Por Ricardo Cravo Albin

“Que reclusão é essa que aperta meu peito? Minha alma quer sair do peito ou a alma do mundo quer entrar no meu coração?” – Esse pensamento de Rabindranath Tagore cai com precisão cirúrgica e poética ao que começo a sentir depois de três semanas em reclusão caseira.

Aliás não encontro sinônimo mais preciso para a horrorosa palavra coronavírus do que Peste, substantivo de reconhecimento imediato que batizou todas as pandemias do Brasil.

De tão forte memória no Nordeste, que acabou por virar palavrão corriqueiro, quase cabeludo, pelas bandas de todo o sertão. Usuais xingamentos cuspidos pelo povo são o cabra da peste, o cabra da gota serena, preservando, sem sequer saber, memórias de pandemias que cravaram desolações em tempos idos e vividos, como diria o samba de Cartola.

Acode-me agorinha mesmo relato de minha mãe, alagoana de Penedo, que começou no Rio um namoro com o escritor Jayme Ovalle, intelectual que gravitava pela Lapa ao lado de Manoel Bandeira e Villa Lobos, entre outros.

Segundo ela, Ovalle tinha interesse pelos efeitos provocados pela gripe espanhola de 1918 em cidade colonial e sofisticada como era a pequena Penedo, próspero Porto à foz do Rio São Francisco.

Guardei na memória um detalhe que me assombrou. A família Cravo ficou em reclusão sem sair de casa durante dois meses, para evitar contágio com os numerosos empesteados, os mais pobres dos quais morriam no sopé das igrejas multicentenárias.

Minha mãe afiançava que o quase noivo queria desenvolver longo poema sobre a Peste Espanhola, obra, aliás, que ninguém soube onde foi parar.

Toda uma atmosfera prisional de perda da liberdade pela reclusão era invocada por minha mãe. Ela aduzia que as três jovens irmãs sequer podiam por as caras aos janelões, tal o temor do contágio. À época o tempo delas era preenchido com trabalho severo, das 9 da manhã às 6 da tarde, imposto por minha avó. As três moças se transfiguraram, para ser uteis, em costureiras amadoras. A produzir vestidinhos para as mulheres que, aos trapos, perambulavam pela calçada do casarão implorando comida.

Hoje, cem anos depois, a reclusão e suas neuroses continuam supliciantes. Tornadas, contudo, um tanto mais amenas pelo uso da tela virtual.

De fato, é de comover o elenco de solidariedades de artistas para amenizar o confinamento e sua consequência paralela mais grave, a depressão. A par das transmissões ao vivo on-line, sem público presencial, os exemplos de generosidade explícita amenizam nossa solidão.

Quero enfatizar aqui o esforço solitário do show de quase cinco horas (sessenta músicas) da dupla sertaneja Jorge e Mateus no último sábado dia 04, que arrecadou 172 toneladas de alimentos e 10 mil frascos de álcool gel. O espetáculo da dupla foi transmitido pelas redes sociais, nos fundos de uma garagem.

Por favor, se muitos ainda têm qualquer preconceito contra a arte sertaneja, esqueçam essa bobagem. Em preito ao esforço humanitário desses dois beneméritos. Que, de mais a mais, gerou uma assombrosa visualização de quase 40 milhões. A dupla repetia em mote único “fica em casa e siga as orientações do Ministério da Saúde”. Aliás, o ministro Mandetta estava presente na live, onde cunharia outra frase no ar “o show não pode parar, mas a aglomeração tem que parar”.

A isso eu chamo de adesão concreta e sofrida aos pobres vitimados pela Peste. E repetiria, para minha reclusão, um pensamento certeiro de Guimarães Rosa: “eu queria sair de tudo do que eu era para entrar num destino melhor”.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.