Por José Igreja Matos

Conferindo-se ao governo poderes ilimitados, pode-se legalizar a mais arbitrária das normas; e desse modo a democracia arrisca estabelecer o mais completo despotismo – Friedrich August von Hayek, O Caminho da Servidão (1944)

1. Ironicamente, a palavra “distopia”, que convoca sempre o maior dos receios, embora já conhecida anteriormente, só se tornou efetivamente reconhecida quando John Stuart Mill, um expoente do liberalismo clássico, a utilizou num dos seus discursos parlamentares, em 1868.
A recente crise pandémica e as medidas subsequentes ditadas pelos diferentes governos nacionais alertam-nos, uma outra vez, para o recrudescimento de políticas totalitárias baseadas num nível extremamente elevado de controlo quer sobre a vida pública quer sobre a privada.

Esta apreensão surge fortemente sustentada em acontecimentos por todos conhecidos, no passado bem recente, e que se materializaram num intimidante declínio das regras do Estado de Direito um pouco por todo o mundo. De acordo com o Relatório sobre a Democracia 2020, pela primeira vez desde 2001, as autocracias constituem uma maioria, estando representadas em 92 países, a que corresponde 54% da população mundial.

Lamentavelmente, os exemplos aqui na Europa são abundantes, em particular os relativos às ameaças à independência do poder judicial, pilar essencial do Estado de Direito; os mais perturbadores no seio da União Europeia resultam, seguramente, familiares. O chamado “Estado iliberal” implementado na Hungria causou danos irreparáveis a princípios básicos da Democracia e o ataque feroz ao judiciário na Polónia, materializado através da eufemística designação de “reforma judicial”, apontou, afinal, a um único objetivo: destruir a independência do sistema judicial polaco.

“Algo está podre no coração da Europa”, afirmou recentemente o Editorial desta mesma revista, comentando as recentes investidas ao Estado de Direito e à independência dos juízes, ao mesmo tempo que, avisadamente, alertava ser este o tempo certo para “os líderes europeus tomarem posição e enfrentar destemidamente o que poderá tornar-se a crise política mais terrível, e eventualmente letal, da União Europeia”.

A Associação Europeia de Juízes, a maior organização de juízes da Europa que representa as associações nacionais mais relevantes de 43 países do Velho Continente, tem vindo incansavelmente a denunciar, ao longo dos anos, a contínua deterioração do Estado de Direito no nosso continente.

A Associação Europeia de Juízes é um Grupo Regional da União Internacional de Magistrados (UIM). Fundada em 1953, a IAJ é composta por associações de 92 países de todo o mundo. Uma breve pesquisa no nosso website (www.iaj-uim.org) demonstra vigorosamente o nosso compromisso com defesa da independência do poder judicial. Consulte, por exemplo, a secção especial dedicada à situação do sistema judicial polaco: https://www.iaj-uim.org/solidarity-news-

Usufruindo, em demasiadas ocasiões, da cumplicidade silenciosa das lideranças da União Europeia, em Bruxelas, políticos nacionais populistas têm logrado corroer o princípio da separação de poderes, pondo em crise um valor essencial da Democracia erigido no interesse exclusivo dos cidadãos: a existência de tribunais imparciais compostos por juízes que tratam as partes de forma escrupulosamente igual, independentemente dos poderes fácticos ou institucionais que estas possam ostentar.

2. No contexto desta incontornável crise relativa à salvaguarda de princípios básicos comuns consagrados pelas Constituições nacionais e pelos Tratados Europeus, a presente pandemia veio agravar claramente uma situação já difícil.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han sublinhava, por estes dias, o risco real de, após o choque causado por este vírus e pelas possíveis subsequentes vagas, se consagrarem definitivamente na Europa regimes de cariz policial assentes na tecnologia digital, emulando alguns sistemas asiáticos. Se isso viesse a ocorrer, o estado de emergência tornar-se-ia então a norma consentida.

Acompanhando esta tendência, vários Estados, particularmente na Europa Central e Oriental, estão já a utilizar a crise do COVID-19 para minar os princípios e as instituições que consagram o Estado de direito.

Existem, por isso, hoje razões bem fundamentadas para uma vigilância ainda mais ativa. Citemos apenas três eloquentes casos que resultam de leis de emergência propostas por governos europeus:

– o caso mais ultrajante, como todos saberão, é o da Hungria – sim, ainda um país da UE! – em que a nova lei de emergência confere ao Governo poderes absolutos, sem limites temporais e sem quaisquer controlos efetivos por parte dos outros poderes do Estado, tudo isto num contexto em que a independência judicial do país há muito se encontra fortemente enfraquecida;

– o projeto de lei de amnistia a aprovar pelas autoridades turcas a fim de reduzir a população prisional sobrelotada pretende excluir desta medida todos os presos ditos “políticos”, incluindo juízes, procuradores e advogados. Esta inaceitável discriminação foi já expressamente condenada pela Associação Europeia de Juízes;

– a não-utilização, ou utilização inadequada, das cláusulas de caducidade (“sunset clauses”), as quais impõem uma duração limitada às leis de emergência, com a consequente limitação do sancionamento, nomeadamente por parte do poder judicial, pela imposição indevida de restrições a direitos fundamentais.

A proposta inicial do Governo britânico ao indicar um período de dois anos de duração para a lei nacional de emergência face à pandemia, ainda que posteriormente alterada de modo a permitir uma revisão semestral – ainda assim, um prazo, a nosso ver, excessivo – demonstra até que ponto as autoridades políticas não estão sensibilizadas, mesmo em democracias consolidadas, para a decisiva importância de uma estrita delimitação em curtos limites temporais deste tipo de leis que condicionam direitos, liberdades e garantias.

Para além destes exemplos, a UE vê-se, em geral, confrontada com a circunstância de os Estados-Membros não disporem, a mais das vezes, de uma base jurídica adequada para a implementação destas normas urgentes, as quais implicam, inevitavelmente, uma violação coletiva maciça dos direitos dos cidadãos, assente apenas em iniciativas do Governo e assegurando um escrutínio pobre ao Parlamento e aos Tribunais.

A derrogação às disposições da Convenção Europeia dos Direitos do Homem por quatro dos 47 Estados-Membros do Conselho da Europa – Arménia, Letónia, Moldávia e Roménia – constitui um outro sinal perturbador desta tendência.

3. Uma lei de emergência, ou outra qualquer medida, destinada a conter a propagação do coronavírus deve, em todas as circunstâncias, respeitar os princípios do Estado de direito, tais como, neste tipo de intervenções, os princípios da necessidade, proporcionalidade, controlo democrático, monitorização constante, igualdade e transparência da informação prestada.
Por conseguinte, uma provável violação destas normas comummente consagradas é a que resulta de recentes propostas como as de generalização do rastreio de telemóveis pelo Estado (Eslováquia), de utilização de veículos blindados com metralhadoras para patrulhar as ruas (Albânia), de publicação online de listas de nomes e endereços de cidadãos em quarentena (Montenegro), etc.

Este exercício de contenção e equilíbrio na restrição de direitos deve ser concretamente assegurado por cada um dos Estados-Membros da UE e deve ter presente as exigências cruciais ditadas pelo princípio da proporcionalidade, tal como determina o n.º 1 do artigo 52.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Talvez valha a pena citar esta norma:

“Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.”

4. Em 1789, em plena Revolução Francesa, a Declaração do Direito do Homem e do Cidadão, declarava, no seu artigo 16.º, que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Numa sociedade em que esteja ausente o Estado de Direito (“Rule of Law”, na feliz expressão inglesa”), os direitos humanos são ignorados, a riqueza das nações inevitavelmente diminui e a ordem social degrada-se, acabando por ruir. Como Winston Churchill há muito nos ensinou, “aqueles que não aprendem com a história, estão condenados a repeti-la”.

Por isso, em nenhuma circunstância, os distintos governos nacionais devem ser tentados a considerar a presente crise como uma oportunidade para desvalorizar o papel essencial de tribunais independentes enquanto protetores das liberdades.

5. Ser juiz em tempo de pandemia significa, antes e acima de tudo o mais, demonstrar uma solidariedade total e inequívoca para com os nossos concidadãos.

Neste sentido, apenas podemos fazer eco das palavras de Albert Camus no seu romance “A Peste”: “não faço ideia do que me espera ou do que vai acontecer quando tudo isto acabar. Apenas sei o seguinte: Há pessoas doentes e precisam de ser curadas”.

Em segundo lugar, analisando o caso específico do sistema judiciário, importa reconhecer que as quarentenas induzidas pelas restrições à propagação do COVID-19 tiveram graves repercussões na atividade dos tribunais. Em todos os países, os esforços para abrandar a disseminação do vírus tiveram um impacto maciço no funcionamento do sistema judicial.

A maior parte dos processos judiciais será, inevitavelmente, protelada e muitos deles arriscam mesmo ficar paralisados. Estes atrasos terão efeitos negativos na boa administração da justiça e afetarão também, previsivelmente, as reclamações, porventura numerosas, contra as restrições impostas durante o período de confinamento.

Daí que seja crucial assegurar que juízes, procuradores, advogados e funcionários judiciais possam continuar a exercer as suas atividades profissionais, especialmente as diretamente relacionadas com a proteção dos direitos humanos em períodos de emergência; neste sentido, o mínimo risco possível para a saúde dos profissionais da justiça e das suas famílias deve ser estritamente garantido, em todos e cada um dos casos, pelas autoridades públicas.

Os Princípios de Bangalore determinam que “um juiz deve aceitar restrições pessoais que possam ser consideradas onerosas pelo cidadão comum e deve fazê-lo livre e voluntariamente”. É esta a situação que os juízes enfrentam atualmente. Continuaremos a trabalhar ao serviço de cada cidadão sempre que for necessário decidir uma medida urgente, sempre que for necessário tomar uma decisão em matérias que impliquem com direitos fundamentais, protegendo, em particular, os membros mais vulneráveis e indefesos das nossas comunidades.

O dever de cada juiz é estar sempre disponível para servir os nossos concidadãos num compromisso permanente com a sua inalienável missão de serviço público, em nome de uma decisiva solidariedade social. Na ausência do direito fundamental de acesso à justiça, as pessoas não podem fazer ouvir a sua voz, exercer os seus direitos, desafiar a discriminação ou responsabilizar os decisores políticos.

Os imensos benefícios das novas tecnologias e da digitalização dos processos judiciais devem, por isso, ser maximizados; o principal conceito subjacente ao uso das ferramentas tecnológicas neste período será o da sua utilização o mais ampla possível, limitando as atividades judiciais apenas se não houver outra opção, designadamente pela obrigatoriedade de diligências presenciais. Recentemente, uma juíza teve oportunidade de apresentar publicamente uma situação por si liderada e que envolvia o julgamento de um arguido, em prisão preventiva, a ser realizado no seu tribunal: o arguido depôs por videoconferência desde o estabelecimento prisional enquanto as testemunhas presenciais permaneciam em diferentes áreas do tribunal, previamente desinfetadas, sendo-lhes ainda, em alternativa, permitido testemunhar através de Skype. As medidas já previstas para a proteção das vítimas de violência doméstica constituem uma bem-vinda orientação de modo a minorar os problemas causados pela reclusão forçada de famílias em risco.

Assim, as leis de emergência devem nomeadamente regulamentar a possibilidade de cidadãos sujeitos a confinamento poderem circular livremente pelos espaços públicos em ordem a proporcionar abrigo imediato às vítimas de crimes como a violência doméstica ou o tráfico de seres humanos, bem como proteger as crianças ou os idosos, estes em especial, de uma agressão iminente ou previsível.

6. A atual pandemia desencadeou já uma vasta crise económica que exige uma solidariedade inequívoca de todos os Estados-Membros; também aqui está em causa a sobrevivência da própria União Europeia ou, pelo menos, do modelo de solidariedade e entreajuda idealizado pelos seus pais fundadores.

Mas resulta também vital impedir que a crise da COVID-19 se transforme numa tragédia para a afirmação do Estado de direito.

As autoridades comunitárias devem assumir, com urgência, uma posição inequívoca de oposição às iniciativas em curso de utilização da crise da COVID-19 para expandir os poderes de Estados autoritários.

Pelo contrário, esta crise deve transformar-se num salutar ensejo para demonstrar que a UE nos pode proteger, mesmo dos nossos respetivos governos.

Em todo o caso, aconteça o que acontecer, que fique bem claro: no rescaldo da crise do coronavírus, apesar da alegada “fadiga” democrática, apesar dos “cantos de sereia” instigados pela tecnologia digital e pelo poder absoluto de controlo que proporcionam, apesar da inevitável ansiedade dos cidadãos que facilita a aprovação de medidas desproporcionadas, atentatórias das liberdades individuais, os juízes europeus manter-se-ão serenamente fiéis aos valores fundamentais do Estado de Direito. Rejeitarão sempre os regimes “distópicos”.

Esta a mensagem fundamental a transmitir nos dias conturbados que vivemos.

JOSÉ IGREJA MATOS é presidente da Associação Europeia de Juízes; Primeiro Vice-Presidente da União Internacional de Juízes. (Fonte: Julgar). O presente texto resulta de uma tradução livre, feita pelo autor, do artigo por si escrito em língua inglesa e publicado na revista digital EU Law Live. O artigo original pode ser lido aqui: https://eulawlive.com/weekend-edition/weekend-edition-no12/.

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