Redação

Fazia um calor insuportável no casarão que, em meados de 1980, sediava a Vara do Trabalho em Mato Grosso. Sem ventilador ou ar condicionado, os funcionários deixavam todas as janelas abertas na esperança de que o rio aos fundos da casa ajudasse a ventilar um pouco o ambiente. As audiências trabalhistas começavam no início da manhã e tinham que ser suspensas no meio do dia por causa do calor.

Era um desses dias de baixa umidade quando, durante audiência, uma vaca botou a cara dentro da janela e mugiu. “Desanuviou o ambiente, as partes resolveram fazer acordo”, conta o ministro Vantuil Abdala, aposentado do Tribunal Superior do Trabalho, e à época juiz do Trabalho. “Não teve quem segurasse a risada. Os advogados olharam para mim com vontade de rir. Como eu ri, eles se sentiram à vontade para rir também.”

Aos 76 anos, o ministro relembra desse e de outros episódios de sua carreira nas diversas cidades onde atuou e por onde viu as condições da justiça trabalhista, que eram precárias, serem transformadas.

Foi juiz em São Bernardo do Campo na mesma época em que nascia o sindicalismo no país como força política. A cidade contava com apenas uma Vara do Trabalho, instalada nos fundos de uma loja de móveis, cujo acesso se dava por uma rua de terra. Ali, um juiz tinha de lidar com mais de 4 mil processos por ano, o que era “absolutamente impraticável”, diz o ministro, motivo pelo qual o Sindicato dos Metalúrgicos chegou a emprestar algumas vezes sua máquina de escrever.

“De uns anos para cá passou-se a olhar com muito mais seriedade e consideração para a Justiça do Trabalho. Hoje as instalações são mais dignas, mais apropriadas”, afirma o ministro.

É crítico do orçamento dedicado à área. Para ele, com a tecnologia, procedimentos administrativos que eram burocráticos puderam ser mais dinâmicos, o que diminui o número de servidores para executar um trabalho. Quando chegou ao TST, por exemplo, o ministro pôde ver com os próprios olhos um departamento que cuidava apenas da costura de capas de processos.

“Em cada fase do processo se punha uma capa de papel grosso, onde era escrito o nome das partes. Essa capa tinha que ser costurada para fixá-la no processo, porque o processo era grosso e não tinha como um grampo parar ali. Com todas as transformações tecnológicas, com o processo eletrônico, por exemplo, não vejo a necessidade de manter o mesmo número de servidores”, explica.

Defende que o processo do trabalho seja o mais simples possível como originalmente foi pensado, ou seja, com linguagem acessível ao trabalhador. A Justiça do Trabalho deve ser célere, diz, “mas também simples, sem criar muitas novidades ou muitas elucubrações teóricas. As partes têm que ter segurança jurídica. Isto é um mantra repetido ultimamente porque é fundamental nas relações de trabalho”.

Em entrevista à ConJur, o ministro falou da sua gestão na presidência do TST, de 2004 a 2006, da constante afirmação de que a Justiça do Trabalho vai acabar e das novas relações de trabalho. Hoje, o ministro toca o escritório Abdala Advogados, que atuou recentemente em processo no qual o TST negou vínculo de emprego entre aplicativo de transporte de passageiros e o motorista que usa a plataforma.

Leia a entrevista abaixo:

ConJur — A Justiça do Trabalho dá conta de julgar todos os processos que tem?
Vantuil Abdala —
 Sinto que vem melhorando não em consequência da melhoria da estrutura e da prestação de serviços em si. Mas sim porque diminuiu o número de ações trabalhistas em decorrência da lei denominada Reforma Trabalhista, que trouxe certas normas que evitam o abuso no ajuizamento dos processos.

ConJur — A imposição do pagamento de honorários de sucumbência para o autor que perde a ação é uma forma de evitar tais abusos?
Vantuil Abdala —
 Havia um número absurdo e incompreensível de ações trabalhistas. Além de estabelecer os honorários advocatícios de sucumbência, a lei obrigou que o pedido fosse líquido, ou seja, que o autor diga o valor que pleiteia para cada verba. De certa forma, a lei veio a coibir esses abusos. Também fez com que os pedidos fossem mais adequados e evitou muita ação aventureira. Ações que num grande número de vezes não eram por culpa do trabalhador, mas por culpa do mau advogado, que era conhecido por “advogado de porta da Justiça do Trabalho”.

ConJur — Como assim?
Vantuil Abdala —
 O trabalhador tem o direito de apresentar sua reclamação de forma oral. Existe um departamento da Justiça do Trabalho com servidores especializados a ouvir o trabalhador e a reduzir a termo aquilo que ele pede, independentemente de advogado. Isso acontece principalmente nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais. E o trabalhador incauto, desavisado, dirige à Justiça para fazer essa reclamação oral. Muitas vezes os “advogados de porta da Justiça do Trabalho” já ficam ali cercando esses trabalhadores e conforme eles vão passando eles perguntam se eles querem entrar com ação trabalhista. A pessoa desavisada diz que está lá para isso. Normalmente eles têm um escritório ali perto, levam a pessoa para lá, assina a procuração e faz uma petição pleiteando mundos e fundos sem que houvesse nenhuma base jurídica para a aquilo, sem que o próprio empregado quisesse pleitear aquilo, objetivando principalmente ver se conseguiam fazer um acordo melhor. Normalmente esses advogados só acompanhavam a ação até a audiência de conciliação. Se fazia o acordo eles recebiam e cobravam cerca de 40% do valor recebido pelo empregado e pronto. Caso não fechasse o acordo, eles abandonavam o trabalhador no resto da ação.

ConJur — Não é o caso então de a Justiça do Trabalho trabalhar no incentivo de métodos consensuais de resolução de conflito para evitar o ajuizamento de mais ações trabalhistas?
Vantuil Abdala —
 Sempre fui um crítico da falta de atenção da Justiça do Trabalho no sentido de evitar os conflitos do trabalho. Eu pensava que se preocupavam muito em aumentar o número de cargos, o número de funcionários, de juízes, aumentar instaurações, aumentar equipamentos, aumentar vantagens, mas se pensava muito pouco em uma atividade orientada para evitar os conflitos do trabalho. Até porque havia algumas decisões que pareciam até estimular isso. Sempre tivemos disposições no Código de Processo Civil que autorizam o juiz a coibir a má fé, o desrespeito à idoneidade da justiça. Na Justiça do Trabalho, não se atuava muito nesse sentido.

ConJur — A Justiça do Trabalho incorporou demasiadamente as regras do processo civil no processo do trabalho?
Vantuil Abdala —
 A Justiça do Trabalho foi criada com uma concepção de simplicidade, até porque se dirigia principalmente ao trabalhador homem simples e humilde. Se pretendeu dar uma redação simples não só ao direito material como às regras de procedimento. Regras simples. Mas passou-se a complicar cada vez mais adotando as regras do processo civil no processo do trabalho. E ficou cada vez mais complicado, cheio de regras e de formalismos.

Originariamente, ela foi criada como um órgão administrativo do Poder Executivo, como um departamento do Ministério do Trabalho. Pela origem, parece que se manteve historicamente um complexo de inferioridade. Só com a Constituição de 1946 que a Justiça do Trabalho passou a integrar o Poder Judiciário. Talvez até por causa da simplicidade das regras, principalmente no processo, ela era olhada por certa parte da doutrina e dos outros ramos do Judiciário com a consideração de uma justiça menor. Se usava a expressão “justicinha”.

A justiça trabalhista também foi composta não só por juiz de carreira, por magistrado, mas também por juízes leigos denominados representantes classistas. Esta circunstância de ter um órgão julgador composto por juízes leigos também fazia com que a imagem da Justiça do Trabalho fosse um pouco menosprezada.

ConJur — Como foi a implementação das novidades trazidas pela Reforma do Judiciário durante a sua gestão como presidente no TST, de 2004 a 2006?
Vantuil Abdala —
 Eu praticamente fui impulsionado pelos fatos. Tomei posse em março de 2004 e em janeiro de 2005 entrou em vigor a reforma, que trouxe inúmeras novidades na área da Justiça do Trabalho. Determinou que fosse criado em 6 meses o Conselho Superior da Justiça do Trabalho que tinha por competência a organização da parte administrativa, de fiscalização e disciplina. Assim como criou a Escola da Magistratura da Justiça do Trabalho. Tínhamos a determinação constitucional para instalar e está funcionando muito bem até hoje.

Também trouxe muitas novidades no campo do direito material e processual porque ampliou a competência da Justiça do Trabalho inclusive para julgar ações entre sindicatos. Trouxe competência para julgar mandado de segurança e para os chamados executivos fiscais, ou seja, quando a parte não tinha recolhido a previdência social devidamente, a Justiça do Trabalho passou a ter competência para executar o empregador que não havia recolhido. Tivemos quase que de imediato estabelecer regras de procedimentos e processuais. Em 3 meses editamos uma resolução que estabeleceu uma orientação para todo o país e pacificou todas as dúvidas que haviam de imediato.

ConJur — À época, o senhor também defendeu o efeito vinculante para as decisões reiteradas do TST. Houve resistência?
Vantuil Abdala —
 Havia uma resistência muito grande sobre a súmula vinculante por parte da doutrina e dos estudiosos do Direito. Mas eu considerava que era muito importante para que houvesse a segurança jurídica. Felizmente foi aprovada a súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal e se viu, depois de anos, sua utilidade. Tanto que hoje o Tribunal Superior do Trabalho e o Superior Tribunal de Justiça têm quase que uma súmula vinculante, porque, tanto pelo processo civil, como pelo processo do trabalho, os juízes devem observar a jurisprudência consolidada da corte superior de cada um desses ramos do Poder Judiciário.

ConJur — A maioria dos magistrados entende que não deve seguir a jurisprudência, como mostrou pesquisa da AMB. A que isso se deve?
Vantuil Abdala —
 A súmula foi de suma importância e é um processo gradativo mesmo. Nossos magistrados tinham e muitos ainda têm certa soberania de não querer submeter ao entendimento da Corte Superior. Mas isso tem sido diminuído, tem sido adotado um novo tipo de pensamento de que é importante saber qual é a regra e que se decida conforme aquela regra.

ConJur — É muito debatido sobre a Justiça do Trabalho estar sob a ameaça de terminar. A Justiça do Trabalho vai sobreviver como está no Brasil?
Vantuil Abdala —
 Fico um pouco tranquilo com essa história porque é pendular. Já vi essa mesma história se repetir por vezes. A mais grave aconteceu na época do então senador Antônio Carlos Magalhães que montou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Poder Judiciário e um dos objetivos era  tentar acabar com a Justiça do Trabalho. É engraçado que eu não sei de onde partiu, mas foi feita uma pesquisa à época para saber se devia ou não acabar com a Justiça do Trabalho: 85% entendeu que não devia acabar. Acabou que ela saiu fortalecida daquele movimento, que se esvaiu. Ficar sem a Justiça do Trabalho é inconcebível. Uma justiça que tem mais de 50 anos, aquela que o homem do povo conhece.

ConJur — Circulam, inclusive, entre os desembargadores cópias atualizadas das propostas parlamentares com o intuito de absorver a competência do trabalho pela Justiça Federal. Existe essa possibilidade?
Vantuil Abdala —
 No fundo é sabido que a Justiça do Trabalho é de grande importância para o equilíbrio das relações sociais no país. O querer-se unir com a Justiça Federal não tem nenhum sentido. Continuaria a existir a mesma coisa, a vara especializada do trabalho, a turma do segundo grau especializado em Direito do Trabalho, em questões trabalhistas e a turma especializada do STJ.

Ou seja, em termos de orçamento, seria a mesma coisa, ou talvez o custo fosse até maior para fazer essa adaptação. Outro aspecto é que o juiz do trabalho já tem uma formação fundada na preocupação com o respeito ao direito dos trabalhadores. Não se poderia misturar juízes da justiça federal com da justiça do trabalho, são formações completamente diferentes, o domínio da ciência jurídica é completamente diferente sob esse aspecto.

ConJur — As plataformas de intermediação de serviços como Uber, Rappi e iFood mudaram as relações de trabalho no país. A desregulamentação é positiva para o trabalhador?
Vantuil Abdala —
 Quando se trata desse assunto, muitos artigos se atêm apenas aos aspectos jurídicos e legais. No entanto, nunca vejo quem pergunte à grande maioria dos trabalhadores de aplicativo se eles gostariam de ser considerados empregados. Se gostariam ou não de ter uma jornada fixa de trabalho, além da obrigação de trabalhar todo dia e ficar à disposição a toda hora, cumprindo todas as ordens e comandos que o empregador estabelecesse.

O que a maioria desses trabalhadores por aplicativo preferiria? Ora, tem que se ver o que é bom para a maior parte, não o que é bom para alguns. Muitos motoristas têm a atividade como complemento do seu ganho, porque pode fazer nos mais variados horários sem prejudicar outra atividade que tenha. Um segundo ângulo é se isso tem sido bom o para o usuário. O sistema de táxis era um feudo e havia uma dificuldade muito grande para melhorar esse sistema.

ConJur — O senhor sugere alguma garantia “clássica” ao trabalhador de aplicativo?
Vantuil Abdala —
 A básica que me parece é a previdência social. Deveria sobrevir uma norma que obrigasse a contribuição para a previdência social e que esse recolhimento ficasse a cargo do aplicativo para garantir que fosse feito. Não que saísse integralmente às custas do aplicativo. O trabalhador pagaria uma parte da contribuição, como paga todo trabalhador, e quem ficaria encarregado de recolher a contribuição para a previdência seria a empresa de aplicativo. Um segundo ponto é o seguro de vida que, inclusive, garantisse um ganho médio quando ele não pudesse trabalhar.

Não se pode querer colocar a fórceps nos cânones tradicionais do Direito do Trabalho novos tipos de relação de trabalho que foram impensadas quando houve as regras básicas do contrato de emprego. São situações que não justificam aplicar os rigorismos das normas trabalhistas ao tipo de relação com um trabalhador que trabalhar quando quer, o dia que quer, a hora que quer, no lugar que quer.

Independente de filigranas de interpretação jurídica da questão de subordinação, de eventualidades, da técnica de verificação de quando há contrato de emprego ou não, independentemente, acho que há de se avaliar: isso é bom para a maioria dos trabalhadores? É. Isso é bom para a sociedade? É. Então, não vamos inventar alguma coisa que possa dificultar o desenvolvimento deste trabalho.

ConJur — Depois de anos em queda, o número de empregos formais tem crescido. Ano passado foram 644 mil carteiras assinadas. O ex-presidente Michel Temer atribui, em parte, à Reforma Trabalhista. O senhor concorda?
Vantuil Abdala —
 Leis não criam empregos. O que cria emprego é o desenvolvimento econômico. Quando a reforma entrou em vigor, a economia estava parada nos primeiros tempos e não houve nenhum aumento de emprego. O aumento de emprego nos últimos tempos foi por causa de algum desenvolvimento econômico, mas aliado a inúmeras outras circunstâncias, principalmente a queda dos juros. A Reforma da Previdência também deu uma confiança muito maior ao mundo do capital, aos investidores, e isso alavanca a economia. A Reforma Trabalhista serve como uma pequena ajuda para que principalmente o micro e pequeno empresário percam um pouco o medo de ter uma formalização do contrato de trabalho. Principalmente pequena e média empresa, que é o maior empregador do país.

A lei às vezes é infeliz e pode arruinar a oportunidade de emprego. Antes da Constituição Federal de 88, a prescrição quanto ao trabalhador rural era indefinida, não era de 2 anos. Tinha que trabalhar para uma fazenda durante 20 anos e depois podia ir a juízo e pleitear direito relativamente aqueles 20 anos passados. Normalmente as ações trabalhistas de empregado rural “quebravam” a fazenda, que não tinha como pagar as ações, o que fez com que diminuísse muito o número de empregados rurais.

O êxodo para as grandes cidades foi basicamente por causa da normatividade quanto ao trabalho rural. As fazendas tinham as chamadas colônias que eram casas que eram construídas para os empregados das fazendas morar. Esses trabalhadores tinham suas casinhas ali, normalmente com um terreno onde podiam plantar legumes, verduras, criar galinhas e engordar os porcos. Logo veio o boom de ações trabalhistas e, pior, havia indenização por tempo de serviço que adquiria estabilidade em dez anos e não podia mais mandar embora. Tudo isso fez com que esse pessoal enchesse as grandes cidades com a formação de favelas e sem condição de trabalho. O jurista espanhol Perez Gontijo diz que não se pode exagerar na interpretação das normas de tutela do trabalho pois do contrário pode acabar por prejudicar aquele a quem se quer proteger. É isso, muitas vezes o Direito pode prejudicar mais do que auxiliar.


Fonte: ConJur, por Fernanda Valente