Por João Batista Damasceno –
Rachadinha não é crime. Dispõe a Constituição da República que não há crime sem lei que antes o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Portanto, crime é o que a lei conceitua como tal e não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer definição de “rachadinha” como fato criminoso.
Mas parlamentar que embolse a remuneração dos assessores lotados em seu gabinete, que crime comete? Depende da conduta havida. Vamos analisar?
O crime pode ser de peculato que consiste em apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio. Se a nomeação do funcionário para assessoria não se destina à constituição de efetiva assessoria, mas meio de apropriação do dinheiro público que seria a sua remuneração é peculato. A nomeação é apenas meio para a apropriação do dinheiro público.
Trata-se de crime praticado pelo parlamentar contra a administração pública. Para fins penais parlamentar é funcionário público, assim como todo aquele que desempenha atividade pública, sejam agentes políticos ou voluntários em colaboração com o poder público.
O crime pode ser de extorsão que consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. A exigência de entrega de cartão e senha do banco, feita a assessor, visando aos saques e apropriação de sua remuneração caracteriza este crime.
O crime pode ser de roubo que consiste em subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. A coisa móvel subtraída pode ser o dinheiro do funcionário e neste caso o parlamentar pratica o crime de roubo e o funcionário é a vítima. Tanto o roubo quanto a extorsão são crimes contra o patrimônio do funcionário lesado na subtração de sua remuneração.
Quando o que se pratica é roubo, extorsão ou peculato não é adequado chamar de “rachadinha”. As “coisas” têm seus nomes e não é adequado chama-las por outro. Caqui e tomate são frutas parecidas, mas diversas e com nomes próprios.
A dificuldade não está em qualificar o que se faz. Para tanto basta analisar a conduta do criminoso e ver sua compatibilidade com o texto da lei. Difícil é fazer certas instituições funcionarem para se pronunciarem sobre conduta de gente poderosa. Por vezes é até mesmo difícil descobrir que órgão tem competência para julgar. Há casos de processos iniciados no STF, devolvidos a juiz singular de primeira instância, com posterior deslocamento – ainda que não definitivo – para órgão colegiado de tribunal local. São situações em que decorridos anos da prática do crime ainda sequer se definiu em que órgão iniciará o processo.
Há regras para definição da competência dos órgãos do Poder Judiciário. Está na Constituição e nas leis. Não há foro privilegiado para função que não mais se exerce. Cessado exercício da função, cessa o foro privilegiado. Se o criminoso ocupa outro cargo, o foro privilegiado existe apenas para o cargo atual. Pelos crimes cometidos em cargo anterior, que não mais ocupa, não mais há o foro privilegiado que antes ostentava. Portanto, inexistindo foro privilegiado por crime anterior ao cargo atual e não subsistindo foro por prerrogativa de função pelo cargo que não mais se exerce, a competência é a comum.
Além de crime, a apropriação de remuneração de assessor, caracteriza improbidade administrativa e sujeita o desonesto a devolver em dobro e ficar inelegível por até 8 anos.
Pode até não ser crime algum, no caso do servidor que, graciosamente, sem qualquer comportamento intimidatório do parlamentar, ter se disposto a privar-se dos seus meios de subsistência para ajudar o tribuno a juntar o dinheiro para comprar imóveis, por exemplo. E neste caso, não se estará diante de ilícito penal. Mas, de ato voluntário de disposição de bem próprio, ou seja, de doação feita por pessoa capaz de doar a pessoa igualmente capaz de receber.
O que se faz aqui é uma análise abstrata, sem qualquer conexão com casos concretos eventualmente ocorridos ou noticiados. Qualquer semelhança é mera coincidência. Cada caso merece análise própria.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia. (Fonte: O Dia)
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