Por Lincoln Penna –
A cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. (Aristides Lôbo)
Várias têm sido as interpretações sobre a presença dos militares nas crises da República. Há os que a explicam em razão de estarem intervindo em nome de grupos de interesse, de modo a identificá-los como organismo a serviço de poderes econômicos e políticos; existem os que sustentam essa presença ostensiva como o exercício de um suposto poder moderador, assim como outras análises considerarem a República independente das Forças Armadas (FFAA), estando elas apenas como organismo de estado, mesmo tendo sido as responsáveis pela instituição do regime.
Parto da premissa segundo a qual os militares ao proclamarem a República, golpeando a monarquia, tomaram para si a tarefa de dirigi-la. O desdobramento político, uma vez consolidado o regime, nem sempre facilitou a tarefa a que se impuseram. Conviveram em meio aos interesses das classes dominantes, que passaram a administrar o funcionamento das instituições moldadas ao seu caráter. Tanto na Primeira República (1889-1930), como no período posterior e até hoje, o que se observa é uma constante presença dos militares, sobretudo nas principais decisões tomadas até aqui.
É só acompanhar algumas iniciativas no âmbito militar, principalmente as que se originaram do Exército, e fica clara a permanente intenção de criar mecanismos para o exercício da gestão oficiosa dos militares na condução da República. Desde a ideia da criação do Instituto Militar à época de Floriano Peixoto, ainda antes da queda do Império, em 1871, passando pela a sistemática politização da Escola Militar até a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), em 1948, e teremos sem precisar incluir outros fatos a mais substantiva representação de uma República, que mais do que tutelada ou sujeita ao suposto poder moderador tem sido, na verdade, uma República dos militares, sem que isso signifique uma militarização do regime.
O que importa examinar é até quando essa trajetória foi inteiramente concebida organicamente, isto é, absolutamente dentro da caserna; e a partir de quando ela passou a se situar no sistema de uma orientação ideológica de matriz externa. Em outras palavras, se numa primeira fase ela representou uma visão de Brasil de cunho anti-oligárquica manifestada pelo desprezo pelas elites dominantes no cenário político nacional, a partir de que momento se curvou à ideologia anticomunista, incrementada destacadamente a partir da Segunda Guerra Mundial.
Parece que aí a orientação das FFAA sofreu uma mudança substancial.
Mesmo com essa mudança a premissa se mantém sustentável, pois mais do que nunca coube aos militares a incorporação de valores de significação ideológica fomentada pelas cartilhas e programas curriculares da ESG, que passou a cumprir o papel de formadora das gerações futuras, sendo a primeira delas dado origem ao golpe de 64. E a força dessa ideologia sistêmica provocou uma reorientação do nacionalismo até então associado umbilicalmente ao patriotismo, figura cara aos militares de todos os tempos. A leitura que passou a figurar fez dos valores nacionais um “puxadinho” a serviço das “ideologias exóticas”, para não mencionar diretamente o comunismo.
A ideologia que associou o futuro da nação brasileira ao dito modelo norte-americano dissociou o nacionalismo, e com isso a bandeira da soberania nacional, tão fortemente sustentada pela gloriosa campanha cívica O Petróleo É Nosso! Do qual teve participação efetiva e decisiva os militares, de modo a subalternizar a verdadeira independência do Brasil tornando-o subsidiário no campo das estratégias voltadas para os interesses nacionais e continentais.
Mas nada se equipara ao que se tem feito nessa política de subserviência objetiva – a despeito de esforços isolados e que resistem à continuidade dessa orientação antipatriótica- ao que se tem feito e ao que se propõe o atual governo de Bolsonaro. Para ele, o que mais importa é combater o comunismo interna e se possível externamente, neste caso como lugar-tenente do maior país capitalista do mundo. As concessões como o espaço de Alcântara, a recusa em assumir o papel sempre protagonista do Brasil junto aos demais países sul-americanos, assim como a internalização do ódio desferido contra forças sociais comprometidas com pautas progressistas são exemplos minimamente suficientes para identificar o governo com o que de pior aconteceu no país.
A pergunta que fica: e os militares? Até quando em nome dessa política que os têm orientado, o que devem fazer diante do caos instalado? Creio que a eles resta uma decisão corajosa e necessária: promovem uma baita autocrítica e se juntem à maré montante de uma das mais contundentes expressões de descontentamento com um governo, e deem as mãos à cidadania brasileira em luto pela política entreguista e genocida de seu, aí sim, tutorado que com o beneplácito das FFAA ocupa o lugar de quem deveria promover o que o dístico positivista proclama.
E inclua, na prática, a palavra que foi retirada, porque não basta apenas Ordem e Progresso se nela não estiver incluído o Amor. Ama-se a quem quer bem, e os militares precisam fazer cultivar a sua criação, a República. Nela está necessariamente incluída a democracia, porque sem ela a República nada significa.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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