Por Carlos Mariano –
Análise dos sambas-enredos do grupo especial do carnaval 2025.
O carnaval 2025 é logo ali, e já dá para sentir toda a sua pulsação, ouvindo os sambas-enredos das escolas do grupo especial do Rio de Janeiro nas plataformas digitais. Neste artigo, vou analisar as 12 obras escolhidas pelas escolas de samba que formam a elite do carnaval carioca. Meus comentários seguirão a ordem da colocação das escolas do grupo especial no carnaval deste ano.
Para abrirmos nosso papo, é bom lembrar que dos 12 temas escolhidos pelas escolas do grupo especial, dez falam de africanidade, negritude e religiosidade em seus enredos. Isso confirma uma tendência que vem desde 2018 – quando o Paraíso do Tuiuti berrou aos quatro ventos na Sapucaí: Não sou escravo de nenhum senhor, no refrão do samba-enredo “Meu Deus, está extinta a escravidão?”. As escolas de samba seguiram a sugestão e puxaram o fio da história que faz a ligação delas com a ancestralidade africana.
Essa mesma ancestralidade que as forjou no ato de sua criação no fim da década de 1920 e trouxe ressignificação as suas experiências como instituições culturais negras na luta antirracista.
Unidos do Viradouro
Começamos pelo samba da Unidos do Viradouro – atual campeã do carnaval carioca e representante de Niterói na Sapucaí. A Vermelho e Branco do Barreto vem com o inédito enredo sobre o Reis Malunguinho: “Malunguinho – o mensageiro dos três mundos”, de autoria do talentoso carnavalesco Tarcísio Zanon. O tema da escola, por trazer uma interpretação do nosso passado a partir do dilema do conflito de classes, apresenta um desses exemplos de personagem que ficou séculos escondido na nossa história. Também se revela como um símbolo de luta de resistência étnica do povo preto. E tal representação era invisibilizada pelo discurso dominante dentro da inteligência brasileira, que defendia a naturalização da ideia de um Brasil mestiço, integrado racial e culturalmente.
O enredo narra a história de João Batista, o Reis Malunguinho, que, na metade do século XIX, liderou uma resistência no Quilombo do Catucá, em Pernambuco. Embrenhando-se na mata, Malunguinho encabeçou a luta do povo preto contra o opressor branco, contando com a participação dos povos originários. Tornou-se, assim, o mensageiro de três mundos: Mata, Jurema e Encruzilhada.
A disputa do samba-enredo que melhor representasse a escola foi bem acirrada. Ao fim, duas obras se destacaram: o samba da parceria dos compositores da casa, liderada por Mocotó e PC Portugal, e o samba da parceria de um grande mestre da MPB, Paulo Cesar Feital. O samba de Mocotó e PC Portugal era muito bom, porém pecava por não ter um refrão forte que sustentasse o desfile na Sapucaí. Acabou que a escola escolheu o samba de Feital para representar o Viradouro no carnaval 2025.
Nessa obra, sobressai a construção rítmica e melódica que se assemelha a um ponto de macumba, o que se encaixa perfeitamente ao enredo. Dá ao samba uma força e valentia magistrais! Porém, duas passagens podem ser prejudiciais à letra. A primeira está na cabeça: acenda tudo que for de acender, deixa a fumaça entrar. A outra, na parte final: toca o alujá ligeiro, tem coco de gira pra ser invocado, kaô, consagrado. Esses versos podem ter problemas com o andamento do ritmo da bateria praticado hoje nos desfiles das escolas de samba. Isso porque, naturalmente, as baterias das escolas têm um ritmo mais à frente, acelerado nos seus andamentos de samba. Sendo assim, vejo que esses dois momentos da letra do Viradouro deverão ser motivos de preocupação, principalmente para a harmonia. As frases não podem ser um trava língua para o componente, que precisa cantar de forma confortável e ajudar e estimular o canto do folião na arquibancada.
Mas, fazendo um balanço geral, a campeã desse ano, sem dúvida, tem um dos melhores sambas do carnaval 2025.
Imperatriz Leopoldinense
A Imperatriz Leopoldinense, vice-campeã do carnaval carioca, tem como enredo “Ómi Tútu ao Olúfon – Água fresca para o senhor de Ifón”, do consagrado carnavalesco Leandro Vieira. Após 46 anos, a escola de Leopoldina volta a explorar a mitologia dos orixás como tema central de seu desfile. A última vez que a agremiação abordou um orixá foi em 1979, com a lenda de Oxumaré, um desfile assinado pelos artistas Mário Barcellos e Caetano Costa.
O samba escolhido pela Imperatriz foi o da parceria De Me leva e companhia, que tem variações melódicas que ajudam a contar a trama da viagem de Oxalá até as terras de Xangô. A letra descreve, de forma poética e graciosa, a saga de Oxalá, senhor do reino de Ifón, para visitar o reino de Oyó, de Xangô.
Oxalá faz uma consulta ao Ifá, sistema de adivinhação que revela um presságio maligno, mas o ignora. Exu, o mensageiro dos orixás e guardião dos caminhos, cria obstáculos, contudo, Oxalá cumpre sua jornada e o feitiço é desfeito. O samba termina com uma celebração e desejo de paz a todos os terreiros do Brasil, simbolizados pela coroa adê e a batida dos atabaques, instrumentos tradicionais que marcam o ritmo dos rituais.
Grande Rio
A Grande Rio, com o enredo “Pororocas Parawaras: As águas dos meus encantos nas contas dos Curimbós”, dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, tem um dos melhores sambas-enredos do grupo especial. O tema, que a escola de Duque de Caxias vai levar para a avenida, conta a história inusitada de três princesas turcas: Jarina, Herondina e Mariana. Elas foram encantadas pela deusa da floresta amazônica, Jurema, e viraram, respectivamente, Jiboia Vigilante, Onça do Meu Destino e Arara Cantadeira.
O samba escolhido pela tricolor da Baixada foi da parceria da escola de samba paraense Deixa Falar, nome inspirado na primeira escola de samba do Brasil (cujo o velho Estácio de Sá herdou seu espólio), composta por Mestre Damasceno, Ailson Picanço, Davison Jaime, Tay Coelho e Marcelo Moraes. Para a disputa de samba, a Grande Rio fez duas chaves concorrentes: a de compositores paraenses (estado homenageado no enredo), e outra chave de disputa com compositores cariocas.
Analisando o samba escolhido pela Grande Rio, pode-se dizer que ele já estaria no top 4 do ranking dos melhores sambas da história da escola de Caxias, ficando abaixo somente dos sambas de 1992 (Águas Claras para um Rei Negro), de 1994 (Os santos que a África não viu) e de 2001 (Gentileza, o profeta saído do fogo).
Com melodia e letra riquíssimas, o samba tem uma levada de ritmo encantador e poético, como pede o enredo. Destaco os versos da cabeça do samba, que são deslumbrantes.
A Mina é cocoriô!
Feitiçaria parauara
A mesma lua da Turquia
Na travessia foi encantada
O samba começa com uma lindíssima evocação poética de uma figura feminina poderosa, descrita como “cocoriô” – expressão que pode remeter a uma mulher de grande força e mistério. Essa figura mítica, que faz parte da feitiçaria parauara por meio de uma conexão mística universal, encanta e enfeitiça a lua da Turquia, terra das princesas Jarina, Herondina e Mariana. Outra passagem de destaque é o refrão final do samba, que dramatiza uma celebração rítmica, invocando a união de diferentes forças espirituais – caboclos, voduns e orixás –, que protegem e guiam seu povo. A menção no refrão à Jarina, Herondina, Mariana e à Grande Rio, firma o samba de tambor de mina, simbolizando a continuidade e a resistência das tradições culturais e religiosas.
Os compositores, de forma inspiradora e brilhante, constroem uma letra que é uma ode à beleza e à complexidade da vida na Amazônia, onde o sagrado e o profano se entrelaçam em uma dança eterna.
Salgueiro
Quarta colocada no carnaval passado, a Academia do Samba vai para a pista com o enredo “O Salgueiro de corpo fechado”, do estreante na Sapucaí, o carnavalesco Jorge Silveira. O artista foi recrutado, após ser bicampeão pela paulistana Mocidade Alegre, em 2023 e 2024. Chega e já acerta em cheio ao escrever um enredo que é a cara e a alma dos salgueirenses, pois ao falar de ancestralidade e negritude, enaltece a sua identidade. A história do fechamento do corpo está inserida num conjunto de crendices presentes nas religiões africanas que sobreviveram à travessia do Atlântico. A invulnerabilidade do corpo preto chegou ao Brasil por meio do povo Mandingo, escravizados pertencentes ao antigo Império Mali. Do nome desse povo, veio o termo mandinga, ganhando o sentido de feitiço, magia, coisa feita, despacho.
O samba escolhido para representar a Vermelho e Branco é o da parceria liderada por Xande de Pilares, vencedor de várias competições, recentes, no Salgueiro. Ressalto, na boa letra do samba, a celebração da cultura afro-brasileira e as tradições religiosas que permeiam a vida de muitos brasileiros. A letra é rica em referências ao candomblé, à umbanda e às outras práticas espirituais, reforçando a importância da fé e da proteção no cotidiano do povo. Desde a cabeça do samba, os compositores, de forma poética e inspiradora, evocam rituais e elementos sagrados, como o alguidar, a vela, a pemba e a defumação com ervas – acessórios comuns nessas religiões.
O ponto negativo que vejo no bom samba do Salgueiro é a melodia do seu refrão principal: é muito parecida com o refrão do samba-enredo que a União de Marica defendeu na série Ouro deste ano. Porventura, isso possa ser explicado pela presença de Jefferson Oliveira como compositor participante da criação dos dois sambas. Essa semelhança do refrão desvela uma total falta de imaginação dos compositores e acomodação em não buscar uma solução mais criativa e inspiradora para a escola.
Portela
A Portela, uma das mais tradicionais escolas de samba do Brasil e quinta colocada no último carnaval, vem reverenciando uma das maiores figuras da nossa cultura popular, o cantor Milton Nascimento. Antes de qualquer análise sobre o enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol”, da Águia para o carnaval de 2025, quero ressaltar que o samba vencedor da parceria de Samir Trindade e companhia, em comparação ao samba de 1989, da nossa querida Unidos do Cabuçu (primeira escola de samba carioca a homenagear o querido Bituca), é pouco inspirador nos quesitos melodia e poesia.
O samba da pequena Cabuçu, que hoje está nos grupos de acesso, levou as assinaturas dos bambas Beto Pernada, Ney da Cabuçu, Rebello e Jadir do Morro. Logo na sua cabeça, os compositores do belo samba mostraram as suas digitais de poetas na seguinte passagem: No bailar do vento me abracei à poesia, o astro rei me iluminou para eu falar desse poeta genial, um patrimônio da cultura musical.
Os versos do samba da Cabuçu revelam a capacidade poética do quarteto de compositores populares em descrever a sua inspiração criadora para homenagear Milton Nascimento.
Ela vem de uma energia cósmica presente na música e poesia do homenageado. Vento, luz e sol, elementos que embasam a inspiração poética dos compositores, fazem nascer versos singulares dos sambistas poetas, totalmente desapegados do engessamento da sinopse carnavalesca.
O samba da Portela tem uma letra bem escrita e que consegue fazer conexões com o enredo proposto pela sinopse. Contudo, falta um brilho poético inovador fundamental quando se fala de Milton Nascimento e sua obra musical. O samba tem uma letra e poesia protocolares que cumprem as funcionalidades do quesito samba-enredo e coerência, conforme sinopse proposta pelo carnavalesco. Apesar disso, ressalto a parte final, que culmina com uma celebração de união entre a divina Portela e a entidade musical Milton Nascimento. Tal passagem fica explícita na repetição do refrão: Iyá chamou oxalá preto rei pra sambar e a imagem do anjo negro como sol que faz a Portela cantar reforçam a mensagem de esperança, resistência e celebração da cultura afro-brasileira.
Vila Isabel
A minha querida Unidos de Vila Isabel tem o samba mais fraco de letra, poesia e melodia do grupo especial, mas pode ter uma boa performance na pista porque tem um dos puxadores mais carismáticos do carnaval carioca, Tinga, e uma bateria que, desde a chegada do mestre Macaco Branco, vem recuperando o prestígio da nossa swingueira de Noel. Essas duas combinações atreladas à letra fácil e divertida do samba podem resultar em uma boa química e trazer vibração e empolgação na passarela e na arquibancada.
Pode não levar nota 10 no quesito samba-enredo, mas tem chance de ter um bom desempenho no canto dos foliões, garantindo uma nota máxima em harmonia.
Tendo o insólito enredo “Quanto mais rezo, mais assombração aparece!”, assinado por Paulo Barros, a Vila escolheu o samba da parceria de Raoni Ventapane, Ricardo Mendonça, Dedé Aguiar, Guilherme Karraz, Miguel Dibo e Gigi da Estiva. A letra do samba começa com uma bajulação constrangedora ao ex-torturador da Ditadura Militar, como revelou o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães. Infelizmente como todos sabem, Guimarães é sócio benemérito da Vila Isabel, cortejado por grande parte da comunidade da escola, inclusive por um dos seus maiores ícones, o nosso Martinho da Vila, que o chama carinhosamente de “companheiro Guima”. Dito isso, e voltando à letra do samba-enredo, os primeiros versos dizem para todos embarcarem sem medo, pois o maquinista do trem da assombração é o capitão. É, ao mesmo tempo, verdadeiro e sarcástico ter o capitão Guimarães comandando o trem de assombração no desfile da escola. Mesmo que seja numa história de magia e superstição.
No restante, a letra do samba da Vila se presta a contar com exatidão o enredo burocrático de Paulo Barros, que tem no seu refrão principal, o grande trunfo para tentar contagiar os componentes da escola e, quem sabe, o público.
O solta o bicho faz também analogia ao grito de guerra do seu puxador Tinga e é um gatilho que dispara a alegria do povo do samba virado na bruxaria.
Mangueira
A Estação Primeira de Mangueira, que ficou fora dos desfiles das campeãs do carnaval deste ano, fez uma troca no comando artístico para 2025. Saiu a artista promissora Annik Salmon e foi contratado, a exemplo do Salgueiro, um profissional vindo do carnaval de São Paulo, Sidney França. Com passagens vitoriosas pelas escolas de samba Águia de Ouro (2020) e Vai-Vai (2023), França chega com o enorme desafio de fazer a Verde e Rosa ser novamente competitiva no próximo carnaval. Para isso, escolheu um enredo que vai abordar o tema da negritude banto, “A flor da terra no Rio da negritude entre dores e paixões”. O samba escolhido pela escola é de um costumeiro vencedor nas disputas mangueirenses, Lequinho e parceria.
A letra começa evocando Luanda e Benguela, cidades angolanas que simbolizam a dor e a luta dos africanos trazidos como escravizados para o Brasil. O samba também faz referência à resistência quilombola e aos pretos novos de Angola. Destaca a força e resiliência dos africanos que, mesmo em condições adversas, mantiveram suas tradições e lutaram por liberdade. Apesar da boa sinopse e da importância cultural e histórica do enredo, musicalmente, o samba deixa muito a desejar. A letra, a melodia e a poesia parecem com coisas que já foram feitas no passado.
Beija-flor
A Deusa da Passarela, a querida Beija-Flor, maior campeã do Sambódromo, mas que no carnaval de 2024 ficou apenas com um pífio oitavo lugar, perdendo pontos em quesitos – como enredo, harmonia e samba-enredo -, que até pouco tempo era soberana, fez mudanças pontuais na equipe de profissionais. A escola também optou homenagear uma das figuras mais emblemáticas do carnaval moderno.
Estamos falando nada mais, nada menos que Luis Fernando Ribeiro do Carmo, conhecido no mundo do samba como Laíla. Ele foi um grande personagem da história da Beija-Flor, embora tenha começado sua marcante carreira de folião, sambista e artista do carnaval no morro da academia salgueirense.
Nos últimos dias, outro ícone da história dos desfiles da Beija-Flor anunciou que vai pendurar o microfone. Refiro-me a um dos mitos do carnaval contemporâneo: Neguinho da Beija-Flor. Pois é…, a aposentadoria chega para todo mundo, e chegou para Neguinho.
A Beija-Flor traz o enredo “Laíla de todos os santos, Laíla de todos os sambas”, assinado pelo carnavalesco João Vitor Araújo, que vem com o sambaço de autoria da parceria Romulo Massacesi, Junior Trindade, Serginho Aguiar, Ailson Picanço, Gladiador e Felipe Sena. Tem tudo para voltar a fazer um grande desfile e, consequentemente, brigar por uma vaga entre as campeãs, como sempre foi tradição da Azul e Branco da Baixada.
O samba tem letra, poesia e melodia fortes e impactantes, casando com o espírito aguerrido do homenageado. A letra começa com uma ode à ancestralidade, à espiritualidade e à resistência cultural que Laíla trazia consigo.
Isso é percebido na fortíssima passagem do samba: O brado no tambor, feitiço, brigou pela cor, catiço e coragem na fala sem temer a queda. Os versos fantásticos exaltam a bravura e a determinação de quem luta contra a opressão. A letra celebra Laíla como uma voz negra, favelada e destemida, que comandou por décadas gerações de favelados que, como ele, acreditavam na escola de samba como bastião de uma cultura popular, em defesa da luta por direitos e dignidade.
Quando Neguinho da Beija-Flor se despedir da Passarela do Samba bradando a todo pulmões esse sambaço em homenagem a Laíla, sem dúvida, será um dos momentos mais emocionantes do desfile de 2025.
Paraíso do Tuiuti
Há oito anos, a Paraíso do Tuiuti e sua comunidade estão desfilando no grupo especial. Nesta luta para se firmar como uma grande escola de samba carioca, a agremiação de São Cristóvão já passou por momentos distintos de emoção. Viveu em 2017, quando subiu do grupo de acesso, o drama de ver seu carro alegórico prensar pessoas contra as grades do setor 1. No ano seguinte, desfilando com o enredo “Meu Deus, está extinta a escravidão”, assinado pelo artista Jack Vasconcelos, quase beliscou o título de campeã do carnaval do grupo especial. Foi vice, perdendo o caneco para a poderosa Beija-Flor de Nilópolis.
Nessa quase uma década, a Tuiuti sempre privilegiou enredos históricos, culturais e com pegada social. Para o carnaval de 2025, não será diferente. Jack Vasconcelos, carnavalesco com várias passagens pela escola, assina o contundente enredo: “Quem tem medo de Xica Manicongo”. A escola se propõe a contar a história da primeira travesti não indígena do Brasil, após ser sequestrada na região do Congo.
Em relação ao seu samba-enredo, a Tuiuti manteve a tradição dos últimos carnavais, ou seja, não realizou disputa entre os compositores, privilegiando e encomendando samba-enredo da parceria do compositor Claudio Russo. Uma lástima, pois percebe-se que, embora os sambas da Tuiuti não sejam ruins, longe disso, são parecidos entre si e é nítido que repetem uma espécie de receita de bolo seguida pelo mesmo compositor e sua parceria. Com a ausência do concurso de samba-enredo, a escola desprestigia a sua grandiosa ala de compositores.
O samba encomendado tem uma narrativa que mais parece um panfleto político, militante e cheio de clichês. Apesar de pouco inspiradora e da falta de poesia, a letra tem refrão principal altivo, que identifica muito bem a personalidade da homenageada e apresenta uma boa e intensa sonoridade, que deverá conduzir de forma valente o desfile. A evolução da agremiação será facilitada por ter, em seu carro de som, um dos mais talentosos cantores do carnaval brasileiro, o nosso Pixulé.
Mocidade Independente
A Mocidade Independente de Padre Miguel que vem nos últimos anos flertando perigosamente com a zona do rebaixamento, resgata o carnavalesco Renato Lage para tentar reviver os tempos áureos da passagem do artista pela escola. Na sua primeira trajetória pela agremiação carnavalesca da Vila Vintém, Lage ficou 12 anos na agremiação. De 1990 a 2002, ganhou três campeonatos, além de dar aos enredos e desfiles da escola, um caráter bem diversificado de temas. Nessa fase vitoriosa na Sapucaí, Lage pensou o Brasil e o mundo falando de, corpo e alma, da história da própria Mocidade, da paz e da guerra e da ópera de Villa Lobos.
Hoje, com o enredo “Voltando para o futuro, não há limites pra sonhar”, o carnavalesco, ao lado da sua companheira Márcia Lage, se propõe a falar dos enredos produzidos na sua primeira passagem pela escola. E, ao mesmo tempo, se qualifica a fazer uma reflexão sobre para onde caminha a humanidade e sua modernidade.
A letra do samba da parceria Claudio Russo é uma colcha de retalhos, que mistura ricas metáforas referente à história dos carnavais de Lage na escola, com reflexões sobre o tempo, a natureza e a condição humana. A melodia do samba é bem comum e semelhante ao que o compositor já fez no passado, e ainda conta com uma frase de mau gosto no refrão principal: E Deus vai desfilar. Mais uma vez, a Mocidade vem com um dos mais fracos sambas do grupo especial para o carnaval 2025.
Unidos da Tijuca
A Unidos da Tijuca tem um ótimo enredo para seu carnaval de 2025, “Logun-Edé Santo menino que velho respeita”, do carnavalesco Edson Pereira, artista de vasto currículo, com passagens por grandes escolas como Mocidade Independente, Unidos do Viradouro, Unidos de Vila Isabel, Mocidade Alegre de São Paulo, Unidos de Padre Miguel e Acadêmicos do Salgueiro.
O samba, da parceria da cantora Anitta – mais uma a se aventurar no mundo das escolas de samba, é um dos melhores da safra 2025. A letra, com poesia e leveza melódica com variações e riqueza, aborda a figura mítica Logun-Edé, um orixá Iorubá e santo de devoção da cantora Anitta, daí a ligação dela com o enredo da escola tijucana.
Na cabeça do samba, os compositores evocam, de forma lindamente lírica, a imagem de um espelho refletindo as águas de Oxum, a deusa da beleza e do amor, e a luz de Orunmilá, o orixá da sabedoria. Essa belíssima introdução estabelece o cenário mágico e espiritual, cuja a natureza e a divindade se encontram para criar Logun-Edé, um príncipe nascido do amor entre Oxum e Oxóssi, o caçador. A dualidade de Logun-Edé é o tema central da letra do samba. Ele é descrito como herdeiro da bravura e da beleza, características que simbolizam a união de seus pais divinos.
O refrão principal do samba do Pavão Tijucano enaltece a união entre o morro do Borel e Logun-Edé, mostrando a continuidade e a renovação da fé ao orixá e a tradição da escola de samba.
Unidos de Padre Miguel
Para encerrar nossa análise, vamos falar do melhor samba do grupo especial: o da Unidos de Padre Miguel. Depois de muito tempo, a agremiação volta a desfilar entre as grandes escolas de samba do Rio. A UPM traz como enredo para seu carnaval “Egbé Iyá Nassô”, assinado pelos carnavalescos Alexandre Louzada e Lucas Milato, e irá contar a trajetória da Ialorixá Iyá Nassô e a fundação do primeiro terreiro de candomblé do Brasil, a Casa Branca do Engenho Velho, na Bahia.
O belíssimo samba escolhido pela escola da Vila Vintém foi fruto da junção dos sambas das parcerias de Diego Nicolau com o samba da parceria de Chacal do Sax. Já disse aqui nessa coluna, várias vezes, que não sou muito adepto à junção de sambas nas disputas das escolas de samba. Dentre os fatores que eu considero ruim, está o desrespeito aos sambistas criadores de suas obras, pois a escola se apossa das canções e muda letra e melodia. Mas a gente sabe também que isso é algo que faz parte do jogo da escolha. As escolas alegam que, na prática, depois que os compositores inscrevem suas obras na competição, o samba passa a ser das escolas, que podem fazer dele o que elas quiserem.
Aceitando essa realidade, a junção dos sambas concorrentes da parceria de Diego Nicolau com o samba do pessoal do Chacal do Sax, foi uma escolha muito bem acertada. Quem já escutou os dois sambas pode perceber, claramente, que o da parceria de Diego tinha uma belíssima letra, poesia e uma melodia com criatividade e com nuances. Mas tinha um refrão principal que não explodia.
Já o samba da parceria de Chacal, embora tivesse letra, poesia e melodia bem resolvidas, era inferior esteticamente ao de Diego. Em compensação, o refrão de Chacal era de fácil canto e explodia na quadra. Resultado: a escola encontrou o samba perfeito, bem como arranjou um problema para as coirmãs. Com a junção, a simpática UPM tem o melhor samba do grupo especial do Rio de Janeiro. A canção da UPM celebra a ancestralidade e a resistência do povo preto, especialmente no contexto da cultura afro-brasileira. A letra é rica em referência aos orixás e à espiritualidade do candomblé, destacando a força e a proteção que esses elementos proporcionam aos seus seguidores. A lindíssima cabeça do samba traz a mágica invocação de kaô Kabecilê babá obá e faz menção a figuras como Ajapá e Alafin, reforçando a conexão com a tradição e a história dos povos africanos vindo para ao Brasil.
Poeticamente, uma das partes mais lindas do samba é a que aborda a importância da ancestralidade e da herança cultural, como evidenciado na singular passagem: Saudade, que invade! Foi maré em tempestade/ Sopra a ancestralidade no mar. Aqui, a saudade e a memória dos antepassados são vistas como forças que guiam e protegem, mesmo em tempos difíceis. A referência a Xangô e sua revolução na Bahia simbolizam, de forma fantástica, a luta e resistência contra a opressão escravocrata na épica Revolta dos Malês, maior revolta social negra do Brasil Colônia. Mostra também como a religião de matrizes africanas ajudou a forjar o caldo da resistência social do brasileiro durante a escravidão, desmistificando aquela bobagem dita por muita gente de esquerda do passado, que toda religião é o ópio do povo.
O refrão principal do samba é sensacional e fecha com chave de ouro a composição. Destaca a importância da família e da transmissão de valores e tradições de geração em geração. O refrão cita a homenageada Iyá Nassô como a voz feminina da negritude, sublinha o papel crucial das mulheres na preservação e na luta pela justiça e igualdade. O samba da UPM é nota 10, com louvor.
Analisando a qualidade de todos os sambas, minha conclusão é que a Unidos de Padre de Miguel, Unidos do Viradouro, Imperatriz Leopoldinense, Grande Rio, Beija Flor e Unidos da Tijuca levarão nota 10. A Paraíso do Tuiuti, Portela, Salgueiro e Mangueira receberão 9,9 e a Unidos de Vila Isabel e Mocidade Independente ficarão com 9,0.
Agora é só aguardar para ver os sambas na pista e as notas dos verdadeiros jurados.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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