Redação

O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após condenação em segunda instância – instrumento importantíssimo contra os crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente legítimo: o Congresso Nacional.

“Sim, a guerra continua”, concordou ontem a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge, descartando o frágil argumento de que o “trâmite em julgado”, que se contrapõe à prisão em segunda instância, é cláusula pétrea da Constituição. Não é. Logo, pode ser mudada por Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

PODE MUDAR – Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação.

Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes, quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado da pena passasse a valer rapidamente.

Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em três oportunidades muito recentes.

SEM MOTIVO – “Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias, inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação, mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou.

Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis, recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de réus ricos e poderosos.

FORÇA INIBITÓRIA – Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países, mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e realmente justa (pleonasmo necessário) é fundamental para inibir ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção.

Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos.

NA SANTA PAZ – Dizia-se que o impeachment de Dilma Rousseff pararia o País, mas ele foi aprovado na mais santa paz. A presidente do PT previu que, se prendessem Lula, iam ter de “matar gente”. Lula foi preso, ninguém matou, ninguém morreu. E até a reforma da Previdência, que gera os maiores tumultos mundo afora, foi aprovada sem protestos nem mesmo nos gramados do Congresso.

Logo, a arena de manifestações e ataques deve continuar restrita às redes sociais. Com muita histeria e grosserias, mas sem sangue, sem mortes, sem quebra-quebra. Fora isso, “a guerra continua” no Congresso, como concorda Dodge. O resto fica para o julgamento da história.

Fonte: Estadão, por Eliane Cantanhêde