Por Jorge Folena

Em mais uma de suas provocações despudoradas, no dia 12 de maio de 2022, véspera da data de comemoração da abolição formal da escravatura, o ocupante da cadeira presidencial manifestou, para júbilo de seu público cativo, que negro se pesa em arrobas.

Não há dúvida sobre o grave delito de racismo em curso, sem esquecer tantos outros que já foram cometidos nestes quase três anos e meio de desgoverno.

Nas quase três décadas em que foi deputado federal, o comportamento público desse indivíduo sempre foi reprovável, principalmente por se contrapor aos valores e preceitos orientadores da Constituição de 1988, que estabelece como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

O atual ocupante da cadeira da presidência chegou a ela ignorando tais princípios, da mesma forma que despreza a pluralidade e a convivência pacífica e, em suas ações cotidianas, incita e estimula o povo brasileiro ao ódio e ao preconceito contra os seus irmãos.

De certa forma, ele é a representação da classe dominante brasileira, caracterizada pela exploração, abusos e crueldades praticados há séculos contra os negros e os trabalhadores no Brasil. A mesma classe dominante que sempre se articulou para impor o apagamento dos seus malfeitos e a negação das lutas de resistência do povo brasileiro, ao longo da formação do país até os dias de hoje. Por isso, escondem que foram negros escravizados e seus descendentes livres que lutaram pelo fim da escravatura, ou seja, não foi o interesse colonial inglês que fez uma princesa branca conceder a libertação.

Em decorrência das diversas lutas populares, milhares de negros e mestiços foram massacrados por forças militares a serviço da classe dominante, como em Canudos, no Contestado e em Santa Cruz do Deserto. Para promover o apagamento dessas lutas, há muito tempo tentam convencer o povo brasileiro de que ele é “cordial” e “pacífico” e lhe é dito que deve trabalhar para colaborar com o progresso do país, como destacado no ideal positivista “ordem e progresso”, não por acaso posto na bandeira nacional após a Proclamação da República (1889).

Foi no Morro da Providência que surgiu a primeira favela do Rio de Janeiro, criada em 1897 por combatentes da Guerra de Canudos que voltaram ao Rio para conseguir a casa que o estado tinha prometido como recompensa pela atuação na revolta (Reprodução/arquivo Google)

Naquele período, a imposição desta filosofia deu-se por meio de acordo das classes oligárquicas dominantes, visando criar uma barreira moral para impedir a rebelião da maioria da população brasileira, constituída por negros escravizados, que, mesmo após a abolição, superficial e incompleta, da escravidão (1888), continuaram a não ter direitos e foram submetidos a um permanente estado de discriminação, desigualdade e injustiça social.
O mesmo antigo ideal continua a justificar a manutenção de uma “ordem” repressora para o povo, a fim de que este não questione o “progresso”, sempre destinado a uma ínfima minoria, que se enriquece às custas da exploração do trabalho e impede a mínima distribuição da riqueza nacional para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades nacionais”, como previsto na Constituição.

Assim, com seu lema “ordem e progresso” determinado de cima para baixo, a classe dominante tenta até hoje retirar do povo brasileiro a noção de lutas de classes (que se tornou aqui uma expressão proibida) para mantê-lo inconsciente da brutal exploração a que está submetido desde os tempos da colônia.

Há quem diga, de forma indevida e desonesta, que os brasileiros são preguiçosos (como herança dos povos indígenas) e malandros (como herança dos negros escravizados), e isso é repetido sistematicamente em livros, jornais e demais meios de comunicação social; sendo esta mentira assimilada por muitos indivíduos pobres, que apenas reproduzem sem questionar o que lhes dizem, sendo assim mantidos na ignorância.

Negros no Fundo do Porão é uma obra do pintor alemão Johann Moritz Rugendas, publicada no livro Voyage Pittoresque dans le Brésil (Viagem Pitoresca Através do Brasil), de 1835, que reunia cem litografias produzidas durante as viagens de Rugendas pelo Brasil. A obra retrata a cena do porão de um navio que transportava escravos entre a África e a América, no século XIX. Na pintura, ficam exposta as condições de vida dos negros que foram trazidos como escravos. A pintura escancarou as condições desumanas e insalubres dos negros, sendo apontado, inclusive, como propaganda abolicionista. (Reprodução)

A repetição constante dessas falsidades culturais tem o objetivo de marginalizar a população, para mantê-la acorrentada numa posição de inferioridade e subalternidade, ainda colonial em pleno século XXI, de modo a justificar toda a violência estatal que recai sobre ela, a exemplo do que ocorreu nos massacres das chacinas de Vigário Geral, Acari, Parada de Lucas, Candelária, El Dourado dos Carajás, Paraisópolis, Jacarezinho etc., todos perpetrados por forças militares contra o seu próprio povo.

A classe dominante promove, desde sempre, um constante apagamento da memória nacional, ao mesmo tempo em que procura exaltar como heróis homens que violentaram e mataram nossa população no passado; os mesmos que, nos dias de hoje, promovem o extermínio da juventude negra e pobre das periferias e comunidades faveladas, dos camponeses, quilombolas e grupos indígenas que lutam pela manutenção da posse de suas terras ancestrais e preservação da sua cultura.

Este apagamento histórico da memória permite que pessoas nefastas, como o ocupante da presidência, naturalizem o racismo e promovam o ódio e a violação à Constituição, que estabelece que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.

Por isso, olhemo-nos todos no espelho da consciência e nos perguntemos quanto mais ainda suportaremos desse presidente racista e sua claque debochada, disseminadora de mentira e violência; indaguemos também até que ponto nos deixaremos rebaixar às determinações da classe dominante do país, que fez chegar ao poder esse grupo nefando, cuja bandeira é o ódio e o preconceito, sem qualquer preocupação com as dificuldades que enfrenta o povo brasileiro, cada dia mais empobrecido e desesperançado.

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.


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