Redação

O cinema é arte de especificidade própria, do contrário não seria arte, mas, faria parte de outra, dissolvido num conjunto maior ou mais amplo, de determinantes diversas. Justamente por singularizar-se, destaca-se das demais formas artísticas, configurando-se autônoma.

Não é, por sua vez, mera sucessão de imagens ou fotografias em movimento, havendo, necessariamente, no interior de sua articulação determinados imperativos ou leis que a regem, submetendo os elementos que a compõem e o conjunto daí formado a ritmo, sentido e eficácia coesa e coerentemente contextualizados, erigindo microcosmo independente, que se não confunde com nenhum outro, contribuindo, no entanto, como todos seus congêneres e dessemelhantes para formar o mundo contemporâneo, como uma de suas realidades.

Somente a percepção desse fenômeno e suas implicações permite entender, aceitar e se comprazer com os filmes verdadeiramente artísticos.

Nas artes em geral e no cinema em particular, as melhores obras não encontram ressonância popular dadas sua complexidade, requinte, sutileza e profundidade, que as tornam no mais das vezes ou quase sempre inacessíveis às compleições ingênuas e despreparadas, àquelas que se comprazem com existência balizada quase unicamente por suas necessidades de sobrevivência, entre as quais inclui-se o entretenimento barato, grosseiro e simplório, como o que a televisão lhes fornece em doses maciças.

Como já se disse, e quando visitou o Brasil lembrou o cineasta francês Cédric Kahn, diretor de O Tédio (1998), “as pessoas não querem saber, querem acreditar” (Folha de S. Paulo, 01 outubro 1999), que constitui uma das chaves para entendimento do que se passa no mundo atual, no qual a facilidade de comunicação e maior possibilidade de acesso ao conhecimento vêm funcionando justamente em sentido oposto.

O domínio e a manipulação desses meios pelos grandes interesses econômico-financeiros fazem deles instrumentos de mesmerização e imbecilização popular com o deliberado intuito de manter o povo onde ele está e como está, simples massa de manobra a serviço desses interesses, tanto como consumidores quanto como mão-de-obra e até mesmo como seus extremados defensores, formando uma sociedade em que quem não sabe acredita e quem acredita não sabe, mas, paradoxalmente, crê-se poço de sabedoria e proficiência, que o torna refratário à curiosidade, ao interesse e, em consequência, ao saber.

Tem-se, pois, um mundo em que a ignorância generalizada entroniza-se e impõe-se como sabedoria, inadmitindo discussão verdadeiramente livre e com utilização em larga escala dos atuais meios de (in)comunicação cultural, em que se questione e se debata, como é necessário, democrático e indispensável, os próprios fundamentos do statu quo.

Vive-se, sem que essa maioria dê-se conta disso, em plena ditadura de pensamento único calcado em preconceitos e falsos conhecimentos.

As contrafações artísticas, ou seja, falsos filmes, livros e músicas, inserem-se nesse contexto como eficaz elemento concorrente às verdadeiras e autênticas obras de arte, configuradas a partir de alta elaboração artística, livre debate de ideias e de temas e questionamento e oposição a toda impostura e hipocrisia em que se alicerça o mundo restrito aos interesses materiais e às conveniências sociais.

Nessa circunstância, a ciência, a arte, a cultura, o saber, a investigação, a pesquisa e o debate, escoimados das espúrias ideologizações, estão confinados a pequenos e isolados grupos.

O nazi-fascismo e o stalinismo – faces da mesma moeda – soçobraram como formas extremadas de imposição ditatorial de grupos econômicos, ideológicos e de poder. Na sua exacerbação, como contraparte dos interesses em conflito, foram derrotados.

Porém, o fundamento que os sustentaram e os objetivos finais que perseguiram são, em certo sentido, semelhantes aos de certos setores das forças vitoriosas, que, por outros meios e modos, estão infligindo ao mundo e às sociedades que o compõem seu domínio, tornado hoje incontrastável e só sentido e percebido por aqueles que, por isso mesmo, sentem-se marginalizados.

Já se está em plena sociedade prevista por George Orwell em 1984 e imageticamente mostrada por François Truffaut em Fahrenheit 451 (Grã-Bretanha, 1966), não havendo necessidade, pois, nem da sanha nazi-fascista-stalinista nem de que se persigam e queimem livros como no citado filme. Estes já estão confinados e humilhados em bibliotecas empoeiradas e nas poucas livrarias culturais ainda existentes, substituídas por supermercados livrescos de produtos quase sempre falsificadores do pensamento humano.

Quem ainda não percebeu (nem sente) essa realidade, inclui-se no grupo de consumidores e não de cidadãos, vivendo (intelectual e ideologicamente) felizes como todos os Desinformados.

(Do livro eletrônico Razão e Circunstâncias, outubro 2018)
Publicado inicialmente na Revista PRIMAX n. 8


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