Por Miranda Sá

“Se estiver zangado, conte até cem; se estiver mesmo muito zangado, blasfeme” (Mark  Twain)

Uma expressão que deve ser muito antiga, porque ouvi da minha avó, já velha, que tinha ouvido do avô dela: “engolir a raiva”. Na adolescência se falava em “engolir sapos” e “engolir cobras e lagartos”. Apoiando o pelego Lula da Silva, Leonel Brizola disse: “temos de engolir o sapo barbudo”.

A citação avoenga de “engolir a raiva” vinha, todavia, acompanhado de um completo e alertava: -“Engolir a raiva, envenena o sangue”…. A advertência, porém, dificilmente é seguida, pois é impossível frear os sentimentos.

Elocuções da sabedoria popular entram em contradição como que gravou o pensador e fraseur Fabricio Carpinejar, que escreveu: – “Um pouco de raiva não fará mal. Há frutos que apodrecem por excesso de doçura”.

Entre um dito e outro, a verdade é que tive uma raiva danada quando ouvi a proposta da recriação da CPMF pelo ministro da Fazenda, Paulo Guedes, que se apresentava como “liberal” e com as suas declarações aceitando o cargo, me fizeram crer nisto.

Como disse acima, as nossas reações e aversões são irrefreáveis; a raiva desperta uma indignação que não impede a reação verbal e leva as pessoas malcriadas à excessos de fúria e até agressividade física.

“Raiva”, como verbete dicionarizado, é um substantivo feminino, de origem latina rabies,ei, chegando ao latim vulgar como rabia, ae. Diz-se de uma manifestação de fúria em razão de algo ou diante de um fato desagradável; com a restrita sinonímia de “cólera” e “ira”.

Temos na Medicina Veterinária a classificação de Raiva, como uma doença infecciosa, causada por um vírus do gênero Lyssavirus, que ataca o sistema nervoso central, provocando convulsões e paralisia respiratória. É uma doença transmitida pela arranhadura, lambida ou mordedura de animais infectados, geralmente cachorros, e é conhecida como hidrofobia.

A cozinha portuguesa com a sua rica confeitaria de doces e sobremesas, nos presenteou com a “Raiva”, um gostosíssimo biscoito seco e crocante feito de manteiga, ovos, açúcar, farinha de trigo e canela, moldado em tamanho pequeno e forma irregular. No Brasil, em alguns estados, é conhecido como “Raivinha”.

No sentido coloquial da palavra, entretanto, a Raiva é um reflexo mental como reação a ataques pessoais ou aversão à fraude, à mentira e à corrupção intensamente praticadas por políticos desonestos.

No meu caso, por exemplo, blasfemo contra o ministro Paulo Guedes e aos seus apoiadores, o Presidente e seu Vice, por defenderem a recriação de um imposto que foi repudiado nacionalmente e derrubado pela força do povo unido acima dos partidos e das ideologias.

Para muita gente, há outros motivos de raiva, sem dúvida. Uma das minhas filhas me telefonou revoltada ao saber que o bispo Edir Macedo patenteou a “marca” Jesus Cristo comercializando-o em desacato aos cristãos autênticos e desrespeito à crença n’Aquele que morreu na cruz para salvar a humanidade. É por isso, que adoto uma lição de Buda: – “Deus não tem religião”.

Outras desfeitas são registradas, suscitando raiva de muita gente como, por exemplo, a classificação da desonestidade para maior ou menor, como fez o guru dos Bolsonaros, Olavo Carvalho, comparando o roubozão lulopetista com o “roubozinho” da rachadinha… É como se houvesse “meia gravidez” ou “meia integridade” ou “meia honradez”…

Vê-se, também, várias pessoas enraivecidas vendo um general da ativa do Exército, ocupando o Ministério da Saúde para executa a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia, receitando medicamentos controversos e distribuindo verbas do combate ao novo coronavírus contidas nas cotas parlamentares…

Um dos horrores da História, como escreveu Darwin, é que ela se repete. Talvez seja por isto que vislumbramos uma volta ao passado lulopetista (que pensávamos sepultado sem choro nem vela) pela direita oportunista; em consequência, a raiva se alastra como o novo coronavírus nos círculos do pensamento liberal…


MIRANDA SÁ – Jornalista, blogueiro e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do país como a Editora Abril, as Organizações Globo e o Jornal Correio da Manhã. Recebeu dezenas de prêmios em função da sua atividade na imprensa, como o Esso e o Profissionais do Ano, da Rede Globo.