Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para a Tribuna da Imprensa livre, o compositor Rubens Russomanno Ricciardi afirmou: “Importa fundarmos instituições públicas de caráter gratuito e includente, as quais garantam a existência da música com dignidade. O perigo é grande, pois se dependermos da iniciativa privada ou do mecenato da burguesia brasileira, só haverá indústria da cultura no Brasil e da pior espécie, a mais kitsch e tosca.” Para o compositor:
“Sequer devemos diferenciar arte e arte popular, pois são confluentes. Música é a arte do som, no tempo; Concerto é só uma das formas de performance musical; Erudição é a escolaridade ou ainda a sofisticação pirotécnico-tecnológica em temos neoliberais; Clássicos são só os artistas famosos e já há muito consagrados.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de concerto, música erudita ou música clássica?
Rubens Russomanno Ricciardi: Perdão, mas nenhuma das três. Além de concertos, sejam sinfônicos ou música de câmara, há também óperas e outras formas de encenação com música, atividades musicais pela internet e em outros ambientes, atividades estas que são artísticas por excelência e que não se enquadram na categoria “concerto”. A tal condição “erudita” da música, por sua vez, talvez remonte à frase latina eruditionis musicae peritum (perito em erudição musical) de Cassiodoro, o organizador da propedêutica pitagórico-platônica que prevaleceu em toda a Idade Média. Aquela erudição mística enquanto processo de aprendizagem em música designou, desde então, a escolaridade, ou seja, aquilo que você aprende, em termos de música, na escola – mas sequer está dito se terá aplicação ou não. A erudição é, desse modo, a parcela do conhecimento passível de instrução, de ensino. Por isso, o verbo eruditio em latim pode significar tanto a instrução de filhos quanto uma mente adestrada. Para um romano, uma boa escola, um bom ensino oferece “erudição”. Nos dicionários em latim, que fique claro, não há qualquer confusão entre erudição e arte, pois são questões absolutamente sem correlação, sequer metafórica – essas discussões inclusive fazem parte das minhas pesquisas conjuntas com o meu supervisionado de pós-doc pela USP de Ribeirão Preto, bolsista da FAPESP, Paulo Eduardo de Barros Veiga, latinista e violinista da USP Filarmônica. E não é por menos, “a erudição romana foi ainda uma concepção tardia e decadente da paideía” (a educação clássica dos gregos), tal como esclareceu Martin Heidegger. Nos momentos primordiais do pensamento grego, por sinal, o conhecimento sectário (de escolas dentro de seitas) era até mesmo visto com suspeição. Tanto que Heráclito de Éfeso já advertia: “muito aprendizado não ensina saber”. De fato, sozinhas, as disciplinas escolares da música (harmonia, contraponto, estruturação, questões texturais, percepção e solfejo, filosofia e história da música, técnica vocal, orquestração etc.) não dão conta da arte. É um erro histórico-filosófico reduzir a arte à mera erudição – a qual, nem de longe, é suficiente para compreendermos a essência da arte e os talentos que a envolvem. A arte não contempla apenas o artesanato técnico de escola – ou como se diz em outros países, Handwerk, métier, know-how etc. Mas sim, tanto na poíesis (a elaboração inventiva da obra de linguagem, o ofício de compositor) como na práxis (a interpretação-execução, um exercício tanto hermenêutico como prático-corpóreo, ofício dos cantores e instrumentistas), a arte tem a ver também com a singularidade, com o desvelamento (os gregos diziam alétheia), processo este que não conhece regra anterior por conta da fantasia e da imaginação abstrata do compositor. A grande arte tem ainda uma autonomia (conjunto de processos próprios), mesmo que relativa. As linguagens artísticas e seus caminhos poéticos (que dizem respeito à poíesis) devem ser irrestritamente livres e também desprendidos de todo padrão de erudição. E, para além da mera erudição, o artista pode pensar ainda criticamente o mundo da vida (Lebenswelt) – conceito de Heinrich Heine. Ou seja, o artista da poíesis pode sempre ainda criticar as “abstrações enganosas da história”, bem como as “falsas consciências” – tal como Karl Marx e Friedrich Engels definiam os fenômenos ideológicos em sua crítica contrária às ideologias opressoras. Em uma palavra, se a erudição é o conhecimento de regras e normas, por sua vez, a grande arte é sempre já a transcendência disso tudo, bem como o desvelamento do mundo da vida numa postura de amplas possibilidades crítico-ontológico-inventivas. Quero dizer com isso que não vale a pena estudar? Muito pelo contrário, o estudo incansável é a conditio sine qua non (condição imprescindível) de toda atividade intelectual humana. Apenas que, em termos de arte, não basta estudar, ter erudição. Os enigmas das linguagens artísticas dependem ainda de outras capacidades de se relacionar com o mundo da vida. É por isso que, sem talento, o máximo que conseguimos é algum aprendizado tecnológico. E não é que a tecnologia vem sendo muito valorizada pela sociedade neoliberal? Daí seria perfeitamente correto afirmarmos que um DJ, por exemplo, é um erudito do fonograma.
Assim também o são os agentes da indústria da cultura, com seus equipamentos pirotécnicos. Seus softwares e hardwares são altamente sofisticados.
Enfim, todo o showbiz se explica por sua condição altamente erudita, com sua tecnologia quase sempre de ponta. Importante definirmos, antes de mais nada, já que o assunto é erudição, a tal indústria da cultura: o fetiche do neoliberalismo. Enquanto sistema ideológico, a indústria da cultura surgiu no século XX com as novas tecnologias de comunicação de massa, impondo produtos audiovisuais e best-sellers fabricados em série e padronizados de acordo com o perfil e classes de consumidores passivos e desprovidos de espírito crítico, garantindo a sobrevivência cultural hegemônica do capitalismo. Tal como uma igreja que diferencia fiéis de hereges, a indústria da cultura impõe mecanismos brutais de adequação e padronização. Os hereges excluídos mal sobrevivem em seus contextos sociais. Tomemos o cuidado, contudo, de não generalizar, a priori, o cinema, o rádio, a televisão, a internet e nem mesmo a indústria fonográfica (ou qualquer outra possibilidade de mercado) enquanto veículos demonizados. Os veículos em si podem ser utilizados das mais diversas formas. Nosso estudo sobre a indústria da cultura tem como foco o modo hegemônico como este sistema ideológico opera esses veículos, por meio de uma poíesis (composição, invenção da obra) redutiva, submetida a priori ao marketing, o que corrompe sua liberdade. Voltando à questão da erudição propriamente dita, lembramos que o talento para a erudição tecnológica, todavia, não coincide com os talentos que resolvem a essência da arte, como já dissemos. A erudição (escolar/tecnológica), de modo algum, é garantia para configuração (Gestaltung) da linguagem artística – lembrando ainda que a tecnologia é sempre já uma ferramenta cultural, datada e condenada à obsolescência. A arte mesma, por sua vez, não é um bem cultural – ao contrário do que se diz por aí no senso comum (ditadura da opinião pública). Entendemos antes que a arte seja uma condição rara e privilegiada para que possamos nos distanciar criticamente da cultura. Nesse sentido, para combater a alienação (não apenas a alienação no trabalho, mas também as demais formas de alienação, como daqueles incapazes de reconhecer ideologias e questões da linguagem), no processo mais evidente da arte que se distancia criticamente da cultura, Bertolt Brecht inventou uma técnica em seu estilo teatral, chamada efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt), onde prioriza a capacidade de discernimento e não o envolvimento kitsch-sentimentalista com os personagens, despertando o espanto e o desejo pelo aprendizado crítico (não meramente escolar), gerando novas perspectivas de reconhecimento das contradições na realidade e ainda historicizando toda norma ideológica, em especial a moral burguesa em sua efemeridade. Podemos dizer, assim, que tecnologia e moral burguesa são um só, bem como erudição tecnológica e neoliberalismo – e todos estes são estranhos à grande arte. A tecnologia moderna se reduziu a um dispositivo mesquinho e kitsch de exploração, distanciando-se da integridade da antiga téchne (τέχνη), ou seja, da técnica desveladora enquanto arte. E ainda podemos perguntar: quantos letrados há no mundo, incapazes de qualquer poética (trabalho do artista da poíesis)? E quantos iletrados são fundadores da história (basta lembrarmos de Villa-Lobos, que sequer possuía diploma do Grupo Escolar)? Por fim, ninguém diz que Van Gogh, Picasso ou Portinari são pintores eruditos. Por que tal preconceito é sempre dito e reiterado na música? Mas no caso da música é barbaramente assim, pois dizem por aí, “erudito, branco, europeu, aristocrata, esnobe e elitista”, e daí a arte já está condenada a priori a ser exterminada – isso tudo para que a indústria da cultura imponha cada vez mais sua hegemonia imperial, aniquilando de uma só vez não só a arte como também a arte popular. Já a expressão “música clássica” é boa só para definirmos os nomes consagrados da história. Tom Jobim é um clássico da Bossa Nova. Louis Armstrong é um clássico do Jazz. Mas agora, os compositores vivos ou mesmo mortos ainda pouco conhecidos, mesmo alguns entre os mais geniais, como podem ser chamados “clássicos”? Outra questão, a grande arte sempre foi a arte experimental. Assim, o que designa a monumentalidade de uma obra de arte não é sua fama, mas o processo experimental que a encerra e seu resultado poético enquanto linguagem inventiva. E como ainda alguém vivo, atuando de forma experimental e cuja linguagem artística é dinâmica, alterando seus próprios rumos poéticos de uma obra para outra, poderia ser chamado de “clássico”? Qual a solução do problema então? Vamos dizer simplesmente música. Música é uma arte. Daí excluímos a indústria da cultura, cada vez mais afastada das artes. E sequer devemos diferenciar arte e arte popular, pois são confluentes.
Assim sendo: Música é a arte do som, no tempo; Concerto é só uma das formas de performance musical; Erudição é a escolaridade ou ainda a sofisticação pirotécnico-tecnológica em temos neoliberais; Clássicos são só os artistas famosos e já há muito consagrados.
Prestes Filho: Os arranjos que você gravou como Lundum, editado por Eduardo Laemmert; Imagina de Tom Jobim; Aquarela do Brasil de Ary Barroso, entre outras, ilustram seu interesse pela música popular brasileira. Este seu interesse pelo popular brasileiro sempre inspirou seu trabalho? Na sua versão de Mourão, de Cesar Guerra-Peixe, por exemplo, você incluiu instrumentos populares dos nordestinos. A proposta seria aproximar a música de concerto à sonoridade da música popular?
Rubens Russomanno Ricciardi: Com certeza, as oralidades populares, desde os primórdios do Romantismo, estão inseridas nas escrituras de muitos compositores em diversos países. Desde Lereno (Domingos Caldas Barbosa), poeta, libretista, poeta árcade, tradutor, violeiro e cantor carioca, formado pelos jesuítas no Colégio do Morro do Castelo (Rio de Janeiro), sob influência direta de Johann Gottfried von Herder (o poeta e filósofo prussiano oriental que, ao lado de Goethe, inventou o Romantismo), portanto, desde o último quartel do século XVIII, podemos falar de uma música popular brasileira – algo maior, mais plural e heterogêneo que a construção de segunda ordem, conhecida pela sigla MPB (deturpação ideológica). Desde então, nos primórdios do Romantismo, artistas letrados e intelectuais não só brasileiros, mas de todos os países, escrevem em tom popular. Acontece que o artista também pertence ao povo. Arte e arte popular são um só. Em minha versão (nova orquestração/arranjo) do Mourão do Guerra-Peixe, embora seja uma composição em tom popular, neofolclorista, não utilizo instrumentos originalmente “populares”. A zabumba, o triângulo e os pífaros, e mesmo as bandas de pífaros, sequer são instrumentos ou conjuntos folclóricos, mas sim são originários do exército prussiano, introduzidos no mundo militar lusitano pelo mestre-de-campo Schaumburg-Lippe, na década de 60 do século XVIII, quando esteve a serviço de Marquês de Pombal. Por sinal, o conde Schaumburg-Lippe foi mecenas tanto de Lereno, em Portugal, como de Herder, na Alemanha. Infelizmente, esquecemos da influência da música militar, presente no Brasil desde o período colonial, ao lado da ópera, da música sacra, da modinha e do lundum, das serenatas, do repertório concertante etc. É o mesmo caso do Olodum em Salvador, cujas sonoridades são tidas como “populares” ou mesmo “folclóricas”, mas se trata de um grupo cujo estilo musical é evidentemente militar, com similares em quase todos os países do mundo e com resultados artísticos idênticos (falo das sonoridades, não do visual). Mas por certo, das obras citadas, eu defino como popularistas (música popular urbana) o Lundum e a Aquarela do Brasil; e neofolclorista (música popular rural) o Mourão, todos arranjos sinfônicos proliferados meus. Já em Imagina eu só atuei como pianista, cujo gênero está mais para uma peça concertante para piano e orquestra que música popular.
Aliás, como o próprio Tom Jobim definiu, Imagina tem toda uma atmosfera francesa – lembremo-nos que o cancionista carioca foi bastante influenciado por Gabriel Fauré e Claude Debussy e que sem as harmonias francesas sequer haveria Bossa Nova.
Prestes Filho: Os compositores Claudio Franco de Sá Santoro (dodecafonismo/realismo socialista) e Gilberto Ambrósio Garcia Mendes (música brasileira de vanguarda) beberam na fonte da música brasileira. Claro, que cada um buscava sua própria linguagem. Como eles influenciaram a sua formação? Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo.
Rubens Russomanno Ricciardi: Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação. Eu assimilo destes dois praticamente os estilos em todas suas fases. Claudio Santoro escreveu em inúmeros estilos, teve tanta influência do Expressionismo alemão como dos cancionistas brasileiros desde o período colonial, bem como escreveu para todos os gêneros musicais, da música de cinema à ópera. Aliás, eu diria que Villa-Lobos, Claudio Santoro e Gilberto Mendes são os três pilares da música brasileira do século XX (sem desmerecer outros gigantes, mesmo Tom Jobim ou Pixinguinha, cujas obras dependem, às vezes, da viabilidade da práxis coletiva, uma vez que nem sempre as poéticas destes dois contemplam uma escritura integral para toda a estrutura musical, ou seja, para além da melodia com indicações harmônicas, daí há que ter complementos para que sejam executadas pela orquestra). Mas estes três, Villa-Lobos, Claudio Santoro e Gilberto Mendes são, além disso, os três compositores mais experimentais do século XX. Vanguarda não é um estilo, nem pode designar a poética de quem quer que seja, ainda mais se lembrarmos da velha vanguarda autoproclamada de Darmstadt, já há muito cansada e exaurida, tendo deixado de ser experimental há mais de 40 anos. Gilberto Mendes compôs em três fases diferentes (e eu tenho influência de todas elas), as quais eu defino como: (1) popularista/neofolclorista nos anos 40/50, com forte influência do PCB; (2) música conceitual e na linha da Neue Musik, um termo talvez melhor que vanguarda, nos anos 60/70, atrelado ao projeto do Festival Música Nova (desde 1962) e seu Manifesto (1963); (3) Nova Consonância desde os anos 80 do século passado até a sua morte, com novas relações tonais não funcionais, processos de síntese das duas fases anteriores, agregando elementos minimalistas e da Nova Simplicidade, em especial revisitando as sonoridades dos anos 30 – anos da formação de juventude deste notável compositor santista, professor da USP. Claudio Santoro e Gilberto Mendes são precursores da Bossa Nova e também se encontram entre os protagonistas da canção brasileira moderna. Não apenas pela poética deles, mas pelo pensamento crítico deles de esquerda, são dois dos artistas brasileiros que mais me influenciaram. É difícil falar de obras, seriam muitas, daí prefiro citar apenas artistas e pensadores que me influenciaram. Além dos citados Villa-Lobos, Claudio Santoro e Gilberto Mendes (e é claro, além também de Tom Jobim e Pixinguinha), não poderia esquecer de Heráclito, Aristóteles, William of Ocam, Perotinus e Machaut, Gesualdo e Monteverdi, os Galilei (pai e filho), Bach, Vivaldi e Domenico Scarlatti, Padre Vieira, Manuel Dias de Oliveira, Mozart e José Maurício Nunes Garcia, Beethoven, Heinrich Heine (e seu discípulo Karl Marx, além de seu seguidor, Castro Alves), Schumann (em especial pelas canções com textos de Heine), Chopin (e com ele seus fiéis seguidores como Ernesto Nazareth e todos os caipiras italianos), Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Bartók, Stravinski, Manuel de Falla, Mário de Andrade, Adorno, Friedrich Holländer e claro, talvez os dois principais para minha poética diretamente, Brecht e Hanns Eisler, além de Nelson Rodrigues (o falso reacionário).
Prestes Filho: Você foi o fundador do Curso de Música da Universidade de São Paulo (USP), na cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, e da USP Filarmônica (orquestra de alunos de graduação, bolsistas da USP). Estas atividades acadêmicas demonstram que você tem talento de gestor. Estas suas experiências de gestor têm sido importantes para sua atividade de compositor?
Rubens Russomanno Ricciardi: Eu sempre segui os passos do meu mestre Olivier Toni (fundador da Escola Municipal de Música de São Paulo, do Curso de Música pela ECA-USP, da OSUSP etc.). Importa fundarmos instituições públicas de caráter gratuito e includente, as quais garantam a existência da música com dignidade. O perigo é grande, pois se dependermos da iniciativa privada ou do mecenato da burguesia brasileira, só haverá indústria da cultura no Brasil e da pior espécie, a mais kitsch e tosca. A USP (onde desenvolvo carreira acadêmica de professor e pesquisador) é o porto seguro do meu pensamento crítico, o que influencia também minha poética (meu estilo de escrever música, meus caminhos de linguagem, meu trabalho como compositor ou artista da poíesis). Em especial, após ter fundado a USP Filarmônica, em 2011, portanto, nestes últimos 10 anos, minha escritura musical tem sido sempre cada vez mais atrelada às condições da práxis. Não sei se escrevo melhor depois que passei a atuar como maestro regularmente, por conta das agendas de concertos e récitas de ópera da USP Filarmônica, mas, com certeza, percebo que os músicos, em geral, gostam mais de tocar minhas solfas (partituras e partes musicais) elaboradas agora. Espero que gostem ainda mais de minha ópera A Matrona de Éfeso, a qual estou compondo nesse momento, o meu maior projeto composicional até aqui. Ópera é um gênero, por exemplo, que não perdoa sistemas coisificados nem fetiches acadêmicos. Não é para meros intelectuais ou compositores apenas com formação escolar. Compor ópera é ter noção de uma fluência e de uma organicidade única do canto e da execução instrumental, uma interação ontológica das mais singulares. Quero compor uma música, e isso não apenas na ópera, como dizia Aristóteles, que “propicie prazer e que faça pensar” – e a questão do prazer tem muito a ver com as interações do mundo da vida com a práxis. Quem canta e quem toca a tua música tem que se interiorizar, se aprofundar nela – não pode ser uma relação superficial ou sem envolvimento. O músico da práxis só se envolve de fato se ele sente prazer em tocar, se a temperatura do corpo dele se eleva em alguns graus no termômetro – tal como Brecht, quando ouvia as paixões de Picander/Bach. Já o fazer pensar, é claro, tem a ver tanto com a grande filosofia como com a grande arte: é quando a obra nos transforma existencialmente. Mas enfim, está claro que neste projeto da ópera A Matrona de Éfeso, cujo libreto foi escrito a seis mãos, em conjunto com Rudolf Schallenmüller e Paulo Eduardo de Barros Veiga, a adaptação do conto de Petrônio (poeta romano do século I) não seria possível se eu não me aventurasse intensamente para além das estruturas musicais – e minha vida acadêmica na USP por certo me levou a isso. As pesquisas e as teses nos levam sempre a ler muitos autores. No meu caso ainda, pela USP em Ribeirão Preto, eu leciono não apenas Teoria Musical e Prática de Orquestra, mas também Filosofia e História da Arte, o que me aproxima necessariamente das demais artes, em especial o teatro. Tanto que o experimentalismo poético desse projeto consiste em procurar unir duas linhas de encenação aparentemente excludentes, como Brecht e Nelson Rodrigues. A pesquisa por certo influencia a poética. Por fim, ainda sobre o projeto dA Matrona de Éfeso, estou convencido de que todo esse papo de identidade, comunicação e cultura, é não só uma grande bobagem, como também destrói nossa capacidade de pensar e inventar. Somos acima de tudo greco-romanos. E eu diria mais, somos ainda mais romanos que gregos – não é possível pensar Nelson Rodrigues sem Petrônio, nem Zequinha de Abreu sem Catulo.
Nesse projeto, eu procuro uma plena interação de nossa contemporaneidade com o mundo greco-romano da obra de arte. É possível fundir Plutarco com João Cabral de Mello Neto, ou mesmo Catulo com Heine, sem perder o foco da linguagem. No nosso novo libreto, eu inseri novos personagens e novas cenas, mesmo tendo aproveitado tudo, 100% mesmo, da obra original de Petrônio, mas que acabou se tornando um florilégio. Vamos ver no que vai dar.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Como tem sido importante a atividade junto ao Ensemble Mentemanuque (grupo dedicado à música contemporânea) do qual você é fundador?
Rubens Russomanno Ricciardi: Atuo no Festival Música Nova “Gilberto Mendes” atendendo a um desejo expresso deste meu mestre em 2011. Assim, desde 2012, a USP de Ribeirão Preto tem sido a sede do festival, mesmo que, por sorte, não percamos as ligações as mais fecundas com Santos, berço do festival. Paradoxalmente, meu maior contemporâneo é Heráclito de Éfeso – tenho ocupado meus pensamentos intensamente com seus fragmentos. Não há ninguém mais atual que Heráclito, nem outro pensador na história que de modo algum se contradiz, como o efésio. Em relação aos repertórios musicais contemporâneos, por conta da internet e das inúmeras relações profissionais, ouço sempre tudo que está fora da indústria da cultura (que nada tem a ver com arte popular), de todos os países e de todas as épocas. Quanto ao Ensemble Mentemanuque, o qual fundei em 1993, é um grupo em plena atividade, com várias formações e convidados, sempre atrelado à reconstrução de memória da música brasileira ou aos nossos projetos experimentais (novas obras inéditas), em colaboração direta com meus colegas ou ex-alunos mais próximos (José Gustavo Julião de Camargo, Lucas Eduardo da Silva Galon, Lucas Pigari, Vitor Zafer, Andrea Kaiser, Roberto Minczuk, Yuka de Almeida Prado e Gustavo Silveira Costa, entre outros).
Prestes Filho: Em sua obra Cantata você traz a poesia de Ferreira Gullar para a cena da música de concerto. Qual foi o desafio que você enfrentou nesta obra? Destaque outras obras suas realizadas a partir da poesia brasileira? Também, de projetos em andamento, baseados ou inspirados na literatura brasileira ou estrangeira.
Rubens Russomanno Ricciardi: O poema Cantada remonta aos anos 70 do século passado, quando Ferreira Gullar ainda era de esquerda. Eu li o poema e imediatamente me veio a música à cabeça. Eu sempre fui um admirador da Revolução Cubana, desde bem jovem. Sempre li os textos de Che Guevara e Fidel Castro e sobre eles. Eu escrevi esta canção em 1983, nos últimos anos da ditadura civil-militar-burguesa de 1964. Naquela época, o Gilberto Mendes estava mudando de estilo (de sua primeira para sua segunda fase) e a gente falava bastante sobre a “batida” do João Gilberto ao violão. Chegamos a grafar os ritmos improvisados dele, quando tocava Bossa Nova. Tanto o Gilberto Mendes, como eu, utilizamos experimentalmente a batida do João Gilberto em várias obras nossas. Eu tenho certo orgulho dessa canção Cantada, porque ela talvez tenha sido a última canção Bossa Nova da história e, com certeza, foi a única originalmente sinfônica. Não é por menos que seja meu Opus 1. Já apresentei a obra com várias orquestras e a recepção dos músicos (todos se divertem e tocam com bom humor) e do público é a melhor possível – exceto dos reacionários na plateia, é claro, os quais nem aplaudem. Mas gosto ainda assim da provocação (letra da canção enaltece a Revolução Cubana), afinal, o gado de direita só sabe mesmo mandar a gente para Cuba o tempo todo. Eu não acredito em Deus, mas se Ele existisse, por certo o agradeceria por ter nascido inventor de música e que atua diretamente com as orquestras. Não há alegria profissional maior, por parte de um compositor maestro, que os músicos te respeitarem no palco justamente por aquilo que você escreve – algo que não ocorre com os compositores não maestros e nem com os maestros não compositores. Eu me sinto sempre como um mestre-de-capela do século XVIII, atuando em todas as áreas da música. E desconfio abertamente de todos os especialistas, ainda mais quando incapazes de integrar as questões da poíesis com as questões da práxis e da theoria.
Sobre as interações literárias, eu tenho composições com poemas de Cervantes, Neruda e poetas cubanos dos tempos da Revolução (em castelhano), Brecht, Heine e Wolfgang Herbert (alemão), Saga Nobuyuki (japonês), Vinícius de Moraes, Sylvio Ricciardi, José Maurício Cagno, Castro Alves e Fernando Pessoa (em português), entre outros, fora os arranjos e orquestrações de outros autores com tantos outros poetas envolvidos.
Prestes Filho: Seu trabalho de professor, maestro e de compositor na Universidade de São Paulo (USP) tem forte conteúdo social e político. A obra Viva Gramsci está neste contexto? Ela foi realizada para lembrar o grande teórico e ativista político marxista italiano. Seria uma continuidade crítica da sua formação na República Democrática Alemã (RDA), ex-Alemanha Oriental? As obras Lenda de Hiroshima, Requiem pour l’émancipation du sujet rationnel, Candelárias, uma abertura trágica, entre outras, demonstram seu posicionamento político libertário. Como se deu o desenvolvimento dos seus estudos do marxismo? Como a queda do muro de Berlin influenciou o mesmo?
Rubens Russomanno Ricciardi: Todas estas obras citadas são politicamente engajadas. Eu me defino como um artista de esquerda, porque me lembro da Assembleia Francesa no final do século XVIII, quando à direita se sentavam os deputados que defendiam os interesses dos poucos ricos e à esquerda aqueles que defendiam os interesses dos muitos pobres. Portanto, direita e esquerda existem desde antes de Marx e do socialismo. Nada impede que ainda hoje as atuações políticas sejam definidas à esquerda (o polítikos, preocupado com a liberdade e o bem estar de toda a comunidade e eu diria hoje, preocupado ainda com a sobrevivência da natureza em nosso planeta) ou à direita (o idiótikos, aquele voltado aos interesses particulares e mesquinhos, representante hoje do neoliberalismo, a ideologia do capital financeiro), mesmo após a queda do muro de Berlim, em 1989. Aliás, como diria Heiner Müller (quem conheci em Berlim Oriental e muito me influenciou), “com a queda do muro de Berlim não foi Marx que acabou, mas sim a tentativa de refutá-lo”. Vou citar aqui Heidegger em sua definição de Marx: “Porquanto Marx toma ciência da alienação, e assim chega a uma dimensão essencial da história, sua concepção de história se sobrepõe a todas demais historiografias. Por razão disso, nem Husserl e, o tanto eu vejo até aqui, nem Sartre, reconhecem a essencialidade da condição histórica no ser, consequentemente, nem a fenomenologia, nem o existencialismo, chegam àquela única dimensão, dentro da qual só nela será possível um diálogo produtivo com Marx”. Ou seja, para Heidegger, ninguém compreendeu a história melhor que Marx. Se para Marx ocorre a alienação no trabalho, para Heidegger a alienação é uma questão do esquecimento do ser. Eu tento unir a ambos quando falo do esquecimento da poíesis, bem como da sedução pela ideologia, como já afirmei antes. Lembremo-nos ainda que em Marx temos teorias sobre as realidades concretas de sua época. Não há em Marx uma proposta do modelo ideal de Estado. Marx jamais foi um teórico do comunismo. Ele foi sim o teórico do capitalismo, na perspectiva epistemológica inventada por ele e por Engels, que foi a crítica da economia política, tendo sido o maior intérprete da sociedade capitalista do século XIX. Por outro lado, a direita, em seu cinismo fascista, insiste em lembrar de Stalin e Mao-Tse-Tung como grandes genocidas, como se eles tivessem algo a ver com Marx, porque de fato nada têm. Estes não foram sequer políticos de esquerda, mas sim traidores das causas da esquerda (Robespierre também foi outro traidor), pautada antes na dignidade da vida humana. Contudo, entendo sim que a esquerda do século XXI precisa se reinventar, falar da liberdade num sentido moderno e não apenas da igualdade em um sentido moderno, e ainda da natureza e da justiça social. Toda essa agenda imprescindível, no entanto, é atrapalhada imensamente pelo culturalismo relativista com suas pautas identitárias e lugares de falas, verdadeiras aberrações epistemológicas. Está claro que devemos falar em lutas de classes e lutar contra o neoliberalismo, como já disse e repito, a ideologia do capital financeiro.
Mas não sou a favor da estatização de todos os bens de produção, mas sim só daqueles essenciais e estratégicos para a sobrevivência da natureza e para a dignidade na qualidade de vida das populações.
Como eu vivi na Alemanha Oriental, no final dos anos 80, pude ver que várias instituições públicas funcionam muito bem num Estado social, como nas áreas da saúde, previdência, diretos trabalhistas, proteção às minorias (que não tem nada a ver com as pautas identitárias, caracterizadas antes pelo egoísmo neoliberal), educação, pesquisa, ciências, universidades, artes, esportes etc. Contudo, não faz sentido um restaurante ser estatal, nem o comércio e os serviços, nem uma fábrica. Por certo, podemos achar formas em que o dinheiro circule de modo produtivo e não apenas se acumule como no neoliberalismo do capital financeiro, gerando miséria, como ocorre hoje no Brasil. Temos que repensar a sociedade de consumo, quem sabe encontrando uma faixa de vida com um certo conforto e segurança social, mas sem ultrapassar a linha em que a natureza do planeta seja comprometida tal como ocorre hoje. Após a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética, não há mais programas partidários de fato comunistas no mundo. A China se tornou uma potência após o processo de liberalização econômica, com seu capitalismo de Estado, contudo, reiterando, desde sua Revolução Cultural, problemas gravíssimos de direitos humanos; a Coréia do Norte é a aberração de uma monarquia terrorista; Laos sequer resolveu os problemas básicos de saúde e educação; o Vietnã luta com dificuldades para se desenvolver; e a população em Cuba, não obstante as conquistas sociais relevantes da revolução (em especial, na saúde e na educação), sofre com o embargo yankee-estadunidense, entre outras enormes dificuldades internas e externas, e tende agora a flexibilizar o regime.
Assim, quem fala de comunismo hoje comete anacronismo histórico – claro que o gado de extrema direita acredita que a Terra seja plana e ainda que a Amazônia não importa à biosfera. Ou seja, não devemos pensar nossos conceitos por conta da estreiteza tosca de quem quer que seja.
Devemos continuar pensando crítica e livremente, buscando uma sociedade mais justa, que proteja a natureza e que seja menos kitsch. Devemos nos lembrar que o fim do comunismo não tornou melhor o capitalismo, o qual, por sua vez, não apresenta solução para os problemas mais básicos da humanidade. Talvez o melhor caminho para a esquerda hoje seja um Estado social com preservação ambiental, em que as restrições ao acúmulo do capital financeiro não signifiquem o fim das liberdades individuais. Bom, eu me lembro de Heiner Müller de novo, pois ele disse que “talvez a exploração seja o preço da liberdade”. Eu espero que ele esteja errado nesta previsão. Sobre minhas obras politicamente engajadas, Viva Gramsci (1986) é uma composição de juventude (escrevi poucos meses antes de ir para a Alemanha Oriental). Eu pensei no conceito de cosmopolitismo avançado em Gramsci, que une os interesses das classes trabalhadoras em todo o mundo. Pensei numa obra que pudesse ser tocada pela banda de música no coreto da praça de uma cidade do interior em qualquer país do mundo. Também naqueles anos 80 do século passado, a velha vanguarda autoproclamada, da geração Darmstadt, já dava sinais de esgotamento. Então, de uma certa forma, essa obra é também uma tentativa de ruptura poética. Me lembro que os velhos vanguardistas ensimesmados tripudiavam autores como Villa-Lobos, Chostakóvitch, Prokofiev ou Nino Rota. Contudo, neste último caso, eu entendia a força daquela música para cinema e procurei então articular toda uma atmosfera felliniana na orquestra. Desse modo, Viva Gramsci continha uma dupla crítica, à exploração capitalista em sua forma fascista (Gramsci foi preso político de Mussolini) e à música pobre de mundo e alienada da geração anterior, tal como eu julgava então a geração Darmstadt. Acabamos de postar uma nova performance da Alegoria de Hiroxima (2007) pelo 55º Festival Música Nova “Gilberto Mendes” de 2021, recém gravada pelo Ensemble Mentemanuque, obra musical minha com poema japonês, dedicada à Yuka de Almeida Prado, sobre a desumanidade da bomba lançada pelos yankees-estadunidenses nas cidades de Hiroxima e Nagasaki, importante nunca esquecer! O meu Requiem pour l’émancipation du sujet rationnel, uma música de defunto àquele sujeito julgado racionalmente emancipado, cuja emancipação, contudo, resultou num engodo, é uma narrativa audiovisual inspirada no livro Dialética do Iluminismo (1947) de Adorno e Horkheimer. A tese deste clássico da Escola de Frankfurt é que o tipo de racionalidade, que remonta ao século XVIII iluminista, acabou engendrando monstros no século XX, tais como a indústria da cultura, a padronização na vida de populações inteiras que acabam vivendo e agindo como gado, o holocausto, a tecnologia militar a serviço do terrorismo de Estado (como no caso constante dos EUA), as relações entre ciência e perversidade etc. Eu coloco nesta obra, por exemplo, agentes da indústria da cultura, a política reacionária de igrejas e seitas de extrema direita, políticos populistas e fascistas com suportes tecnológicos, poluição da natureza e do lógos, a massificação na construção civil, um cartaz nazista seguido de um cartaz da OTAN, bem como cenas em Auschwitz seguidas de crianças mortas no Oriente Médio pelos drones dos democratas yankee-estadunidenses, ficando claro que são todos um mesmo e único processo de racionalidade voltada à morte de seres humanos, à destruição ambiental e ao kitsch generalizado. A obra Candelárias, uma abertura trágica (1994), foi escrita logo após a chacina ocorrida em julho de 1993, junto à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Mais uma vez falamos aqui do otimismo gerado pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa em contraste com os monstros da nossa condição de barbárie contemporânea – e os milicianos, atuando em conjunto com as seitas pentecostais, ditas evangélicas, só tiveram seu poder aumentado de lá para cá. Eu pensei como referência na abertura Egmont, de Beethoven, onde após toda a dramaticidade musical que retrata a até cabeça cortada do revolucionário belga, defensor da liberdade, ocorreu o triunfo de seus ideais, com um grande final que lembra a Marselhesa. Já em Candelárias, temos o assassinato das crianças, mas sem hino triunfante no final. Não há planos nem ideias, as quais possamos festejar. Pelo contrário, só nos resta a falta de perspectivas diante de um quadro estarrecedor. Nessa obra eu inventei uma escrita específica para cuíca, aí sim um instrumento popular brasileiro de fato – o Prof. Eduardo Gianesella, do Instituto de Artes da UNESP, até dedicou um capítulo ao meu tratamento dado à cuíca em Candelárias, em seu importante livro sobre a percussão sinfônica no Brasil. Em geral quando se pensa em cuíca, se pensa em samba. Mas em Candelárias, a cuíca de modo algum evoca ritmos de dança (não é obra popularista nem folclorista).
Eu utilizo a cuíca antes na tradição dos velhos lamentos, convertidos ali num choro de malandro, em solos e em duetos com o trombone.
O resultado é uma sonoridade carioca talvez singular (eu sou um caipira do interior de São Paulo que tenho várias obras compostas bem ao espírito carioca, porque tenho uma fascinação pela cidade do Rio de Janeiro, por suas histórias, suas paisagens, suas gentes). É uma obra experimental, Candelárias, e pode ser exibida junto com o vídeo de Chico Marinho, professor da UFMG, quando elaboramos em conjunto uma narrativa audiovisual. Aqui eu insisto no caráter trágico, porque sempre critico a práxis alienada, tal como na indústria da cultura ou no esnobismo estéril de certos teatros sinfônicos, incapazes de paixão ou tragédia, cujo mundo é a vida em suas condições mais drásticas. Hegel perguntava, em relação aos velhos lamentos pré-iluministas, o que está sendo chorado? Aqui eu procuro responder. Choramos o próprio sofrimento causado pela modernidade em suas condições sociais as mais brutais, cuja política econômica permanece incapaz de conferir ao ser humano as mínimas premissas de emancipação e dignidade, demonstrando ainda, a cada instante, sua decadência mesquinha, neoliberal e genocida. Talvez Beethoven tenha sido um pessimista disfarçado de otimista, e minha humilde pessoa, o contrário. Talvez eu seja um otimista disfarçado de pessimista. Sobre este paradoxo, quem esteve certo foi o Romain Rolland (musicólogo francês e Prêmio Nobel de literatura em 1915), “pois mesmo que pessimistas com a inteligência, importa que sejamos otimistas com a vontade”. Não há projeto sem sonho nem transformação sem utopia. Todo trabalho construtivo parte de uma postura otimista, não obstante o péssimo mundo em que vivemos. A crítica contrária à opressão sempre carrega um desejo de libertação. Nesse sentido, a tua pergunta faz todo sentido. Eu comecei a ler sobre Marx aos 13 anos de idade, por meio de uma biografia dele redigida por Leandro Konder. Daí nunca mais parei de ler Marx e Engels. Quando estudei em Berlim Oriental, conheci a edição das obras completas de Marx e Engels (MEW) pela Dietz Verlag, inclusive cursei uma disciplina de pós-graduação sobre as questões filosóficas de nosso tempo (chamavam de Marxismo-Leninisno ou simplesmente ML) na Universidade Humboldt (a mesma antiga Universidade de Berlim, da qual Hegel foi reitor e Marx aluno de graduação em seu curso de Direito). Acabei sendo o melhor aluno da classe – não porque eu fosse o melhor aluno, mas apenas porque eu era o mais interessado na matéria. Entre alunos do leste europeu, da Coréia do Norte, Oriente Médio e da Alemanha Oriental, claro que um latino-americano sempre vai ter maior interesse no pensamento revolucionário. O professor da matéria me disse, certa vez, que os americanos latinos, de um modo geral, eram, de longe, os mais interessados em Marx e Engels e tinham ainda um pensamento crítico mais desenvolvido. Eu concordo, contudo, com o Prof. José Paulo Netto: “Marx e Engels são necessários, mas não são suficientes”. O otimismo crítico-poético entre artistas, e não meramente prático, de transformação do mundo, é devido em grande parte à influência de Marx, mesmo também sem uma poíesis crítica em sua obra, porquanto já revelava “o significado da atividade prático-crítica, revolucionária” – com a ressalva de que, nas artes, encontra-se na poíesis, e não na práxis, a força impulsora da linguagem revolucionária. Portanto, eu entendo que em Marx e Engels há uma práxis crítica, mas falta uma poíesis crítica. O monumental obra de Marx e Engels, levando ao paradoxo de um pretendido processo revolucionário, mas sem os caminhos da poíesis crítica.
Entretanto, a poíesis é a elaboração inventiva de obras de linguagem, a produção não alienada em seu sentido mais revolucionário. Na poíesis temos a invenção desveladora.
Para Heidegger, esse desvelamento na linguagem do pensamento ou na produção da obra de linguagem é definida pela alétheia (desencobrimento). A alétheia é a essência da téchne, de acordo com o antigo pensamento grego. A poíesis em sua téchne desvela, pois descobre o que antes estava oculto, relembra o que estava esquecido e ainda ilumina o obscuro. Só podemos pensar a linguagem inventiva em suas raízes no mundo da vida enquanto alétheia e téchne, constituindo o processo da poíesis. Esse passo de Heidegger à frente de Marx não teria sido antes um retorno a Heráclito e Aristóteles? Ora, para repensarmos Marx, temos que retroceder à Grécia antiga? Onde será que nos perdemos com essa metodologia anacrônica? Não nos perdemos. O próprio Marx indica o caminho mais radical do pensamento onde nos deparamos em casa: “a mais nova filosofia está apenas prosseguindo um trabalho já iniciado por Heráclito e Aristóteles”. Por isso estou escrevendo um livro que visa sistematizar todo o meu pensamento: Homo stultus – o esquecimento da poíesis e a sedução pela ideologia. Neste livro, eu procuro integrar as questões da crítica contrária à ideologia e da luta de classes em Marx e Engels com a representação simbólico-inventiva da mímesis em Aristóteles, bem como com os processos de elaboração da obra de linguagem, para os quais precisamos não apenas revisitar o já há muito esquecido conceito de poíesis, mas também o lógos de Heráclito. Neste meu livro sobre o Homo stultus – aquele típico personagem de nossos tempos, o qual se esqueceu da poíesis e se deixa seduzir pela ideologia – eu procuro mostrar as diferenças semânticas em torno do conceito de ideologia, separando, de um lado, seu significado fraco (sentido neutro, amplamente utilizado) desde Antoine Destutt de Tracy, a pretensa ciência das ideias, mas que na verdade é a aparência alienada das representações político-partidárias e; de outro lado, seu significado forte (sentido crítico e negativo, raramente utilizado) desde Marx e Engels, a abstração enganosa da história que deturpa o conhecimento e a política, legitimando o poder de uma falsa autoridade em sua falsa consciência. O livro tem como objetivo, portanto, aproximar nossos alunos a alguns dos conceitos fundamentais em Marx e Engels. Contudo, em Marx, em sua teoria da Überbau (supraestrutura), há uma confusão entre cultura e arte. Marx não foi capaz de compreender uma poíesis não alienada, ao priorizar a revolução econômica das bases sociais, em detrimento de outras revoluções não menos importantes, como a da linguagem (lógos), seja na filosofia, mas artes ou nas ciências. Hoje, como não se pode abrir mão das lições da história, a esquerda crítica e esperamos, já sem idolatrias, luta por justiça social com a mesma intensidade que luta pela liberdade e pela preservação da natureza. Muitos artistas em todos os países do mundo ainda se fazem fortes por essas utopias imprescindíveis. Aliás, “os seres humanos precisam de utopias, e direi mesmo: – são umas quatro ou cinco utopias que ainda nos salvam”, tal como ensinava Nelson Rodrigues. Por certo, não há revolução sem utopia. Mais que isso, a práxis política numa revolução, sem poíesis crítica, termina com o fracasso dessa revolução – a morte de Vladimir Maiakoviski (poeta soviético) foi o primeiro anúncio dessa tragédia. Mesmo as utopias carecem da integridade poético-prático-teórica. Ou seja, não existe uma integridade meramente prático-teórica, pois a teoria e a prática, mesmo juntas, jamais serão suficientes para a elaboração ou compreensão da obra de linguagem.
Junto à theoria e à práxis temos também que levar em consideração a poíesis – como já dissemos, sem jamais esquecê-la. A poíesis é sempre o exercício de utopia mais fecundo, pois lida com abstrações e fantasias numa condição mais radical que a theoria e a práxis são capazes.
Prestes Filho: Seu nome completo reúne os sobrenomes do Edmundo Russomanno e do Adelino Ricciardi. Conte sobre a importância dos mesmos para sua trajetória. Ao gravar com a USP Filarmônica seu arranjo do Hino do Corinthians, você homenageou estes seus dois parentes diretos.
Rubens Russomanno Ricciardi: O meu tio Adelino Ricciardi (irmão do meu pai) foi editor da Revista Corinthians, nos 40 e 50 do século passado. Ele articulou com o amigo dele, o radialista Lauro D’Ávila, uma nova letra (com slogans da Revista Corinthians), e chamaram meu avô Edmundo Russomanno (pai da minha mãe), para escrever a música. O sucesso foi tão grande que se tornou o novo Hino do Corinthians. Contudo, os créditos acabaram ficando só com o radialista, e ainda os direitos autorais foram logo vendidos a uma gravadora. Foi importante resgatar essa história, para a qual tive o apoio da equipe do Memorial Corinthians. Lembro que meu avô, Edmundo Russomanno (Bragança Paulista, 1893 – Ribeirão Preto, 1963), era maestro de banda, compositor de dobrados (o Hino do Corinthians inclusive tem frases melódicas idênticas ao seu dobrado O Órphão, composto anteriormente), sambas, peças concertantes, música sacra, valsas e choros. Como meu avô era clarinetista, a minha homenagem se estendeu ainda a este detalhe, pois coloquei a clarineta como instrumento solista na nova versão sinfônica sem canto, que gravamos pela USP Filarmônica.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?
Rubens Russomanno Ricciardi: A Academia Brasileira de Música, fundada por Villa-Lobos, é instituição da mais alta importância. Acredito que todo músico brasileiro sonha em participar dela como membro. Eu faço parte da Hanns Eisler Gesellschaft, porque sempre me interessa a pesquisa em torno de Eisler e sua obra (meu mestrado é sobre Eisler) e ainda sou membro do Conselho da Fundação D. Pedro II, mantenedora do Theatro Pedro II em Ribeirão Preto, mas como representante da USP, onde participo de inúmeros conselhos e colegiados. O meu foco de engajamento institucional, nesse sentido, é sempre a USP, como não poderia deixar de ser, pois atuo nela como professor titular em tempo integral. Já quanto às demais associações ou sindicatos não tenho o mesmo entusiasmo, nem teria tempo. Eu tenho também carteirinha da OMB, mas sou contra sua obrigatoriedade. Por princípio, penso que a arte deva ser irrestritamente livre (como já disse antes aqui). Sou mesmo radical na defesa da liberdade da arte, em todos os contextos. Sou contra censura e contra toda norma ou regra cultural que visa enquadrar ou reprimir a arte, os artistas e as obras de arte. Contudo, eu considero, da mais alta importância, o fortalecimento dos projetos sociais com música, das escolas e das universidades públicas com cursos de música em todas as áreas (poíesis, práxis e theoria), dos teatros e fundações públicas que fomentam a música – em todos os gêneros: recitais e música de câmara, concertos coral-sinfônicos, récitas de óperas, balés com música ao vivo etc. Claro, mas tudo isso fora da indústria da cultura, a qual jamais deveria receber o apoio do Estado.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Rubens Russomanno Ricciardi: A resposta a esta pergunta é historicamente simples. No Império Romano, seguindo os conceitos gregos nas artes, houve a construção e fomento de odeons e teatros em todo o norte da África, em toda a Europa romana e em todo o Oriente Médio romano. Mesmo que a documentação seja insuficiente, por certo a música, o teatro e a dança foram incrivelmente estimuladas (como todas demais áreas do conhecimento). Na Idade Média, a Igreja foi a maior mecenas das artes e nenhum teatro ou odeon foi construído, o que indica, por certo, um período de decadência para as artes – não obstante a força das artes sacras nem o surgimento das universidades. Mesmo naquele instante de miséria, as artes não deixaram de ser artes, nem se tornaram meramente cristãs. O artista que escreve sua obra de arte, em sua liberdade e linguagem, há que ser diferenciado do mundo cultural no qual ele sobrevive. As artes sacras foram uma questão de sobrevivência, não uma opção intelectual nem a profissionalização da fé. Tanto que na Idade Média temos grandes artistas revolucionários, tais como Perotinus, Mestre de Naumburg ou mesmo Dante Alighieri. Na Idade Moderna, os nobres se tornaram os grandes mecenas – em especial por conta do Renascimento, com a redescoberta das artes e do pensamento crítico greco-romano. Já na Idade Contemporânea, com a decadência da Igreja (hoje Igreja e indústria da cultura são um só) e da nobreza (mesmo nos países monarquistas, como a Coréia do Norte, nada há de mais anacrônico, kitsch e inútil que uma “família real”), resta o Estado para patrocinar as artes. Há exceções em países com costume de mecenato privado. Mas talvez tirando o João Fernandes de Oliveira, nos tempos dos diamantes no Arraial do Tejuco, não há um único rico brasileiro que tenha sido de fato mecenas das artes – eu, pelo menos, não me lembro. Então, qual setor do Estado viabiliza as artes no Brasil hoje? As secretarias municipais e estaduais de cultura e o Ministério da Cultura? De modo algum. Na cultura sempre prevalece a indústria da cultura. Aliás, eu sou a favor de que os principais teatros, orquestras e fundações públicas (onde atua um grande número de artistas da práxis em música) saiam do domínio da cultura, que estejam sob administração de outros setores do Estado – há ainda que se descobrir os melhores caminhos. Do jeito que está não vai bem. Neste sentido, o que resta no Brasil para fomento das artes? As universidades públicas. Eu não tenho receio em afirmar esta tese drástica: sem as universidades públicas, não haveria artistas da poíesis no Brasil, só haveria produção alienada da indústria da cultura. Portanto, temos que reconhecer a importância extraordinária das universidades públicas para as artes no Brasil hoje, apesar de todos os problemas que encontramos nelas e da CAPES, que é a maior inimiga das artes dentro das universidades públicas. O fato é que os artistas da poíesis, se antes recebiam apoio da Igreja ou da Nobreza, conseguem sobreviver atuando em universidades públicas (não só no Brasil, mas é um fenômeno mundial).
E digo mais, o encontro entre artistas e universidades públicas é dos mais fecundos em toda a história. É bom para os artistas, é bom para as universidades. Só resta dividirmos melhor, no Brasil, as áreas do conhecimento: não humanas, exatas e biológicas, mas sim ciências da natureza, filosofia, estudos culturais e artes. Há que se valorizar as artes fora dos estudos culturais e a pesquisa em artes não voltada ao culturalismo, mas sim à poíesis e a práxis nas artes. Considero esse próximo passo possível.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Rubens Russomanno Ricciardi: Eu tenho focado minha atuação nos últimos 10 anos com a USP Filarmônica, de tal modo que não seria prudente falar de outras orquestras, sejam profissionais, de estudantes universitários (como é o caso da USP Filarmônica) ou mesmo de alunos em projetos sociais (como são os casos da ALMA e do USP Música Criança, projetos conveniados com a USP nos quais eu atuo). Uma exceção talvez seja o projeto Música nas Escolas de Barra Mansa, brilhantemente comandado pelo Vantoil Souza, bem como a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, a qual tive oportunidade de reger por duas vezes. Barra Mansa é um notável centro musical hoje no Brasil, com toda certeza. Admiração tenho ainda pela importância histórica de orquestras existentes, como a Lira Sanjoanense, de São João d’El Rey, fundada em 1776 e que merece o reconhecimento de todo o Brasil. Uma orquestra extinta, mas cuja história eu admiro muito, é a Real Câmera e Capela do Rio de Janeiro (1808-1821), dos tempos do João VI – acredito que nunca tivemos uma importância internacional como aquela, ao mesmo tempo em repertório sinfônico, sacro e operístico. Já nos tempos de Pedro I, a orquestra começou a ser desprezada e nunca mais conseguiu recuperar seu brilho, mesmo com Pedro II. Logo após o golpe militar que proclamou a República, em 1889, a mentalidade destrutiva do positivismo – em nome da ordem e do progresso, regado pelo tríplice ódio à monarquia, à Portugal e à Igreja –, fez com que a orquestra fosse imediatamente extinta e seu arquivo destruído (foram perdidas centenas de obras pelo menos desde o século XVIII), junto ainda com a destruição da maior parte de nosso patrimônio arquitetônico colonial. Roberto Minczuk (trompista e maestro) e Claudio Cruz (violinista e maestro), apresentaram várias obras minhas, portanto, conhecem meu trabalho – são também amigos de longa data. O maestro belga Ronald Zollman regeu muito bem minha obra Candelárias com a OSESP, guardo dele boas recordações.
Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?
Rubens Russomanno Ricciardi: Outra pergunta que não devo responder por extenso, porque sei pouco da nova geração de compositores no Brasil.
Posso falar tão somente daqueles que eu conheço, ou seja, dos meus alunos ou compositores atrelados ao meu grupo de pesquisa pela USP em Ribeirão Preto, como José Gustavo Julião de Camargo (compositor de óperas, um dos maiores violeiros do Brasil hoje, revolucionando o repertório para viola caipira), Lucas Eduardo da Silva Galon (estudou comigo desde a graduação, já escreveu obras de fôlego como óperas, tem se destacado tanto como compositor e regente), além de jovens promessas como Vitor Zafer, Rafael Alexandre Fortaleza, Fernando Emboaba, Juliano de Oliveira e Lucas Pigari.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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