Por Jorge Folena –

Juridicamente, o semipresidencialismo é um sistema político no qual o governo poder ser exercido por um conselho de ministros ou por um primeiro-ministro, todos oriundos do parlamento. Mas esse sistema não pode ser implantado no Brasil (a menos que num novo golpe institucional), uma vez que a Constituição de 1988 veda qualquer forma de alteração em seu texto que ameace a separação de poderes, considerada cláusula pétrea.

Sendo assim, pela nossa atual Carta, o Congresso Nacional (poder constituinte derivado) não dispõe de poder constitucional para reduzir as atribuições da Presidência da República, sob pena de violação do princípio da separação de poderes.

A oportunista proposta da direita liberal brasileira está sendo reapresentada diante da impossibilidade desse grupo conseguir emplacar qualquer representante de peso para a sua “terceira via”.

Na verdade, o que pretendem com isso, a partir de 1º de janeiro de 2023, é tentar retirar a chefia do governo das mãos de Luís Inácio Lula da Silva, o candidato com maior probabilidade de vitória na eleição presidencial de 2022.

No semipresidencialismo, o Presidente da República ficaria responsável pelas atribuições honoríficas de chefe de Estado, representando o país nas relações com outros países, e teria a chefia das Forças Armadas, enquanto o governo ficaria sob o controle do Parlamento, a exemplo do que ocorre num sistema de governo parlamentarista.

Ocorre que, além da referida proposta ser inconstitucional e de o parlamentarismo já ter sido rejeitado pela vontade popular em diversas oportunidades, sendo a última em 1993 por plebiscito (determinado pela Constituição de 1988), entendo que inexistem as necessárias condições históricas e políticas para a implantação deste sistema de governo no Brasil, em que a figura do mando ainda se faz fortemente presente na estrutura federalista adotada no país, a partir da Constituição de 1891.

A proposta de semipresidencialismo, apresentada primeiramente em janeiro de 2016 (dentro da Ordem dos Advogados do Brasil), foi uma das tentativas golpistas de tirar os poderes governamentais de Dilma Rousseff e, por não terem obtido sucesso, engendraram a farsa das “pedaladas”, que levou ao seu indevido impedimento.

Vemos então que a retomada da proposta (agora ressuscitada por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, o golpista Michel Temer, Arthur Lira e Cia.) mais é do que a continuação de uma estratégia do conjunto de manobras circunstanciais sempre utilizadas pelos próprios defensores do mandonismo no Brasil. Porque esse é o modo pelo qual se estruturou historicamente a direita conservadora e liberal brasileira, que sempre buscou, a qualquer custo, a ocupação do poder nos 27 Estados e do Distrito Federal e nos mais de cinco mil Municípios pelo país a fora, sem jamais abrir mão de governar os entes federativos com amplos poderes e sem a participação das forças populares, democráticas e progressistas, como passo a demonstrar.

Segundo a narrativa de Domingos Sarmiento (em Facundo: civilização ou barbárie), a vasta extensão territorial que constituiu o latifúndio, somada ao analfabetismo, constituíram as bases para a implantação, por toda a América Latina, de um sistema político fundado no caudilhismo patrimonialista, cujos efeitos são percebidos até hoje, por meio de governos presidencialistas que se apresentam sempre com a marca personalíssima do mandatário.

Até a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, o domínio da política no Brasil pertencia aos caudilhos ou caciques, pois a distância da Corte portuguesa para a colônia permitia que os senhores mais fortes se tornassem os donos da política e da vida das pessoas que estavam no Brasil, sobre as quais exerciam um domínio pessoal e arbitrário; nesse contexto, a política se apresentava com forte viés personalista e de mandonismo.

Tanto no período em que a sede da metrópole foi transferida para o Brasil quanto no decorrer do império, a Família Real portuguesa e seus descendentes combateram essa construção, debelando todas as reações caudilhas e centralizando o poder e a unidade nacional a partir da capital, no Rio de Janeiro.

A grande vitória do caudilhismo no Brasil deu-se a partir da implantação da República (1891), com a derrocada dos militares monarquistas, que pretendiam transferir a estrutura de poder unitário do império para a República recém implantada em bases presidencialistas e federalista.

Mesmo distante da realidade política do Brasil, constituído como país unitário, os governadores (antigos presidentes de províncias no Império) conseguiram impor uma federação, o que lhes permitiu deter o poder de polícia em seus respectivos territórios e a atribuição das demarcações locais de terras, o que, inclusive, facilitou a apropriação das terras que aumentaram ainda mais os seus imensos latifúndios.

A partir da primeira República conseguiram impor um presidencialismo marcado pela mística cultural personalista, em que traços do passado imperial foram resgatados. Temos até hoje uma federação de papel, com estados e municípios falidos, pois muitos entes federativos não têm como se manter, por si, e ficam na total dependência de repasses da União.

Neste sentido, a dura crítica formulada por Alberto Torres ao grande Ruy Barbosa, por copiar um modelo de federação desenvolvido pelos americanos, para uma situação circunstancial e pragmática das treze colônias, que nada tinha a ver com a realidade política de um Brasil de formação unitária política e administrativa, como ocorreu na colônia e no império.

Porém, o entendimento que prevaleceu durante o processo de consolidação da república, influenciado por juristas como Ruy Barbosa, foi no sentido da constituição de uma federação, o que beneficiou politicamente o coronelismo, representado pelos governadores.

O polímata Ruy Barbosa de Oliveira se destacou principalmente como jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador. (Arquivo Nacional / Correio da Manhã)

Todas as vezes, na história do país, em que se tentou, de alguma forma, romper com o coronelismo e promover alguma inclusão social e a defesa do patrimônio nacional, não logramos sucesso. O resultado foi o suicídio de um presidente (1954) e a deposição de outro, em pleno exercício constitucional de seu mandato (1964).

Nesse último caso, o país foi lançado em vinte anos de escuridão, com a cassação de mandatos parlamentares, deposição de juízes da Suprema Corte, a realização de inúmeras prisões ilegais, torturas e assassinatos, como apurou a Comissão Nacional da Verdade, no relatório entregue em dezembro de 2014. Ao final, foram atingidos até mesmo os que inicialmente defendiam a deposição do governo.

E hoje não parece ser muito diferente, pois as forças obscuras do passado ainda se fazem presentes contra quaisquer avanços sociais e a extensão de alguma forma de cidadania a milhões de brasileiros. Isto porque agentes políticos civis e militares que atuaram no antigo regime (1964-1985) permaneceram tranquilamente em suas posições, sem que tenha ocorrido purgação ou ruptura oficial com o passado ditatorial e ainda hoje dificultam, em grande medida, as proposições de um país mais inclusivo socialmente, como proposto por lideranças populares, democráticas e progressistas, representadas, neste momento, por Luís Inácio Lula da Silva.

Sendo assim, é possível estabelecer a hipótese de que os reacionários do passado estejam atuando no presente, diretamente ou por intermédio de seus descendentes (herdeiros e legatários), alimentando a pregação moralista e autoritária que tomou conta do Brasil nos últimos anos.

Desta forma, é de estranhar que os herdeiros dos caudilhos ou dos coronéis (que sempre defenderam o sistema de governo presidencialista e personalista, como se consagrou na cultura política do país durante mais de um século) hoje venham defender o “semipresidencialismo” ou parlamentarismo, que enfraquece o poder do mandonismo, mas que poderá livrá-los de responder por todos os males causados no país, desde o golpe de 2016.

Diante do possível oportunismo, as perguntas que não querem calar: a proposta de semipresidencialismo ou parlamentarismo, valerá para todos os estados e municípios brasileiros aonde ainda prevalecem, na política, as forças do mandonismo e do coronelismo?Prefeitos e governadores irão entregar seu poder às Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, instituições que detêm o poder de governo no parlamentarismo?

São questões que merecem uma reflexão mais aprofundada, pois a proposta semipresidencialismo (ou parlamentarismo) ressuscitada revela-se contrária ao modelo político historicamente adotado no país, que tem suas marcas no mandonismo e no personalismo.

Por fim, alertamos que um regime parlamentar (ou semipresidencialista, como queiram) pressupõe a existência de partidos políticos com uma estrutura orgânica consolidada, o que não existe na política brasileira, marcada por legendas de aluguel e agrupamentos políticos de caráter oportunista (como ocorre agora na proposta de fusão dos partidos PSL, DEM e PP, na tentativa de fortalecimento do “centrão” de Jair Bolsonaro), que se unem apenas para conseguir alcançar seus objetivos eleitorais, sem respeitar seus próprios programas políticos, os quais, quando existem, são destituídos de qualquer conteúdo ideológico ou legítima preocupação com os destinos do país e da maioria da população.

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.


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