Redação –
Se fosse possível congelar e descongelar as pessoas como nos filmes, um brasileiro acostumado a bons restaurantes, congelado em 1980 e descongelado hoje, certamente ficaria abismado ao encontrar na carta de uma casa como o Dalva e Dito do chef Alex Atala um vinho produzido em São Roque, como é o caso do Palha, da Vinícola Bella Quinta.
Quarenta anos atrás, vinhos do interior de São Paulo, ou de qualquer outro estado que não fosse o Rio Grande do Sul, eram sinônimo de mau gosto extremo.
Como o conhecimento sobre vinhos de muita gente permanece congelado lá nos anos 80, ainda há quem se espante e torça o nariz, mas cada vez mais vemos surgir vinhos de qualidade vindos das regiões mais inesperadas do Brasil.
Além dos Pampas
Nos últimos anos, houve um boom de vinícolas por onde antes se considerava impossível plantar uvas viníferas. São na maioria vinhos de colheita de inverno. Feitos a partir de uvas vindimadas no meio do ano, em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Pernambuco, Goiás e até do Distrito Federal.
Essas regiões eram consideradas inadequadas para o plantio de uva vinífera porque concentram muita chuva no verão, época da colheita. A chuva traz doenças para os bagos, que são mais frágeis do que os de uva de mesa. Por isso, o Sudeste e o Centro Oeste só conseguiam produzir uvas e vinhos de mesa.
A solução veio nos anos 2000 quando o agrônomo Murillo Albuquerque Regina, então pesquisador da Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais), criou um sistema de poda capaz de inverter a época da colheita. Tornou-se possível assim colher as uvas no inverno, quando não chove, faz calor durante o dia e frio durante a noite.
A primeira vinícola a trabalhar com esse sistema de poda, a Estrada Real, foi fundada em 2001 pelo próprio Regina e seus sócios, em Três Corações, Minas Gerais.
Nos anos que se seguiram, surgiram outros produtores, principalmente na região onde o Sul de Minas Gerais faz fronteira com São Paulo, como as vinícolas Luiz Porto, em Cordislândia (MG), a Casa Verrone, em Itobi (SP) e a Maria Maria, em Três Pontas (MG). Todos com vinhos de muita qualidade.
O lançamento dos primeiros rótulos da Vinícola Guaspari, de Espírito Santo do Pinhal (SP), em 2013, que além de qualidade entrou com um bom trabalho de marketing, fez o movimento ser conhecido do público consumidor de vinhos. Na mesma época, surgiram a Pireneus Vinhos e Vinhedos, um pequeno projeto em Cocalzinho de Goiás, próximo a Pirenópolis (GO) e a Villa Santa Maria, em São Bento do Sapucaí (SP).
Fundada em 2016, a Anprovin (Associação Nacional de Produtores de Vinho de Inverno) tem 35 associados hoje. “Essas 35 vinícolas produzem anualmente cerca de 500 mil garrafas, o equivalente a 400 mil litros anuais. São, ao todo, 267 hectares plantados de vinhedos somente entre os associados”, diz Matheus Cassimiro, gerente-executivo da entidade.
No mês passado, a associação registrou e lançou a marca coletiva “Vinhos de Inverno”. Com isso, o uso da expressão em rótulos ou publicidade passa a ser restrito aos associados da Aprovin.
O sucesso da primeira geração de vinícolas que trabalhavam com colheita de inverno foi a semente da proliferação de negócios do gênero por todo o país.
Já em 2014, cinco funcionários da Guaspari, incluindo o enólogo chileno Cristian Sepúlveda, montaram a sua própria vinícola, a Terra Nossa, em Espírito Santo do Pinhal. Além de produzir os próprios vinhos, começaram a prestar consultoria para outros empreendedores.
“Estamos fazendo 32 colheitas no momento”, conta Sepúlveda. “Em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, Pirenópolis e Rianópolis, em Goiás, Garanhuns, em Pernambuco, fora São Paulo e Minas Gerais.”
O que une os vinhos de colheita de inverno?
“Para fazer vinhos de colheita de inverno, a gente precisa principalmente de altitude”, diz Sepúlveda. “Acima dos 650 metros. E ter uma estação seca longa com boa amplitude térmica (calor de dia e frio à noite)”.
Ele explica que, com a seca, é possível colher as uvas com um grau de maturação excelente. Isso faz com que os vinhos de inverno tenham em comum uma ótima estrutura, bom corpo, taninos redondos e bem amaciados. Por outro lado, a amplitude térmica preserva a acidez, o que gera brancos elegantes e frescos.
“Os solos, no entanto, são muito diferentes. As características dos vinhos vão depender também muito disso”, conta.
Syrah é a variedade tinta de longe mais explorada pelos vinhos de (colheita de) inverno. Sauvignon blanc, a branca. A cabernet franc vem crescendo.
O Sacramentos Sabina Syrah 2021, o vinho brasileiro mais bem pontuado pelo Guia Descorchados 2022, é um vinho de inverno. A Sacramentos Vinifer fica na famosa Serra da Canastra, conhecida por seus queijos.
“Resolvemos fazer um teste com uvas e vinho, depois de saber da técnica da dupla poda. Começamos a plantar em 2018”, diz Jorgito Donadelli. O vinho que levou o prêmio de melhor tinto brasileiro no Guia Descorchados foi feito na primeira safra da vinícola. Ou seja, a tendência é melhorar muito.
Até no Mato Grosso, na Chapada dos Guimarães, estão produzindo vinhos finos. “O primeiro vinhedo foi plantado em setembro de 2020”, conta o agrônomo Luiz Cesar Lino de Oliveira, proprietário da Locanda do Vale. “A primeira vindima aconteceu em agosto de 2021”. Com ela, foi produzido vinho suficiente para 650 garrafas. “Já engarrafamos 140”, diz Oliveira.
“Essas garrafas não passaram por madeira. O restante ainda repousa em barris de carvalho francês. Estamos degustando este primeiro lote com amigos, sommeliers e enólogos conhecidos. O retorno tem sido bastante animador”.
Até no calor de Ribeirão
Os produtores costumam buscar as áreas mais elevadas de cada região. Apesar de estar em Ribeirão Preto, cidade do interior de São Paulo conhecida por ser muito quente, a Vinícola Terras Altas fica num local fresco, a 750 metros de altitude, 220 metros acima da área urbana. “Não é quente demais”, diz a enóloga Luísa Tannure.
“A baixa pluviosidade de Ribeirão Preto proporciona um bom terroir no inverno, quando a amplitude térmica é alta”. O projeto, que começou em 2016, já trabalha com uma vinícola própria, mas a infraestrutura para o turismo (loja, restaurante e wine bar) ainda está sendo construída.
Novos destinos para explorar – e degustar
O enoturismo é certamente parte importante da equação de muitos desses novos negócios. Recentemente, por exemplo, a Luiz Porto Vinhos Finos mudou sua sede da desconhecida Cordislândia para a charmosa Tiradentes, ambas em Minas. Em vários cantos do país, já se pode encontrar vinhedos e vinícolas abertos à visitação. Isso deve mudar a relação da maioria dos brasileiros com o vinho.
No Planalto Central, por exemplo, está em curso uma revolução. Além das vinícolas que já operam em Goiás, há um projeto de dez produtores rurais dos arredores da capital federal para produzir uvas e construir uma vinícola em conjunto com capacidade para processar os vinhos dos dez sócios e de outros tantos produtores que surgirem no futuro.
Quase pronta e já operando parcialmente, a Vinícola Brasília foi um investimento da ordem de R$ 12 milhões e tem capacidade para processar 350 mil litros de vinho por safra.
Sete dos dez sócios têm fazendas dentro do distrito federal, no assentamento PDA-DF, pólo de produção de soja. Os outros três estão em Goiás, mas na divisa. O projeto é novo, de 2018, a maioria dos sócios está começando a produzir vinhos e a receber turistas agora em suas fazendas. Isso significa que muito em breve Brasília se tornará um destino de enoturismo.
Por lá há, inclusive, um vinhedo dentro do Plano Piloto. A Vinhedo Lacustre é uma pequena vinícola instalada entre as casas do Lago Norte. Ali o enólogo Carlos Sanabria e o arquiteto Marcos Ritter têm feito experiências muito interessantes com vinhos de baixa intervenção e organizado animados encontros para pequenos grupos nos fins-de-semana.
“Para mim, era muito importante fazer um vinho no Cerrado”, diz o enólogo. Gaúcho de Bento Gonçalves, Carlos mora em Brasília, mas viaja para o Sul todos os anos para produzir os rótulos de sua vinícola cigana Vinhos Sanabria.
“O terroir aqui é perfeito. Pode apostar. Em 20 anos, Brasília será um importante pólo produtor de vinho”.
Em 20 anos, o Brasil inteiro terá diversos pólos de vitivinicultura e enoturismo. Será interessante de ver. E provar.
ILUSKA LOPES – Jornalista, Sommelier e proprietária da IPANEMA WINE BAR. Especialista em Turismo, Professora, Locutora, Colunista e Diretora de Redação do jornal Tribuna da Imprensa Livre. iluska@tribunadaimprensalivre.com
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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