Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva à Tribuna da Imprensa livre, a compositora Silvia de Lucca afirmou: “Meu trabalho se encaixa nessa nomenclatura – música contemporânea – porque sou deste nosso tempo e uso alguns elementos de determinados modos que só são possibilitados desde então, mas nem por isso posso dizer que tenho apreço especial pela música contemporânea, digo, por tendências estilísticas pertencentes a ela. Quero dizer que não é o estilo, linguagem ou gênero que conquistam a minha atenção, interesse e gosto prioritariamente. Considero e trato essas delimitações como simples “meios” de se atingir resultados, finalidades e objetivos específicos.” Graduada em Piano e Psicologia, a compositora destacou:
“A Psicologia orienta-me até hoje nos projetos musicais que idealizo, nas aulas que ministro, nas palestras que dou, principalmente no tipo de abordagem, de explicação, de exemplos, de foco, de linguagem corporal, de trato em geral”.
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Silvia de Lucca: Essas três nomenclaturas classificatórias, usadas como sinônimas no
Brasil, não definem de imediato o que de fato a especificidade artística compreende.
Frequentemente causam dúvidas, equívocos e discriminação. Em resumo, distanciam o
nosso público ouvinte porque incluem conceitos com os quais, em geral, existe pouca
ou nenhuma familiaridade. Diferente disso, a simples aproximação com objetos
(partituras, CDs etc.) e práticas (fazer música na escola, frequentar salas de concertos
etc.) que carregam tais termos, e que cada envolvido pudesse fazer isso ao seu modo,
aqueles nomes seriam assunto de menor importância. Ou seja, a vivência possibilitaria
com que algo arbitrário como costumam ser os títulos, se não consensuais, ao menos
fossem indicadores de algo definido. Até lá fico geralmente com o “música de concerto”,
justamente por ser o mais aberto, podendo eu, por exemplo, engatilhar esclarecimentos
mais facilmente no caso de uma reação titubeante de quem ouve. Porque dele não há
pré-conceitos como os outros que não raramente sugestionam música racional ou
elitista para o “erudita” e música antiga ou antiquada para o “clássica”, entre outros.
Prestes Filho: Seu primeiro instrumento foi o piano. Este instrumento influenciou a sua trajetória e obra, tanto que a composição “Chacona” está entre as que inauguraram a atual compositora. Não é verdade? Paralelamente, à sua graduação em piano você se formou em Psicologia. Este entrelaçamento científico e prático foi importante para o nascimento de sua expressão artística?
Silvia de Lucca: Em uma formação musical convencional, fundamentada na tradição
europeia, é esperado que para o estudo de Composição e Regência se tenha um bom
domínio do piano, isso porque ele propicia aproximar-se de muitos elementos e
experiências musicais que são pré-requisitos para um conhecimento mais abrangente e
profundo que aquelas especialidades geralmente requerem.
Para exemplificar, considerem que (1) o teclado composto de 88 notas contém uma larga extensão do grave ao agudo; (2) o uso das duas mãos e de todos os dedos do instrumentista permite abranger um número grande de notas tocadas sucessiva ou simultaneamente, rápida ou lentamente, combinadas das maneiras mais variadas; (3) a leitura em duas pautas e duas claves habilita desde o começo o aluno a fazer uma conexão visual, sonora e interpretativa múltipla; (4) atua enquanto instrumento solista ou fazendo parte de variados grupos instrumentais, menores ou maiores, incluindo a orquestra; (5) é capaz de interpretar músicas de diferentes épocas, estilos, linguagens e gêneros etc. Com tudo isso, é fácil entender que o meu caminho para a Composição estava tecnicamente bem iniciado após muitos anos de estudo desse instrumento, o que a mim pareceu um processo bem natural. Assim, poderia considerar que ele influenciou indiretamente a minha trajetória e obra. Quanto à minha Chacona escrita para piano, tratou-se de uma solicitação do Almeida Prado quando professor de Composição no XII Festival de Inverno de Campos do Jordão em que frequentei. Ele pediu-nos para compor uma peça para piano justamente por saber que todos o tocavam de algum modo, além de costumeiramente existir um nas salas onde se ensina música, como era o caso de lá. Enfim, sobre ter feito graduação em Piano e Psicologia simultaneamente, nunca considerei que minha expressão artística na Composição tenha sido consequência direta ou indireta dessa combinação.
Diferente disso, tenho plena consciência do quanto a Psicologia orienta-me até hoje nos projetos musicais que idealizo, nas aulas que ministro, nas palestras que dou, principalmente no tipo de abordagem, de explicação, de exemplos, de foco, de linguagem corporal, de trato em geral.
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem como compositora? Você estudou violão, órgão, viola, canto coral e assistência de regência sempre pensando na composição musical? Sua identidade musical brasileira era reconhecida pelos professores, quando você estudou cinco anos nos Conservatórios das cidades suíças de Zurique e Genebra? Foi na Suíça que aconteceu seu primeiro concerto autoral. Qual foi o repertório apresentado?
Silvia de Lucca: Crescer mergulhados na diversidade cultural brasileira, deixando-nos
envolver, passa a ser uma notável marca internacional de maleabilidade em qualquer
área, creio eu. Nossas fronteiras pessoais se alargam sobremaneira e, aparentemente,
com uma satisfação peculiar. Talvez isso justifique porque colegas compositores das
últimas gerações, ao conhecer novas propostas e técnicas, trafegaram de uma estética
a outra de modo mais ou menos orgânico com aparente facilidade, nada devendo sobre
o compromisso e domínio em cada uma. A fidelidade a uma determinada linguagem,
quando existia, era pontual: “que seja eterno o quanto dure!”, já disse o poeta. Percebo
que aquela abertura “deixe(mos) entrar” se mantêm entre nós, agora facilitada e
ampliada pelas interconexões via internet, e por isso talvez com menos consciência e
sabor; liberdade que ilusoriamente parece sempre ter estado aí. Aliás, excesso de
liberdade que angustia e aprisiona, às vezes sinto eu, quando tudo posso e tanto me
seduz. Uma encruzilhada constante! Paralelamente não posso deixar de considerar o
risco de dizer(mos) um sonoro “sim” ao que talvez não merecesse, sem avaliar a fonte
e os benefícios, como afirmou com ênfase o professor inglês Christopher Bockmann,
com quem tive aulas só por alguns meses, mas foi bem significativo. Tendo vivido dois
anos em Brasília, ele observou a nossa fácil, rápida e notável assimilação ao novo e
diferente, mas sem preocupar-nos em “peneirar” o que chega. Assim respondo-lhe o
que comigo também ocorre: desejar e poder experimentar como compositora brasileira
a diversidade que aqui está, mas sabendo não poder ou dever abarcar tudo, deixo-me
solta em minha própria linguagem, que as muitas influências que vivencio sejam
filtradas espontaneamente pelo meu próprio eu do momento. Isso inclusive era e
continua sendo uma característica perceptível pelos professores naquela época, além
de especialistas e público de fora que reiteram a diversidade de ritmo, colorido e humor
de minha obra. Portanto e curiosamente, para poder dar conta da multiplicidade
cultural que existe no meu entorno e em mim mesma, a qualse debate constantemente
para passar de intenção a ação, além dos estudos que citou, eu precisei e optei em me
envolver com mais atuações dentro da música para além da Composição:
instrumentista, camerista, educadora, pesquisadora, produtora etc., contudo sempre
ciente de que a criação tem prioridade em meu ser.
A respeito do meu primeiro concerto autoral em Zurique (1990), espontaneamente ofertado e organizado por uma conhecida cidadã francesa há anos moradora da cidade, evento do qual sempre me orgulho dada a boa repercussão quando ainda concluía minha especialização, compreendeu uma somatória de obras que naquele momento pareceu bem representar-me, ou seja, justamente a minha diversa possibilidade: solos, duos, trio, quarteto em diferentes linguagens.
Prestes Filho: Em poucas palavras como você definiria cada um dos seus orientadores: Schnorenberg, Kelly, Santoro, Ficarelli e Escobar, no Brasil; e Lehmann e Balissat, no exterior.
Silvia de Lucca: Eu destacaria um denominar comum entre todos: experiência, sabedoria
e gosto pelo que faziam, além de reconhecimento, valorização e incentivo ao meu
trabalho, cada um manifestando isso ao seu modo. Poderia ainda dividir o grupo entre
os brasileiros (apesar de Michael Kelly ser dos EUA, foi morador e profissional aqui muito
atuante) e os suíços. Justamente relacionado ao assunto anterior, o primeiro grupo não
tinha um compromisso estrito com um tipo específico de corrente estética e, portanto,
não esperavam isso de mim. Buscavam coerência naquela que eu havia escolhido no
momento, e restringiam-se a dar importantes orientações de outras naturezas. Lembrome da admiração que me causavam pelo domínio que tinham do chamado “métier”. Já
os dois suíços tinham especial vivência e apreço pela chamada Segunda Escola de Viena,
o que também foi um importante referencial para mim, mesmo que indiretamente, pois
embora não me identificasse com essa linguagem em si, já reconhecia a importância de
melhor conhecê-la. Inclusive, marcante foi meu professor Hans Ulrich Lehmann, no
decorrer do curso, admitir com modéstia que pouco poderia ajudar-me no meu estilo
particular, ele que estava na importante função de Diretor do Conservatório de Zurique
durante muitos anos, tendo sido aluno de Messiaen e Stockhausen. Mas sim, ele
orientou-me com dedicação e maestria, e comprovou apreço à minha escrita que à
época se delineava, por exemplo sendo o mediador da encomenda da minha “Dois
Ensaios” para clarinete que serviria como peça de confronto para um tradicional
concurso da cidade, a qual acabou tendo muito boa repercussão. Para finalizar gostaria
de enfatizar o reconhecimento que sempre tive ao papel dos bons professores, pelo que
são capazes de seduzir-nos, influenciar-nos, direcionar-nos e comprometer-nos com o
objeto do estudo e, no ápice de tudo, levar-nos a um especial estado de (auto)satisfação,
status no qual encaixo a lista dos nomes citados acima.
Prestes Filho: No “Preludio Encontro das Águas” você apresenta a paisagem e o som do Brasil?
Silvia de Lucca: Sim, era esperado pelo colega músico Felipe Ávila que a encomendou
que essa peça fizesse direta relação com o tema Amazonas, já que esse seria o título do
CD que ela iria integrar. Entre alguns instrumentos possíveis escolhi somente o
violoncelo, o que sabia ser um desafio para retratar esse fenômeno da natureza. Embora
possa ser considerado refinado ou requintado para a proposta, o timbre do violoncelo
tinha a poesia e a profundidade que me interessava. Pode ser que se já tivesse
conhecido o Amazonas, e sentido presencialmente sua natureza selvagem, teria feito a
escolha de um outro instrumento mas, de qualquer modo, entendo que tudo pode
admitir uma interpretação estilizada, além de sentir, sim, muita poesia naquele habitat
de mata virgem. Para inspirar-me fiz com prazer uma pesquisa sobre os rios Negro e
Solimões. Foi interessantíssimo conhecer as causas para haver um intercâmbio diferente
no percurso dos mesmos, ou seja, estarem longamente lado a lado, porém sem se
misturarem. Isso era fato suficiente para eu idealizar para a composição o que em
música se chama contraponto: duas ou mais linhas que, apesar de paralelas,
correlacionadas e de importância similar, delineiam, cada uma, suas narrativas
independentemente.
Prestes Filho: Quem são aqueles críticos que hoje realizam um trabalho sobre música contemporânea, no Brasil e no exterior, que merecem seu reconhecimento? Seria o seu projeto “Eu adoro música, mas não entendo nada!” uma proposta de aproximar o público da música contemporânea. Em especial, aquele público que não tem intimidade com a música de concerto?
Silvia de Lucca: Não tenho condições de tratar sobre críticos de música em geral, muito
menos os que atuam no exterior, menos ainda tenho condições de compará-los para
saber reconhecer os que aplaudo pelo fazer. Pode ser que isso se justifique porque eles
estejam podendo atuar muito pouco devido à baixa demanda global do que possa ser
incluído honestamente na terminologia Arte (acentuando propositalmente a distinção
entre Cultura), ou porque estejam fora de meu alcance no cotidiano. Por consequência,
escolho falar dos jornalistas que têm música como foco regular em seus trabalhos,
fazendo crítica ou não, que têm um papel muito importante na disseminação do
conhecimento, das novidades e, sobretudo, daqueles que se dedicam à alta
porcentagem de músicas que não são privilegiadas pela grande mídia. Aqui não faço
referência à música contemporânea, mas toda àquela vasta gama de estilos, gêneros e
vertentes do passado e de hoje que não prioriza a obtenção de lucro comercial, de
sucesso rápido, de “popularização” no mau sentido. Destaco somente dois dos que
melhor conheço e reconheço pelo bem que fazem nesse sentido e admiro pela
abordagem, profundidade, sensibilidade e incansável busca de mais e mais informações
atualizadas e conhecimento: Clovis Marques e Irineu Franco Perpétuo.
Do primeiro sinto muita falta da atuação que tinha em São Paulo, na Revista Concerto e no site Opinião e Notícia. Estou sempre na torcida para que seu trabalho volte a ser regular na área e por aqui. Do segundo, admiro estar sempre presente e envolvido, atento, entusiasmado, inclusive apoiando nossa classe. Seu jeito alegre e informal, sem deixar de sempre escolher e disseminar ricos conteúdos com argumentos convincentes, cativa também o grande público, feito que deve ser obviamente muito valorizado. Ele “populariza”, agora no bom sentido, o que nós profissionais da música fazemos porque acredita, mesmo, no bem que isso pode levar aos que têm a chance da aproximação. Quanto ao meu já antigo projeto, curso e em breve livro que levam o nome autoexplicativo “Eu adoro música, mas não entendo nada!” (frase aliás muito comum em nosso país, sintomaticamente modesta, limitante e por vezes dita com ressentimento), é destinado a toda e qualquer pessoa interessada em música, curiosa e sensível, que não possui nenhum conhecimento prático ou teórico musical, independente do nível sócio-econômico-cultural e da profissão. Propõe despertar, sensibilizar e desenvolver a escuta musical de maneira ampla e prazerosa, desmistificando o universo artístico e cultural dos sons, de modo a aproximá-lo dos interessados. Sendo assim, caracterizaria um contrassenso limitar essa iniciativa somente à chamada música de concerto e mais ainda à música contemporânea. Conforme escrevi na minha Dissertação de Mestrado, defendida em 2002 na ECA-USP: “Caso fossem restringidas ao público geral somente músicas ‘de qualidade’, selecionadas por um criterioso grupo de especialistas – prática esta que ocorre em alguns países – ainda assim acusaríamos este processo como não democrático e não educativo.”
Por outro lado, sim, dentre as múltiplas propostas desse meu grande projeto está a de levar o público ouvinte a entender que a existência daquelas duas classificações – música de concerto e contemporânea – também se justifica na incessante e natural busca humana de se expressar.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar alguns artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade? Cite nomes de compositores vivos que são referência para você. Cite nomes de compositores que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que têm importância estruturante para sua formação.
Silvia de Lucca: Meu trabalho se encaixa nessa nomenclatura porque sou deste nosso
tempo e uso alguns elementos de determinados modos que só são possibilitados desde
então, mas nem por isso posso dizer que tenho apreço especial pela música
contemporânea, digo, por tendências estilísticas pertencentes a ela. Quero dizer que
não é o estilo, linguagem ou gênero que conquistam a minha atenção, interesse e gosto
prioritariamente. Considero e trato essas delimitações como simples “meios” de se
atingir resultados, finalidades e objetivos específicos. Desse modo, sou capaz de
identificar-me com criadores e obras de todos os tempos, lugares e estéticas, inclusive
da música contemporânea. Também por causa disso sinto-me potencialmente
interessada e inserida, mesmo que indiretamente, em toda ação, manifestação,
proposta e evento que de fato conceba a diversidade dentro do nicho em que estamos
genericamente classificados. Cuidei disso quando convidada pelo regente Carlos
Moreno idealizei e coordenei o Concurso Nacional de Composição Camargo Guarnieri
em parceria com a Orquestra da USP em 2003, 2005 e 2007: tivemos conosco, em cada
uma das três versões, e sem repetir, cinco membros distintos para compor a banca de
jurados, quero dizer, oriundos de diferentes regiões do Brasil, de diferentes idades, de
diferentes especialidades, representantes de diferentes correntes estéticas. Para
destacar artistas da atualidade, e lembrando que os períodos de tempo dentro da
chamada ‘música de concerto’ são largos, citarei alguns que compuseram no século XX
e XXI os quais, ao ouvi-los, sinto-me sempre arrebatada porque expressam a música de
um ser pleno, organicamente, honestamente e intuitivamente, tal qual são as
impressões digitais que cada um prega em tudo sem sequer perceber. É a ‘autoria’ enfim
que me encanta nestes e em geral, o poder, a capacidade, a independência, a coragem
de expressar o mundo e a vida como verdadeiramente os interpretam, acima de tudo
para si mesmos.
E, junto com isso, o “métier” que possibilita que tenham condições de bem “traduzir” e “decodificar” suas ideias em sons e graficamente. Em síntese, eu diria que escreveram como eu gostaria de escrever e faço por isso.
Vamos a uma pequena representação, procurando fazer jus a diferentes países: I. Stravinsky (1882-1971), H. Villa-Lobos (1887-1959), A. Honegger(1892-1955), A. Copland (1900-1990), O. Messiaen (1908-1992), W. Lutoslawski (1913-1994), E, Widmer (1927-1990), L. Biriotti (1929-
2020), M. Ficarelli (1935-2014), E. Guimarães Álvares (1959-2013). No mesmo sentido,
entre os vivos, eis alguns que valorizo daquele modo, fazendo-me sentir viva, pulsante,
energizada, estimulada: Kilza Setti (1932 – ), Arvo Pärt (1935 – ), Kaija Saariaho (1952 –
), Paulo Costa Lima (1954), Luca Francesconi, (1956 – ), Olga Neuwirth (1968 – ), Max
Richter (1966 – ). Finalmente, quanto a obras cuja estrutura foram significativas para a
minha formação, escolho algumas poucas, também variadas, para ilustrar: Variações
Goldberg, de Bach; Sonata em Si menor, de Liszt; Preludio ao Entardecer de um Fauno,
de Debussy; Pergunta sem Resposta, de Ives; Elektra, de R. Strauss; Concerto para
Orquestra, de Bartók; Petrushka, de Stravinsky; Cinco Canções op.3, de Webern; Modo
de Valores e Intensidades e Abismo dos pássaros, de Messiaen; 24 Preludios e Fugas, de
Shostakovitch; Oito Peças para Quatro Tímpanos, de Elliott Carter.
Prestes Filho: A interseção audiovisual/teatro/música/literatura hoje é uma realidade. Transparece nas suas obras “Colar de Pérolas”, “Em Memória” e “Três Poemas” estruturas dramáticas teatrais, audiovisuais e literárias? Como se deu a invenção destas obras?
Silvia de Lucca: Aprecio a interseção entre as diferentes artes e tenho vontade de
explorar mais essa possibilidade, principalmente entre música e movimentos físicos,
enquanto dança ou não. Isso porque a mistura de sensações de caráteres diversos
responde muito pelas ideias sonoras que me estimulam à criação ou ao
desenvolvimento de minhas obras. Isso parece se confirmar quando ouvintes, leigos ou
não, comentam sobre a sensação de movimento espacial que sentem ao ouvi-las. Sobre
as três obras que questiona, esses títulos dizem respeito a outros aspectos: ‘Colar de
Pérolas’ para orquestra sinfônica teve sua estrutura formal baseada na imagem de um
colar específico que eu guardava em minha memória. Foi simbolizado por sete pérolas
de tamanho e caráter distintos. O material musical referente ao fio caracteriza-se como
linear – temático – numa referência à forma Passacaglia. ‘Em Memória’, também para
orquestra, foi uma homenagem à minha avó paterna que havia falecido há um ano,
quem muito incentivou minha carreira artística. Contêm na primeira parte uma marcha
fúnebre estilizada, em contraste com a segunda parte, dinâmica, que simboliza a morte
como uma passagem de estado, um movimento, uma transformação. ‘Três Poemas’
para violão solo refere-se ao caráter nostálgico e poético de memórias que guardo das
noites do I Curso Internacional de Inverno Scala que frequentei em 1985 em Juiz de Fora
(MG). As únicas obras que talvez possam ser enquadradas na interseção que menciona
sejam as minhas ‘De Minas’ e ‘R.S.V.P.’. A primeira para marimba, violoncelo e piano. A
segunda para três solistas e orquestra de cordas. Em ‘De Minas’ os gestuais dos
instrumentistas fazem algumas alusões à diária rotineira de um trabalhador nas minas
subterrâneas desse Estado.
Em ‘R.S.V.P.’ por meio das vestimentas, gestos e movimentos dançantes do mezzo soprano são transmitidos os caráteres das três grandes partes do texto que eu mesma criei, com palavras que classifico como internacionalizadas, a princípio entendidas e pronunciadas em grande parte do planeta.
Prestes Filho: A sua obra “Só-Nus” faz parte de um projeto que reuniu outros 13 autores brasileiros sobre a Via Sacra. A você coube dar vida musical ao momento: “E tiraram-lhe as vestes”. Você estudou as descrições de todos os apóstolos daquela passagem de Jesus? Você estudou diferentes interpretações artísticas daquela passagem de Jesus?
Silvia de Lucca: Quando em 2005 o idealizador desse original projeto, o colega Sérgio
Igor Chnee, convidou-me à participação, pude escolher entre algumas estações da Via
Crucis que ainda não tinham sido selecionadas por parte dos participantes. Antes de
qualquer pesquisa, identifiquei-me com esta de nº 10 imediatamente porque, sob o meu
entendimento, o “desnudar-se” de roupas, objetos, títulos, finanças, posições, bens em
geral e, somado a isso, submeter-se solitariamente ao inexorável, à vulnerabilidade,
humilhação, flagelo, frio e tudo o que já foi-nos informado a respeito, compreenderia
uma das maiores provações a que se pode ser subjugado, a que se é possível chegar.
Significaria o maior estágio de sublimação humana o de se ter a si próprio e nada mais.
Seria essa a representação idealizada de um ser tido como especialmente sábio,
grandioso, espiritualizado e iluminado por uma enorme parcela da humanidade em mais
de dois mil anos. Eu completaria o argumento da minha preferência por esse episódio
apontando que nele não estão evidenciadas as dores físicas, mas as psicológicas, o que
considero sintomático, já que também sou psicóloga de formação. Depois disso, uma
vez ciente de razões intuitivas que me ligaram a esse quadro, dediquei-me, conforme
você pergunta, a leituras e imagens em busca de detalhes e nuances a respeito, porém
sem aprofundar-me, já que o estímulo maior para a elaboração da peça eu já havia
encontrado. Vale informar que a gravação dessas obras enquanto unidade não foi
(ainda) tornada pública, o que muito lastimo, dada a originalidade da proposta, a
qualidade final das obras, a variedade dos compositores e intérpretes envolvidos, um
tanto deles agora falecidos.
Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? Como se dá o seu processo de composição? Quais são as etapas até chegar à execução?
Silvia de Lucca: Não identifico que nós aqui no Brasil tenhamos desenvolvido alguma
contribuição específica para a notação da música contemporânea. A grafia, para dar
conta da diversidade possível no estilo atual (contemporâneo), precisou passar por
grandes ajustes e ampliações, as quais constam informadas em bibliografias específicas,
além de estarem representadas nas próprias partituras. Ou seja, lembrando que a
maioria das novas e várias correntes pós anos 50 (findado o período das grandes
guerras) começaram e se estabeleceram na Europa, a tendência natural é que aqui as
respectivas grafias ainda sirvam suficientemente para nos representar, o que acredito não ser uma exceção no mundo ocidental. Relativo ao meu próprio processo de composição, tudo torna-se compatível com a valorização especial que dou à expressão e comunicação das artes em geral, o que chamo de “conteúdo”. Mesmo na consideração de “Arte pela Arte”, julgo que essa lógica continua inerente, ainda que inconscientemente, ainda que subliminarmente, e por conta dessa clara intenção, utilizo a linguagem e as técnicas aprendidas como meios para melhor desenvolvê-la. Por conta do mesmo princípio, eu costumo utilizar um tempo significativo para captar ‘o que’ eu mesma tenho interesse em transmitir direta ou indiretamente por meio de sons ou, do mesmo modo, atender aqueles que me fazem as encomendas, ou seja, saber a que eles pretendem fazer referência por meio da minha música. Isso vai desde sentimentos como saudade, orgulho, otimismo, até homenagens a datas, nomes próprios e fatos a serem lembrados, cultuados e homenageados, ou ainda abrir-se a motivos inspiradores, os mais variados, como uma paisagem, as estações do ano, quadros de uma exposição, humores e temperamentos humanos. A partir disso então bem definido e delineado, e ciente dos instrumentos que executarão a obra e do tempo que ela deve durar, parto para os respectivos cálculos em busca dos elementos musicais melhor apropriados e de ‘como’ deverei interconectar tudo isso para enfim produzir o sentido almejado. Dito assim, pode parecer um processo demasiadamente racional, mas cada etapa dessa envolve muita criatividade, além de me tomar por completo e não só mentalmente.
Prestes Filho: Quando falam da sua música destacam a presença de ritmos, timbres, energia, humor e muitas cores. Quais seriam as suas obras onde mais estão reveladas estas características?
Silvia de Lucca: É difícil saber, porque, independente da obra, esse retorno do ouvinte tornou-se comum. Mesmo porque, eu não faço tal consideração, inclusive surpreende muito ao ouvir pelas primeiras vezes que meu estilo tem “humor”, com o que cabei me acostumando por ter recebido esse parecer ainda mais vezes. Eu que as faço com exacerbado idealismo, mais lógico pareceria para mim expressar “seriedade”, “densidade” ou mesmo “severidade”. Do timbre (“cores”) sou sim consciente porque esse elemento está entre os que mais me seduzem e mais elaboro. Quanto à “energia”, muitas vezes a reconheço no resultado, mas não sei de onde ou como ela transparece, simplesmente acontece, não é intencional.
Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema? Você escreve, em seu artigo “A Identidade Feminina – Um Testemunho Pessoal” que: “segundo Jung, todos temos incondicionalmente o lado masculino (“animus”) e feminino (“anima”), variando somente de proporção em cada ser.” No texto você lembra que: “Um par de vezes já ouvi que meu estilo musical é masculino, ou que escrevo como um homem (!).”
Silvia de Lucca: Na História atual e passada a presença da mulher no fazer musical é um
fato, logo, as questões que atualmente se apresentam segundo o avanço de
conscientização alcançada nessas últimas décadas caracterizam-se conforme seguem:
por que não oficialmente? Por que não profissionalmente? Por que não com a mesma
regularidade? Por que não presentes nos mesmos locais ou ambientes? Por que não nos
postos de autoridade ou destaque? Por que não com o mesmo status? Por que não com
a mesma remuneração? Por que não com a mesma divulgação e disseminação?
Igualmente é fato que na chamada ‘música de concerto’ nós mulheres atuantes,
principalmente na área da Regência e ainda mais na Composição, estamos em muito
menor número. Assim como ocorre do nosso trabalho ser comumente relegado ao
invisível e inaudível (Vide os dados trazidos pela pianista e pesquisadora Eliana Monteiro
da Silva). Por isso, consequentemente, na ABM essa proporção está representada.
Podemos fazer conjecturas se essas realidades descritas acima não se interconectam.
Uma coisa é certa, sobre o que não se sabe ou não se atesta a existência, não se tem
como parâmetro, não se reconhece seu valor, não se percebe a falta, não se deseja. Na
mesma linha de pensamento, se até os dias de hoje muitas culturas impediram, ou
dificultaram, ou no mínimo ignoraram que fosse mostrada a potencialidade, interesse,
capacidade, eficiência e o gosto do trabalho feminino em muitas áreas, tornou-se
“normal” o mundo que não usufrui de sua participação. Intencionalmente escrevo
‘participação’, diferente de simples presença mensurável, “para inglês ver”, como tenho
observado em algumas ações recentes! A se pensar: uma vez inseridas de fato nessas
áreas, as mulheres idealizariam, planejariam, prefeririam e trabalhariam por outros
critérios de atuação? O simples questionamento sobre o “status quo”,
consequentemente a possibilidade de alterá-lo, seria motivo suficiente para que a
efetiva participação do trabalho feminino não fosse mais bem considerada para aquém
da margem? Ou seriam elas mesmas que não se sentem estimuladas a participar de um
“modus operandi” no qual não se reconhecem, ou não concordam, ou não desejam, ou
não se identificam? Neste caso, seriam elas coadjuvantes ou protagonistas na
construção de um roteiro cultural?
Ao analisarmos fenômenos complexos como esses, é possível questioná-los sobre como se processa a responsabilidade dos envolvidos.
Concebendo que a vida é dinâmica, que existe uma chance de comportamentos,
costumes e valores estabelecerem-se improvisadamente e temporariamente, é
compreensível que cada ser encontre um lugar, um papel e uma conduta conforme eles
tornam-se possíveis em dado momento, fazendo com que a definição de certo-errado,
de melhor-pior, de natural, de definitivo seja flexibilizada: não cabe julgarmos os
acontecimentos isoladamente. Quero dizer com isso que a análise histórica, social,
política e cultural sobre a relativa atuação e participação da mulher na área musical,
sobretudo na chamada música de concerto onde é ainda mais rara, compreende assunto
de grande complexidade para tentar explicar a condição estrutural a que chegamos.
Tornando-se consciente há poucas décadas, está na fase de suscitar muito mais
perguntas do que respostas concludentes. Que esse processo continue e avance… Sobre
as minhas citações que você traz acima, eu as fundamento do mesmo modo: ao não se
ter referência das variadas maneiras femininas possíveis em determinadas atividades,
pode-se imaginar e até oficializar qualquer coisa que se convenha em detrimento da
realidade, desde considerar que toda mulher prefere a cor rosa e usa saia, até
estabelecer que ao mostrar sua força é “mulher-macho”, assim como o homem ao
mostrar suas lágrimas é “marica”. Formam-se preceitos irreais que são instalados como
estacas na condução de como cotidianamente encarar, avaliar e proceder em relação às
mais diversas situações.
Por outro lado, sempre restam determinadas realidades e liberdades incomuns, as quais grande parte da sociedade prefere ignorar ou condenar, convencida de que desse jeito é melhor porque sempre foi assim!
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?
Silvia de Lucca: Qualquer grupo organizado tem mais força e poder porque soma
pareceres, interesses, disposições e objetivos. A Academia Brasileira de Música é um
bom exemplo positivo, e por isso considero que poderia ter maior participação e
representação nas importantes avaliações e decisões de cunho nacional, sobretudo se
prezar que entre os seus membros sempre haja o ecletismo que corresponde à
multiplicidade nacional dentro da nossa área. Sobre o compositor estar associado desse
ou em outros modos similares, seria desejado, inclusive para possibilitar que nosso
objeto de trabalho e nossa profissão sejam entendidos e reconhecidos socialmente, o
que no Brasil pouco acontece. Desenvolver a essência do que declaramos oficialmente
fazer e por consequência colocá-la publicamente à disposição para um bem coletivo,
deve ser interesse prioritário. É isso que geralmente entusiasma o meu fazer desde a
adolescência. Não desejo atuar dentro de uma redoma de vidro, tanto que os projetos
de carátersócio-educativo-musicais que idealizo e são colocados em prática comprovam
isso. Porém, faço uma ressalva segundo o que vivenciei em algumas tentativas dentro
de áreas de minha competência: foi a atenção maior a objetivos outros que acabaram
por me frustrar e afastar, apesar das declarações, discursos e teorias legítimas e bem
aceitas. Nossa exagerada burocratização sistêmica é um exemplo de como gastar
tempo, energia e recursos em superficialidades que dificultam ou impedem a realização
dos mais necessários e importantes projetos. Isso justifica em parte porque optei por
ser autônoma e não institucionalizada até então, apesar das limitações envolvidas.
Não acredito, no entanto, que essas minhas vivências correspondam à maioria, assim torço para que outras possibilidades se façam presentes; estou sempre atenta.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Silvia de Lucca: Enquanto Arte, Cultura, Educação, Esporte, Saúde e todo bem comum
for tratado principalmente pelo viés econômico-financeiro, a chance de extrapolarmos
as conhecidas barreiras na nossa área específica, como falta de investimento, de
divulgação massiva, de continuidade, de planejamento a médio e longo prazo, de foco
na qualidade e aprofundamento dos conteúdos, de limitação estilística etc., ficaremos
sob a consideração (conveniente para alguns) de que lidamos com uma especialidade
“de luxo”, logo “elitista”. Tento quebrar essa corrente ao meu modo, por exemplo
lembrando em palestras, entrevistas e a alunos a condição de vida nada privilegiada que
a maior parte dos ‘Mestres da Música’ tiveram. Era o caso da mãe de Beethoven ter sido
lavadeira de roupas e dele próprio ter preciso se mudar de casa muitas vezes porque
não tinha condição de pagar os aluguéis. E se analisarmos a característica de sua obra,
sendo tão pessoal, própria e livre, como justificar que ela possa ser entendida como
“elitista” simplesmente por ter agradado a nobreza? Conhecendo a biografia desse
homem, imagino ele “virando-se no túmulo” ao ser classificado como elitista. Por conta
disso, pergunto-me repetidamente sobre o que a atual classificação “elitista” pode estar
incluindo que não uma condição financeira ou status social, ao estar substituindo às
vezes “privilégio”, “sorte”, “talento” entre outros. Fui em pensamento até as últimas
consequências para tentar entender o porquê essa classificação ressoa e tem provocado
ressentido eco em uma parte da sociedade ao saberem que por opção não fazemos
“música popular”. Outro exemplo de tentativa individual da minha parte foi ter
idealizado projetos como o já citado “Eu adoro música, mas não entendo nada!”, um
outro que intitulei “Música infantil pelo intérprete juvenil” para a Associação Camargo
Guarnieri, o meu curso chamado “Essa tal de música clássica” para o SESC etc. Mais um
exemplo seria o tema da minha Dissertação de Mestrado que desenvolvi e defendi na
Universidade de São Paulo: “O produto musical nas rádios brasileiras e aspectos de sua
influência – Um panorama atual paulistano”. Nela apresento tecnicamente, e por
estatística, como se processa a força de mercado na difusão de um repertório específico
e bem limitado, diante da vasta e diversificada produção que compositores dispõem
initerruptamente no mundo todo, justamente porque aquela prática gera mais lucro a
alguns poucos. Paralelamente a isso denuncio e boicoto sempre que possível as ações
que transitam no caminho inverso. É bom lembrar que, felizmente, muitos colegas têm
feito trabalhos com propósitos similares a esses, sendo os resultados comprovadamente
animadores. Gostaria de que nos uníssemos em parceria, multiplicando ideias, atuando
em conjunto quando possível, apaixonadamente.
O entusiasmo é contagiante e muito impulsionador. Esse desejo faz referência ao que foi tratado acima, a força dos grupos alinhados e coesos no mesmo propósito.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositora? Quais são as maestrinas e os maestros que mais têm intimidade com sua obra?
Silvia de Lucca: Sabidamente existem duas orquestras que têm se destacado no Brasil
já há muitos anos, conseguindo atingir um grau de excelência a nível internacional em
vários aspectos, assim como uma estabilidade institucional, o que permite que a parte
artística possa ser realizada sem percalços, uma realidade infelizmente não muito
comum no Brasil e certamente em outros países também. Estou falando da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo e da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. É certo
que há mais orquestras nossas que merecem sinceros cumprimentos, porém creio ser
mais esclarecedor listar dois quesitos principais que favorecem a minha admiração
enquanto compositora por uma orquestra, em especial ao executar obras
desconhecidas com linguagens não tradicionais. Eu começaria sem dúvida pelo interesse
e dedicação do regente em conhecer a obra com profundidade. Tratando-se do
condutor da interpretação, da momentânea organização sonora da orquestra, é ele a
“montar” e “e dar sentido” a uma estética específica até então inexistente, uma vez que
tem em mãos, antecipadamente como deve ser, a partitura com todos os códigos
necessários a serem decifrados, compreendidos e imaginados para que a música passe
a existir como tal. Considerando desse modo, a partitura é como um mapa que mostra
os caminhos de uma região desconhecida, no caso, desenhado pelo compositor. É onde
estão condensadas as expressões e respectiva lógica que idealizou em sua mente.
Fazendo isso, o regente e a orquestra passam a ser, durante a execução, coautores do
nascimento de um fenômeno vivo. O segundo item ao qual atribuo grande importância
para a estreia de uma nova música é o respeito e a “mente aberta” dos participantes
para com a “estranheza” daquilo com que estarão conjuntamente trabalhando. Envolve
função artística, social e humana, mesmo que isso não se efetive. É adotar uma espécie
de postura de humildade diante do (ainda) não saber, mas com ânimo e encorajamento
suficientes baseando-se na hipótese de que o resultado a que se chegar poderá
promover um benefício amplo e duradouro.
Ao lembrarmos que toda estética hoje conhecida e assimilada entre nós teve uma vez o seu momento alienígena já mostra a importância do que procuro justificar.
Quanto a regentes terem intimidade com a minha obra ou estilo, não é possível afirmar.
Como é comum acontecer com nós compositores vivos praticantes da música de
concerto, nossas obras não são comumente e genericamente tocadas por diferentes
intérpretes e diferentes grupos para haver tal referência, ainda mais se tratando do
estilo contemporâneo, ainda mais se tratando da produção das mulheres compositoras,
conforme já explicado. Vale aqui o parêntese de que obras de compositoras são muitas
vezes agendadas principalmente para o mês de março, e em concerto separado, como
forma de homenagem pelo Dia Internacional da Mulher! Fora isso, qualquer
performance de uma orquestra compreende uma complexidade e um investimento de
tamanha ordem que raramente permite que se toque repetidamente a grande
quantidade de compositores que somamos. Nesse quesito, nossa especialidade musical
se distingue da chamada música popular e de outras Artes performáticas: a montagem
e preparo de um repertório costuma ir a público somente uma ou duas vezes, salvo no
caso de turnês, quando são repetidos um pouco mais, ou seja, entre uma ou duas vezes
em cada cidade.
Por tudo isso, termos um bom referencial sobre as melhores execuções de nossas músicas orquestrais requer uma prática percentualmente pouquíssimo existente.
Prestes Filho: Está surgindo uma nova geração de compositoras? Quem seriam elas?
Silvia de Lucca: Sim, as novas gerações já estão aí… As compositoras chegam em maior
número pelo menos nos países que oferecem estrutura geral para a especialidade e,
mais que isso, podem entrar no circuito facilitadas também pela internet que quebra o
monopólio da divulgação que estava unicamente nas mãos daqueles que decidiam
‘quem’, ‘o que’ e ‘como’ apresentá-las ao mundo. Junto a isso, elas trazem novos
paradigmas, maneiras inovadoras de corresponder à sociedade e, principalmente,
autorizando-se a atentar e atender a si próprias, sem o antigo ônus de ter que
corresponder ou frustrar o que se esperava delas. Exemplificando com uma prática tão
curiosa quanto real, agora nós podemos compor, caso queiramos, não somente para
canto e piano como foi costume, instrumento que normalmente era encontrado na
própria casa ou de conhecidos em se tratando da classe alta ou média, ou ainda na
escola que frequentavam, já que assim não corriam o risco de se envolverem com um
número maior de pessoas, sobretudo do sexo masculino. Atualmente, temos liberdade
de estar entre uma centena de pessoas “estranhas” que compõe uma orquestra
sinfônica. Isso deve soar bem esquisito, porém vale lembrar que há menos de cem anos
um casal de namorados precisava ter a companhia de uma “vela”, isso é, de uma pessoa
que eventualmente contaria aos pais da moça o que vira e escutara, costume acatado
por corresponder “aos bons modos de uma moça de família!”.
Triste que hábitos com esse mesmo fundamento ainda se mantêm em muitas culturas. Continuando sobre as inovações, podemos surpresos conhecer os novos e bem sustentados argumentos das jovens nos muitos diferentes ramos de atuação profissional e de especialidade, para além da música e da Arte, e o fato de serem muitos já é si uma novidade historicamente falando. Ao menos no mundo urbano de vários países é possível constatar como agora as jovens envolvem-se com mais abrangência de possibilidades, tanto no estudo como no trabalho. Conseguem ir bem além do que havia sido indicado para as mulheres, como foi até a geração dos meus pais e ainda um tanto na minha, afinal, tínhamos entrado muito recentemente na era da contracultura, do surgimento do anticoncepcional, do “amor livre” e dos ditames comportamentais advindos de velhos hábitos religiosos e políticos. A partir de então, o foco no tipo do trabalho a ser realizado está muito embasado em escolhas ou necessidades pessoais, como gosto, preferência, facilidade ou talento. Ou seja, tornaram-se mais independentes da opinião alheia de modo geral, mais ainda do julgo social. Parece ainda considerarem sugestões de familiares, amigos incluindo a de profissionais bem-sucedidos, mas não muito mais que isso. Paralelamente, e diferente do que era publicamente expressado no passado, poucas são as jovens que têm como único ou principal objetivo de vida a formação de uma família. Quando isso é consciente e desejado, aparece como sendo uma ‘parte’ das ocupações atuais ou vindouras, ou então relativo a uma ‘fase’ da vida.
Enfim, estou ansiosa e desejosa para que nesse sentido finalmente tenhamos virado uma página bem amarelada da história da humanidade. Para isso, entrevista como esta que tenho a oportunidade de responder por meio da sugestão de temas sensíveis, que possibilitam profundas reflexões, e ainda sem limite quantitativo de caracteres, é de enorme contribuição. Agradeço!
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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