Por Carlos Mariano

No último dia 3 de agosto, um dos mais emblemáticos e importantes jornalistas, crítico  musical e pesquisador da cultura popular brasileira nos deixou, José Ramos Tinhorão.

Meu primeiro contato com José Ramos Tinhorão foi a leitura do seu primeiro livro publicado, o clássico “Música Popular: Um tema em debate”, de 1966, quando eu ainda era estudante de graduação do curso de História. Nessa obra ousada e contundente, Tinhorão busca refletir no viés da dialética marxista, o campo da chamada cultura popular. Ao fazê-lo, produz um texto muito vigoroso e crítico que causou muita polêmica na opinião pública e ainda hoje é de suma importância, pois, entre outras coisas, traz uma reflexão sobre a história da música popular brasileira. 

Henricão, José Ramos Tinhorão e Carmen Costa no programa “Tudo é música” da TV Educativa do Rio Acervo. (IMS/Divulgação)

No capítulo intitulado “por que morrem as escolas de samba” , Tinhorão começa o texto metendo logo o pé na porta: diz que o carnaval do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, ganho em 1965 pela Acadêmicos do Salgueiro, traz seu ápice mas, também, pronuncia seu declínio. Para o crítico, o carnaval do Rio teve, com sua espetacularização estética e visual, o seu ponto culminante. Contudo, também avaliou que esse era o marco do início da desagregação da escola de samba como fenômeno de caráter folclórico e popular. Antes de fazermos algumas considerações sobre esse capítulo do livro de Tinhorão, é importante  analisar o contexto histórico em que o texto foi escrito. Em 1966 estávamos em plena Guerra Fria e o Brasil estava ainda debutando em uma das páginas mais tristes da sua história: o período da ditadura militar. Logo, era natural que um jovem acadêmico que tinha no marxismo dialético seu horizonte intelectual, elaborasse uma crítica sobre o momento vivido pelas escolas de samba, levando em consideração a necessidade de emancipação das classes populares do domínio da burguesia conservadora. E esse domínio para Tinhorão não se expressava tão somente na luta de classes pelo poder econômico. Esse domínio também se manifestava no plano cultural.

Portanto, Tinhorão desenvolvera sua crítica ácida aos rumos que as escolas de samba passaram a tomar, principalmente a partir da década de 1960, na chamada revolução salgueirense, liderada por Fernando Pamplona. 

Millôr Fernandes e José Ramos Tinhorão. (Reprodução)

Tinhorão, em sua reflexão, dizia que as novidades estéticas trazidas pelos artistas da Escola de Belas Artes no Acadêmicos do Salgueiro era uma maneira da classe média tomar a escola de samba das mãos dos negros afrodescendentes, seus verdadeiros criadores. Tinhorão ainda fez uma profecia: todas aquelas inovações que tornavam os desfiles das escolas de samba algo parecido a uma marcha militar e as transformaram em produto de uma indústria cultural que tinha na televisão seu ponto máximo, criaria um calvário cujo samba iria se definhar até sua morte.

Henfil, Jose Ramos Tinhorão, Sérgio Augusto. (Reprodução)

Quando olhamos para a história do tempo presente das escolas de samba não resta dúvida que todo esse processo descrito no texto de Tinhorão não só não cessou, como andou ainda mais rápido. A crítica dele em identificar um mal-estar no processo de aproximação entre as escolas de samba aos atores sociais externos a ela é pertinente. Porém, um dos problemas que vejo nessa reflexão é a sua visão sobre folclore. Tinhorão, em seu texto, classifica a escola de samba como um elemento do folclore criado pelos negros afrodescendentes excluídos pela Primeira República e sentencia seu fim como instituição cultural pelo fato de seus componentes criarem estratégias de aproximação com setores da sociedade na luta pela hegemonia cultural do carnaval moderno. Tinhorão classifica o sambista negro como ingênuo, quando este busca uma estratégia de convivência para vencer e virar protagonista na disputa pela hegemonia do carnaval. A suposta ingenuidade do sambista classificada por Tinhorão é fruto de uma ideia que o pesquisador tinha sobre folclore na época, e que depois do debate e reflexões teóricas no campo das ciências humanas, provou que era passiva de crítica. A ideia era de que o folclore produzido pela cultura popular fosse algo para ser preservado e conservado em torno de si mesmo e no passado.

Quaisquer mudança e evolução seriam vistas como uma contaminação social que levaria o folclore popular a uma degeneração e morte. Ela seria cooptada e adulterada pela cultura das classes dominantes. 

José Ramos Tinhorão e Hermínio Bello de Carvalho num encontro fictício em bar de Paraty. (Fotomontagem / Abílio Guerra)

Essa  ideia de folclore defendida por Tinhorão, já tinha sido refutada numa obra célebre de Edison Carneiro: “A dinâmica do folclore”, de 1950. Nela, Carneiro, um dos mais eloquentes estudiosos do folclore, afirma justamente o contrário. Existia, para Carneiro, uma dinâmica social interagindo o tempo todo por meio das intermediações feitas entre os atores populares criadores de uma tradição popular e as demais formas expressivas da cultura nacional, inclusive o próprio Estado. Portanto, dezesseis anos antes de Tinhorão lançar sua crítica sobre as mudanças que assolavam as escolas de samba, Carneiro já dizia que a cultura popular é um elenco de fenômenos sociais livres da interferência do Estado, sendo um lugar de exposição das mais legitimas reivindicações políticas das classes populares em busca de direitos sociais. 

Tinhorão, o compositor Monarco, e a jornalista Elizabeth Lorenzotti, no lançamento da biografia do pesquisador, na Livraria Folha Seca, no Rio, em 2010. (Divulgação)

É fato que as escolas de samba ao interagirem com as outras camadas e esferas sociais eram influenciadas e sofriam, sim, modificações na sua dinâmica de funcionamento. Mas isso, era um processo de escolha e de estratégia consciente das próprias escolas de samba. É um erro pensar que no processo de relação entre elas e a sociedade, os sambistas seriam figuras ingênuas que não sabiam a dimensão clara do que estavam fazendo. Pelo contrário, todas as decisões tomadas por eles visavam defender, divulgar e expandir na sociedade o samba de sambar inventado por eles no início do século XX na chamada Pequena África. Também era de seus interesses influenciar e interagir através da cultura negra na dinâmica da sociedade hegemônica. Existia uma circularidade cultural entre os envolvidos na disputa pela hegemonia do carnaval carioca que Tinhorão não observou. A circularidade cultural, como bem salientou o brilhante historiador Ginzburg, pressupõe que a influência entre a cultura dos segmentos dominantes e os subalternos move-se de baixo para cima, bem como de cima para baixo. 

Até hoje as escolas de samba vivem o dilema entre tradição e modernidade na sua caminhada histórica. E esse dilema é feito de avanço e recuos nas estratégias dos sambistas negros em manter a escola de samba como elemento hegemônico no carnaval e o samba como identidade nacional.

José Ramos Tinhorão passou mais de 40 anos juntando raridades, entre discos, livros, fotografias, folhetos e periódicos que ajudaram a contar a história de fatos e personagens da música popular brasileira. Publicou 20 livros, entre os quais História Social da Música Popular Brasileira, As Origens da Canção Urbana e A Música Popular no Romance Brasileiro. (Divulgação)

Nos últimos anos é recorrente as escolas de samba de todos os grupos de desfiles desenvolverem enredos que ressaltam o lugar de fala do negro. Recriam os patrimônios herdados dos seus ancestrais africanos para dialogarem com os novos desafios e situações históricas concretas. Talvez essa tendência mostre que as escolas de samba percebendo o momento atual do Brasil, em que a intolerância e o racismo dão as cartas do jogo político sombrio bolsonarista, resolveram fazer, como a Beija Flor fará também para o seu próximo enredo: empretecer seu pensamento se reconhecendo como a voz da resistência negra antirracista. 

José Ramos Tinhorão. (Crédito: Paulo Pinto / Reprodução)

“Música popular – Um tema em debate” bem como todo pensamento de José Ramos Tinhorão é sem dúvida um legado para as ciências humanas e para a memória de uma cultura popular.

Sua leitura será sempre importante para mantermos acesa a chama das nossas reflexões dialéticas sobre escolas de samba e seu papel como lócus da cultura popular da classe trabalhadora de maioria negra.

Bibliografia:

  • Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo, Editora Schwarcz,1986. 
  • Tinhorão, José Ramos. Música popular: um tema em debate. São Paulo,  Editora 34, 1997. 
  • Carneiro, Edison. Dinâmica do folclore. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 2008.

Veja também: Roda Viva com José Ramos Tinhorão | 03/04/2000

CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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