoluções americana e francesa.
O bastidor desta entrevista com Roberto Romano sobre a liberdade de imprensa escancara a diferença entre ética e moral. Há situações históricas em que são sinônimas e outras em que não. Como no nazismo regido por leis que para os alemães que as seguiam eram éticas, mas para a humanidade eram imorais. No mundo do jornalismo, também, há situações éticas, porém imorais, dilema que se acentua com a censura, o papel do contraditório no jornalismo e o direito absoluto da vida, tão falado neste período de pandemia.
Portal IMPRENSA – Como a filosofia antiga, medieval e moderna, no ocidente, lidam com o conceito da liberdade de expressão e de imprensa?
Roberto Romano – Na Grécia antiga, sobretudo no período democrático, havia o ideário da livre fala, da ‘paresia’. O cidadão é aquele que podia comparecer à assembleia e nela falar sobre todas as coisas, e isso era um direito sagrado do cidadão. É bom lembrar que existia um número bem restrito de cidadãos atenienses. Mulheres, escravos e estrangeiros estavam postos fora, mas essa ideia de liberdade de expressão é ínsita na ideia da democracia grega. Saindo da Grécia e indo para Roma, a coisa se torna um pouco complicada. Tem o Senado, onde os nobres, e os ricos tinham pleno direito de fala. Foi criada uma tamanha confusão em termos deste domínio dos nobres, que foi aberta a tribuna do povo, que falava nos ‘comitia’. Os ‘comitia’ era justamente o lugar onde as pessoas que disputavam o voto popular, e sobretudo dos pobres, falavam livremente. No entanto, era um período curto, não era um direito constitucional como no caso da Grécia.
No fim do Império Romano, existiam os municípios, uma invenção própria deste império. Já na Grécia existiam as cidades-Estados. Os municípios tinham um trato federativo com Roma e com sua queda, ficaram autônomos. A partir desse momento, eles valorizaram a sua liberdade, a autonomia econômica, política, administrativa e também a de fala e de voto. Este privilégio cai com o reinado absoluto. Como explica muito bem [Alexis de] Tocqueville em “O Antigo Regime e a Revolução”, o rei retira dos municípios o direito de eleger os prefeitos e os edis. Tem aí uma espécie de controle do poder real sobre esta experiência. É bom lembrar que dada essa importância dos municípios como lugar de liberdade, temos até aquele adágio que é importante – “o ar da cidade torna o homem livre”. Então não tinha o tacão do bispo, e do barão, impedindo que as pessoas falassem o que precisavam.
Um lugar importantíssimo da ida de massas para as periferias da cidade, e onde se estabelece a liberdade de expressão, é a universidade. A universidade é o grande centro onde tudo se debate, se questiona. Inclusive a tão mal falada Escolástica tinha o princípio que nenhum doutor tinha o direito de decretar a verdade de uma vez por todas, existia a ‘disputatio’ [que consistia no diálogo]. Havia esse constante traquejo, esse trabalho de verificação lógica e empírica, e logo da liberdade. É nesse campo que viceja pela primeira vez a quantidade de livros e textos críticos dos poderes, tanto da igreja quanto do nascente poder do Estado. E o poder do Estado, sobretudo a partir do século XVI, busca se estabelecer como um centro de divulgação e propaganda de si mesmo, na famosa razão de Estado. [O cardeal e duque] Richelieu era conhecidíssimo por comprar jornalistas para fazer a sua propaganda e, ao mesmo tempo, ser perseguido por jornalistas que o criticavam fortemente, através de panfletos anônimos, e o ridicularizavam. Então, esse fato da imprensa surgir com esse duplo viés para exaltar os feitos dos governantes e, ao mesmo tempo, criticá-los, é um ponto importante.
O ápice da história da liberdade de imprensa encontra-se na Revolução Puritana, na Inglaterra no século XVII, na qual destaca-se o grande John Milton com sua defesa tremenda do direito de falar, pensar, e de questionar sem censura. É um marco importantíssimo, porque pela primeira vez estão ligadas a ideia de liberdade de imprensa e de accountability, ou seja, a responsabilização dos governantes. E como responsabilizar os governantes? Através das informações trazidas pela imprensa. A partir daí, tem os movimentos dos Estados Unidos da América, a Revolução Francesa e a grande reação contra essa liberdade de imprensa, de debate e de expressão, na contra-revolução do século XIX, por meio da censura virulenta da polícia de Napoleão, que persegue jornalistas e intelectuais. Outra reação é a censura dos estados conservadores, no caso da Alemanha, França e Inglaterra. Dessa maneira, passamos para o século XX nesta situação um tanto quanto ambígua, pois ao mesmo tempo em que se defende a liberdade de expressão, se defende também a razão do Estado, o segredo do Estado, a capacidade que o Estado tem de controlar a cidadania através das informações. Acho que o cume dessa ambiguidade encontra-se justamente naquele célebre ato de [Otto von] Bismarck, que usou uma notícia de jornal para provocar uma guerra. Ele pegou uma notícia, cortou a cabeça e o rabo da mesma, e produziu uma fake news para provocar a guerra [Franco-Prussiana].

Passando ao nazismo, ao macartismo, tem sempre esse engolfamento cada vez maior da liberdade de expressão, e a mesmo tempo da razão de Estado que procura silenciar tudo. É uma história de tensão, de dificuldades de ambos os lados, e de difícil convívio entre a tarefa do jornalista e a tarefa do político.

Portal IMPRENSA – No campo das Ciências, onde é que podemos encontrar maior pertinência da pauta liberdade de imprensa, na Filosofia, na Antropologia, ou no Direito?
Romano – Acho que é na Filosofia, na Antropologia e na Sociologia, e eu acrescentaria a Literatura e as Artes. Parafraseando Alexander Pope [em ‘An essay on man’], “o direito é o orgulho e a vergonha da humanidade”. O Direito serve para garantir liberdades, e prerrogativas do cidadão livre, mas ao mesmo tempo para produzir doutrinas, e técnicas de governo e de dominação que são abomináveis. Basta lembrar, no caso da Alemanha, o Carl Schmitt, filósofo que até hoje tem muita influência nessa linha de controle da informação. Tem passagens onde ele fala sobre o surgimento da radiofonia, e diz que a radiofonia nunca poderia ter sido colocada nas mãos daqueles que são inimigos do Estado, ou seja, dos democratas, teria que ficar sempre nas mãos do Estado. E no caso brasileiro, você tem a ditadura Vargas, com todo um aparato de controle da mídia, porque já tínhamos o jornal e o rádio. Durante a ditadura civil militar, tem essa contínua censura que, muitas vezes, raiou ao ridículo, mas era trágica e com consequências sérias. Por exemplo, na epidemia de meningite, quantas vítimas foram trazidas pela censura do regime.
Por outro lado, é bom verificar que nas grandes potências, na antiga União Soviética, na França, Inglaterra, e Estados Unidos, o trabalho da Ciência é feito, em boa parte, financiado pelo Estado e, portanto, ligado ao segredo de Estado. São assuntos de segurança nacional, e isso traz um problema muito sério de comunicação dos dados científicos para o público. Tem um grande bioético que se chama Jonathan Moreno, ele é muito conhecido e respeitado no congresso e na ciência americana, e tem dois livros fundamentais. Um deles é “Risco Indevido”, onde ele mostra todos os procedimentos científicos de testagem de seres humanos e de uso de fármacos que não chegam à imprensa, ao público. Mesmo naqueles setores chamados de democratas, liberais, como é o caso da república norte-americana, esse peso do segredo cria obstáculos tremendos para a liberdade de expressão e de informação.
Portal IMPRENSA – Na ética, enquanto ciência, onde entra a questão da liberdade?
Romano – Na ética não entra tanto. Referente à questão da liberdade, seu campo maior é o da moral, e não o da ética. A ética é o conjunto de hábitos adquiridos logo na infância, junto à família, à vizinhança, e por meio da religião. Esses hábitos vão se repetindo e se tornam automáticos, de tal modo que, depois de certo ponto, você não tem mais controle imediato sobre o modo pelo qual fala e reage com o seu corpo. Então, a ética deixa de ser um lugar de liberdade, para se tornar um lugar de obediência a normas de comportamento estabelecidas. Considerando a revolução socrática, Sócrates foi o primeiro que questionou a ética grega, e toda ética posterior é questionada com base nisso, porque ele instaurou o campo da livre consciência, da busca da adesão da consciência a um ato público ou particular. Ele tem essa grande contribuição de abrir o campo para a decisão de ordem moral. Com isso, você encontra a possibilidade de ser livre, em relação inclusive à ética. Aquelas multidões fanatizadas – e destas estamos bem cheios nos dias de hoje – que saíam aos milhares entoando hinos a Hitler eram éticas, mas imorais. Morais, por exemplo, eram aquelas pessoas que sendo arianas, brancas, e podendo escapar dos campos de concentração e da repressão nazista, escolhiam lutar contra Hitler, contra o nazismo. É o caso de muitos cristãos, católicos e mesmo evangélicos, inclusive os socialistas e comunistas, que se colocaram contra aquela tirania.  Um dos pontos importantes da liberdade é que você não espera nada de fora, não espera a autorização de outro para ser livre, você se afirma livre. E quando começamos a discutir essa relação da ética com a liberdade, percebemos que muitas vezes a ética vence, porque o comportamento é mais importante. ‘Como é que vou brigar com a minha família, com o Estado, com os poderes estabelecidos? Mas os poderes estabelecidos da minha família são preconceituosos, assassinos, então eu tenho que ir contra eles’. A moral traz uma solidão muito grande, exige demais do indivíduo, porque é preciso que ele tenha coragem de arrancar de si aquele medo que todos nós temos de não obedecer à ética.
Portal IMPRENSA – Como funciona, no jornalismo, a questão da apresentação do contraditório? De que maneira o contraditório entra como um elemento? Ele entra como uma técnica apenas, de você desenvolver o outro lado como contraditório de um fato ou de uma postura?
Romano – É um problema de ordem ética jornalística, mas também de ordem ética e moral, é um problema universal. Um filósofo conservador que eu admiro muito é o Jacques Maritain. No seu último livro “O Camponês do Garona”, que foi abominado pela esquerda católica, ele fala sobre a dificuldade do diálogo. O diálogo supõe ao mesmo tempo rudeza, coragem, e a capacidade de ouvir e entender o outro. Se você não tem estes dois elementos, que são aparentemente contraditórios, você efetivamente está impondo sua visão, mesmo que finja – colocando numa matéria jornalística, por exemplo, dados do outro campo. Ele dá como exemplo Salomé, que dançava para os convidados de Herodes e com isso os agradava, mas não os amava. A diferença entre agradar e amar é muito grande. O amor não passa por este tipo de bajulação sub-reptícia. Quando você faz uma matéria ou está escrevendo um livro em que supostamente elogia ou dá voz ao outro, é necessário que você dê essa voz integralmente, senão passa uma espécie de ‘enfeite’ para que a pessoa não o processe, nem se torne seu inimigo. Isso é muito difícil. Eu sou leitor atento de jornais e revistas, e muitas vezes fico espantado com a falta de integridade nestes famosos ‘o outro lado’. Às vezes o ‘outro lado’ não é outro de fato, é uma maneira de dizer que não abro mão do que estou dizendo e que esse sujeito está dizendo coisas que não são verdadeiras, daí fica complicado.
Portal IMPRENSA – A tipificação da censura como um crime dá margem a exceções, por exemplo, nesta questão de segredo de Estado, ou de segurança nacional?
Romano – Por meio da Folha de S.Paulo, participei de um debate com um procurador de Justiça, e ele fazia parte daquele grupo que eu chamo de justiceiros do Ministério Público, que consideram a luta contra a corrupção o elemento mais importante a ser desempenhado por todos nós, que a corrupção é o grande e único mal e deve ser vencida de qualquer modo. Ele escreveu um artigo na seção Tendências e Debates [da Folha], dizendo que não existem valores absolutos, e nem o valor da vida é absoluto, haja vista que existem as guerras. E eu respondi a ele dizendo claramente que o direito à vida é um direito absoluto, porque ele prima todos os demais direitos. Em todas as religiões, em todas as morais, se tem esse valor absoluto da vida. Então, se a ciência, o Estado, ou a corporação militar abusam do direito de morte é um dever você denunciar, trazer a público o que está ocorrendo. Existe essa tensão permanente entre o direito do jornalista, do escritor, do intelectual, de buscar a verdade e de expressá-la livremente, e o Estado que se concede o direito do segredo, de matanças e de guerra. Considero que não há escolha, aí é o momento da moral. Quantos jornalistas, durante o período macartista, por exemplo, tiveram a coragem de vir a público e denunciar o anti-comunismo? Essa é uma questão moral, e tem uma série de outros pontos em termos de psicologia do indivíduo e dos seguidores de massa, referente à questão do caráter. É preciso levar em conta muito o caráter da pessoa, às vezes, ela tem um bom pensamento, uma boa vontade de fazer algo bom, mas não tem a coragem e o caráter de levar até o final essa luta.
Eu me lembro também de Émile Zola, que está sendo tão badalado por causa do filme [O oficial e o espião] de [Roman] Polanski. No caso de Zola, é muito mais sério porque nem o [Alfred] Dreyfus o considerava bem, o tratou de uma maneira terrível, como se ele fosse alguém intrometido que estava quebrando as regras sagradas do militarismo. Daí, entramos no problema nuclear da vida moral, e também da mudança de ética, porque não existe mudança de ética sem a mudança inicial da moral. E, para isso, você tem sacrifícios a fazer. No caso de Sócrates, que ganhou um copo de cicuta, ele poderia ter escolhido. Este é um ponto importante no caso de Sócrates, porque ele poderia ter escolhido sair da cidade e salvar a sua vida, mas escolheu ficar. Esse é um ponto muito sério. Quantos jornalistas tem essa coragem de vir a público e enfrentar os poderes da igreja, do Estado, bélicos, e revelar aos seus concidadãos coisas que são escondidas?
Portal IMPRENSA – Partindo do lado da ciência e da tecnologia, como você interpreta uma frase de uso corrente que ‘editar é uma forma de censura’?
Romano – Você me colocou um problema muito sério, porque é o mesmo problema que se tem em relação à tradução. Traduzir pode ser uma forma de censura também. O tradutor é um traidor. Muitas vezes tem um texto absolutamente tremendo, e o resultado numa língua ou outra é bastante edulcorado, é uma forma de censurar. Você pode editar um texto no sentido de aproveitar nele aquilo que é essencial e que vai ao ponto do que o próprio autor queria, mas não teve técnica ou prática de estabelecer um texto mais direto, ou você pode censurar, e tentar justamente atenuar a escrita, a fala daquele jornalista. Mais do que nunca é necessário ver caso a caso. É bom lembrar que a edição é uma questão de poder. O editor, aquele que está acima, que decide a pauta, e a forma pela qual a matéria chegará ao público, exerce um poder muito grande. Esse poder pode ser autocrático ou democrático, isso vai depender do caráter do editor e do editado. Tem editados que são ‘covardes’, que não têm a coragem de dizer “por que você está fazendo isso, mudando tais parágrafos, cortando isso?”. Eu lamento muito por eles.
Portal IMPRENSA – Com relação à indústria do jornalismo, tem uma questão muito importante que é o financiamento. Existem pelo menos três tipos de financiamento: do Estado, de instituições – como os partidos políticos, que já tiveram grandes jornais, como o Partido Comunista, na Itália -, e o financiamento comercial, no qual uma empresa faz negócios e tem lucros com o fazer jornalístico. Considerando também a questão do compliance, que é uma espécie de autorregulamentação que o proprietário faz, como você vê o compliance dialogando com a liberdade de imprensa?
Romano – Este é um ponto dos mais espinhosos. Esse problema foi colocado por Immanuel Kant na [obra] “Crítica da Razão Prática” e em “A Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. É a questão da autonomia, de dar a si mesmo a própria norma, regra ou lei, e isso põe a liberdade e a capacidade de prudência, que é um elemento fundamental. Existem determinados limites nos três tipos de financiamento do jornalismo. O que é financiado pelo Estado pode chegar àquela situação trágica, que todo mundo sabia, que era a maior mentira, era a pura manipulação de notícias. No caso dos partidos políticos, eles têm a possibilidade de reduzir o jornal a um mero panfleto de ataque aos adversários e de propostas indecorosas, em termos de conquista do poder. Por exemplo, quando eu estava em Paris, gostava de ler o Libération ao lado do L’Humanité, porque havia uma certa checagem possível das coisas. Aquilo que aparecia no L’Humanité, nem sempre correspondia ao que era denunciado no Libération. O L’Humanité era um jornal de grande porte, tinha muita influência na opinião pública. E o terceiro caso, da empresa jornalística, pode também descambar para uma série de atividades que são paralelas, conexas ao jornalismo, mas que não são jornalismo. É o lugar onde você faz merchandising, tenta comprar acesso a negócios de Estado ou privados, ou entra na fake news para prejudicar o adversário.
Você não mencionou o que conhecemos nos Anos de Chumbo aqui no Brasil, a famosa imprensa alternativa, que era uma forma bastante interessante de comunicar notícias, porque não estava ligada a nenhuma empresa, partido, e, sobretudo, não estava ligada ao Estado. Era um trabalho de levar à população notícias que não eram veiculadas normalmente. Mesmo no interior dessa imprensa alternativa, se vê muitas vezes que as tendências dos partidos, e os programas de conquista do poder, definiam o quadro das opções de veiculação de notícias. Eu não teria posição de dizer, como vários colegas meus, de uma condenação absoluta da empresa jornalística. Aqui no Brasil é muito comum [dizerem], a família Frias, a família Marinho é dona da informação e, portanto, tudo o que vem de lá não presta. Eu acho que é muito complicado. É preciso verificar, com muita cautela, essa presença do negócio no interior da comunicação, e isso não é tarefa fácil. Por outro lado, não vejo uma homogeneidade tão grande, mesmo porque estas redações têm pessoas das mais variadas tendências políticas e ideológicas, e isso estabelece muita tensão no cotidiano da definição das pautas. Então, é preciso ter uma visão importante sobre o que é matéria jornalística, o que deve chegar até a população, porque uma matéria não pode ser veiculada, como não pode ser veiculada, senão chegaremos num ponto de dizer que toda a imprensa age como a Rede Globo agiu nas Diretas Já – foi um episódio de um tremendo descompromisso com a validade da notícia, porque escondeu um fator tão grande e de apelo popular, de gente indo para as ruas. Tem-se aí um problema seríssimo de ética e de moral.
Portal IMPRENSA – Retomando a pauta da fake news, ela está mais no campo da tática ou da estratégia de quem a produz? Ou seja, quando eu falo de estratégia, coloco uma intenção de fazer uma notícia falsa, e como tática, é um recurso que se usa. Onde você vê o prejuízo maior que a notícia falsa cria, quando ela é estratégica ou tática?
Romano – O prejuízo maior, no meu entender, é quando ela é pensada em termos estratégicos. Quando você verifica que é possível manipular o tempo todo a notícia, tendo em vista interesses de órgãos governamentais, estatais, nacionais. Quando, por um escorregão ou uma fraqueza, ou por desatenção até, você cai na fake news por motivo tático, é possível modificar. Agora, se você tem uma empresa nacional ou internacional de produção do que é falso, evidentemente está prejudicando não apenas um país, mas a humanidade como um todo. Neste caso que estamos agora vivendo, do coronavírus, tem a presença do segredo na China, que traz muitas questões sobre a origem e a expansão deste mal, e uma política de Estado, no caso de Trump, tentando negar a periculosidade desta doença e empregando todos os seus poderes para impedir sua veiculação, inclusive usando um canal de propaganda que é a Fox News. Tem todo um trabalho do Estado de dominar a mentira, tendo em vista seus interesses estratégicos. Se, por inadvertência, por falta de dados, você cai numa mentira, pode corrigi-la, é sempre possível corrigir. Mas se você tem uma estratégia, evidentemente não vai corrigir, porque você vai criar outra mentira para justificar a estratégia maior.
Por outro lado, não vejo nenhuma novidade nas fake news – meus colegas ficam um pouco escandalizados quando digo isso. Nós conhecemos a história da humanidade, o mito de Adão e Eva, desde o Paraíso você tem fake news. [Blaise] Pascal, que tem uma carta provincial, a 11ª, diz que perguntou a Adão se ele estava pelado [no Paraíso]. Adão confirmou que sim e Deus deu risada dele – ‘Eis que o homem é como nós, se transformou num Deus’. Essa tentação, essa duplicidade do ser humano é uma coisa que integra todas as éticas, e todas as tentativas de estabelecimento da moral no mundo. O sujeito pode ser veraz uma vida inteira e, de repente, cair na mentira. Tem casos tremendos, muito tristes, como o do rabino [Henry] Sobel, um homem que enfrentou a ditadura junto com Dom Paulo [Evaristo] Arns, e foi pego roubando uma gravata. É algo que mostra a grande labilidade do comportamento humano, e a complexidade destes comportamentos. Eu desconfio muito que os grandes produtores de fake news são os dogmáticos, aqueles que nunca erram – ‘eu estou certo, meu lado é certo, o meu líder é verdadeiro, tudo o que ele diz é verdade, e questionar isso e dizer outra coisa é um absurdo, um pecado’. Para justificar absurdos que esse sujeito faz, você cria a mentira, estabelece a mentira como um elemento de ataque ao outro, não como um elemento de diálogo.
Portal IMPRENSA – Considerando o passado e o futuro, podemos dizer que a liberdade de imprensa é uma conquista do Iluminismo, que foi repassada para o jornalismo? Com a digitalização dos modos de produção jornalística, o jornalismo continuará partindo dessa questão da liberdade de imprensa e do trabalho com o contraditório?
Romano – No livro “Censuras e Razões de Estado” [Censures et Raisons d’État, Une histoire de la modernité politique], Laurie Catteeuw acompanha este movimento de questionamento dos poderes, da igreja e do Estado, bem como da censura que os dois organismos sempre fizeram. Ela começa a história no século XV, onde você encontra pessoas que escrevem pequenos panfletos, os distribuem, e são perseguidas. Tem todo um trabalho de divulgação científica e, ao mesmo tempo, política. Basta lembrar o grande debate que foi coetâneo ao Discurso sobre a Servidão Voluntária, de [Étienne de] La Boétie, que é o Vieille Matin, um jornal que era o despertar matinal do francês. Então, essa luta pela liberdade e pela imprensa é uma coisa bastante anterior ao Iluminismo. Eu diria que o Iluminismo é um dos resultados dessa luta de gente anônima, de gente importante. Tem todo um trabalho de elaboração da circulação de notícias que questionam verdades e dogmas estabelecidos. Sempre que se tem um dogma do Estado ou um dogma eclesiástico, o jornalista ajuda a atenuar o rigor deste dogma e mostra que boa parte dele é elaborada por indivíduos falíveis e, muitas vezes, errados. É bom lembrar aquela frase paradigmática de Galileu, ‘Eppur si muove’, quer dizer, ‘a Terra, no entanto, se move’, não dá pra negar a censura da igreja, do Estado.
Nunca deixou de existir, na imprensa mais rudimentar e naquela mais avançada em termos tecnológicos, o jornalista como aquele indivíduo que reúne o diverso, interpreta esse diverso com rigor lógico e técnico, e o traduz de uma maneira bastante acessível a maior parte dos seus leitores, isso é uma tarefa difícil. Há uma epistemóloga, Judith Schlanger que começa o seu livro “As Metáforas do Organismo” [Les Métaphores de l’organisme] com um problema seríssimo de divulgação científica. Ela pega o Le Monde, que é um jornal de peso, e mostra que um colunista do jornal queria mostrar ao público as descobertas do François Jacob, que ganhou o prêmio Nobel [de Medicina de 1965]. Analisando este artigo, a autora encontra metáforas de ordem econômica, de ordem administrativa, e de ordem biológica. O colunista está se dirigindo a públicos diversos, sabe que quem vai ler o seu artigo e que se está interessado no François Jacob tem uma linguagem própria, tem valores próprios e preconceitos. Então, ele monta esse artigo chamando atenção para aspectos do que as pessoas já conheciam – esse é um problema seríssimo do jornalismo. É necessário que o jornalista tenha, de fato, um rigor técnico para poder também explicar para o leigo aquele conhecimento altamente especializado, que foi colocado pelo cientista. Mas esse problema não foi resolvido, porque entre os cientistas o problema continua. O mundo da ciência é de tal modo especializado que um sujeito da Biologia não entende o que o sujeito da Física está pensando, e vice-versa. A autora diz que chegamos a um ponto em que o cientista, para se fazer entender pelos seus pares, tem que ser jornalista e poeta, tem que saber inventar uma linguagem que seja verdadeira e, ao mesmo tempo, acessível aos demais. Com isso, passo para a segunda parte da sua pergunta. Mesmo que nós tenhamos todos os instrumentos de comunicação mais avançados em termos de informação, o jornalista vai ser sempre essa pessoa que capta a diversidade, procura dar-lhe um sentido, e traduz esse sentido para os outros. Isso exige um treino técnico, uma dedicação e uma disciplina que aqueles usuários do Facebook e do Twitter não têm, porque a natureza destes instrumentos não é a de verificar lógica e empiricamente os dados, é justamente de comunicar. E a comunicação se passa no campo da redundância. Alguma novidade viável só pode ser o jornalista. Mesmo que não existam mais redações, no sentido físico da palavra, terá sempre essa classe de pessoas que se dedicam a dar sentido ao caótico das informações que chegam a todo momento para todos nós. O religioso tem a sua sacralidade, o político também, e o jornalista tem essa função, que me parece altamente digna, de traduzir o diverso.

Fonte: Portal Imprensa