Por Antonio Veronese –
Seis meses se passaram e, para felicidade geral dos Fragoso, os dez contos de réis acordados com o comendador continuavam a chegar, rigorosamente, na primeira semana de cada mês. Às gordas notas, no início, acompanhavam sempre breves bilhetes nos quais o remetente pedia mais e mais detalhes do dia a dia de Bentinho, além de reiterar sua infinita gratidão pela carinhosa tutela exercida pelos Fragoso…
Com o passar dos meses, contudo, a constância da correspondência tornou desnecessárias as gentilezas e os envelopes, ainda que pontuais, passaram a portar somente o dinheiro, sem outras formalidades. Aos Fragoso, especialmente a Lilina, isso pouco importava.
– Que viessem somente as notas mesmo, sempre novinhas, “cheirando a dinheiro”! na sua chula expressão. Notas que contava e recontava com indisfarçada cupidez.
– Que não escrevesse nada mesmo!, desdenhava a mulher. Poupava-lhes da obrigação da resposta. O importante é que viesse o dinheiro…O dinheiro!!, enfatizava ela, roçando o polegar contra o indicador no gesto característico. E que dinheiro! Como nunca se viu!!
A repentina abastança começou por fazer a alegria do turco da casa “Tudo Para tua Casa”. Primeiro foi a realização do sonho de ter uma geladeira em casa… sob recomendação do turco, escolheram a marca “frigidaire”, nome que Fragozinho tentava explicar aos filhos dizendo que ela “fazia frio ao aire que guardava lá dentro de si” (sic)…
A dita, uma vez instalada na pequeníssima cozinha, foi objeto de uma adoração quase totêmica. As crianças passaram a disputar a tapas um copo de água gelada, que engoliam às gargalhadas, fazendo caretas mil ao experimentar pela primeira vez a “gelação” invadindo suas entranhas…Depois foram os novos sofás brancos, sobre os quais os parrudos pulavam sem parar!! Fragosinho fora contra à cor…
-Vai sujar!!, dizia.
-E daí, respondeu-lhe a mulher, se sujar, compramos outro!!
Em seguida, uma nova cômoda de seis gavetas; depois a penteadeira com espelho francês, que Lilina fazia questão de chamar somente de “toucador”, fazendo bico..; uma prateleira para a cozinha, repleta de novos pratos coloridos… e ainda uma “linda” mesa de fórmica azul com quatro cadeiras, afinal Bentinho bem podia voltar a comer depois que a família terminasse!!…
Apesar da extremada dedicação, Lilina não conseguia gastar todo o dinheiro antes que chegasse a nova remessa. E, então, passou-se a comprar-se também do melhor no Secos & Molhados do espanhol Dominguin. E como se comprava! Grandes peças de mortadela, sardinhas portuguesas afogadas em óleo, das quais se empanturravam as crianças. E garrafas e mais garrafas de azeite português, azeitonas, queijos e mais queijos, postas e mais postas de bacalhau norueguês, galinhas, porcos e carnes a granel, quilos e mais quilos de castanhas e nozes de sabores totalmente desconhecidos às papilas fragozianas …E manteigas e os amanteigados todos, e as compotas de frutas e as frutas ainda mais, ajuntados a estas, chocolates e doçaria sem fim, a lambuzar até a alma os felizardos glutões num interminável festim.
E os vinhos, ah os vinhos!… Os tintos, menos apreciados devido aos sabores mais robustos e menos açucarados; os “porto” adorados por Lilina que os sorvia estalidando os beiços carnudos num êxtase voluptuoso, espargindo gemidos quase sexuais que faziam o marido recordar-se, saudoso, dos embates de priscas eras matrimoniais; e ainda os verdes do Minho português, apreciados assim-assim; os brancos açucarados alemães, dos quais o acanhado Fragosinho empapava-se sem se preocupar com safra ou temperatura; garrafas e mais garrafas de suspeitíssimos “digestivos”, que asseguravam terríveis dores de cabeça matinais e um licor de pera que, confundido com refresco, quase matou de coma alcoólica uma das crianças…
A truculenta virago, já gordíssima nos tempos de penúria, agora, na fartança das patuscadas cotidianas, não cabia mais em roupa alguma. Justificativa, mais que suficiente, para suas extravagâncias na modista, que passou a trabalhar quase que exclusivamente para ela e seus rebentos gordalhões. A seu guarda-roupa, antes de parcíssimas chitas, acrescentavam-se, a cada semana, mais e mais sedas e linhos, musselinas e brocados, crepes e veludos, em cortes extravagantes e gosto e cores duvidosos. Repetir roupa de missa aos domingos, jamais !
Boa roupa, comida farta e dinheiro no bolso a tudo modificam, especialmente o ângulo dos narizes em relação à linha do horizonte. Comentava-se na cidade a mudança de atitude dos Fragoso, antes pessoas acessíveis e simplórias, agora tomadas de um afetado ar de “noblesse”. Era divertido vê-los adentrar a igreja com seu passo marcado, como que despencados da corte de Luiz XVI. Ou ainda ver seu cortejo “real” na praça da matriz, apesar da fealdade dos semblantes e da rudeza dos modos .
Tudo ia bem, bem demais na terra de Deus!
Mas, o destino tem caprichos, ah, e como tem…
(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)
ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.
Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.
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