Por João Batista Damasceno –
Na última quarta-feira, 26, uma fala inusitada do Papa Francisco viralizou nas redes sociais. No vídeo gravado pelo padre Carlos Henrique Alves, de Divinópolis/MG, o Papa Francisco fez uma brincadeira bem humorada com o padre João Paulo Souto Victor, da Paraíba, que pediu ao Papa que rezasse pelos brasileiros. Em tom de brincadeira, o pontífice disse: “Vocês não têm salvação; muita cachaça e pouca oração“.
Papa Francisco sabia o que estava falando. Falou para um padre paraibano, mas estava sendo filmado por um padre mineiro. Nós mineiros somos incorrigíveis. Se Cristo tivesse andado por estas bandas nós o teríamos ensinado a transformar caldo de cana ou garapa em cachaça e não água em vinho.
Os puritanos torceram o nariz para a declaração do Papa. Mas se concebessem o Cristo que é descrito nos quatro evangelhos, tal como a narrativa que neles contém, veriam que há mais referências do filho de Deus bebendo ou andando com publicanos e pecadores que rezando. Somente numa vez Cristo ensinou os discípulos a rezar, que é o Pai Nosso. Mas também os ensinou a responder aos que lhes criticassem por estar andando com bebuns ou entrando nas tabernas: “Quem precisa de médico? Os sãos ou os doentes?”.
Senti-me lisonjeado com a fala do Papa. Sou cachaceiro. Aprendi desde pequeno a plantar a cana depois de escolher a espécie e o gomo, esperar o tempo para o corte, moer, fermentar e destilar. O prazer de beber somente aprendi mais tarde.
Mineiro que se preza é cachaceiro. Se não gostar de cachaça pode ser tudo, menos mineiro. Pode ser baiano a caminho do Rio de Janeiro, Capixaba que esqueceu onde é a divisa ou goiano atrás de outro depressivo para cantar uma música sertaneja narrando a dor de corno. Mas mineiro raiz não o é. No máximo, um mineiro nutella.
Mineiro que não bebe cachaça é um tipo de mineiro que estudou regência e faz todas as concordâncias nominais e verbais e que nunca teve bicho de pé, não fala uai e não sabe o que é um “trem bão demais da conta”. É uma espécie de mineiro light destinado à apresentação pra gringo. Não é mineiro de verdade.
Mineiro é cachaceiro com orgulho. E agradece quando seu valor é reconhecido. Depois de condenar uma igreja neopentecostal a fazer tratamento acústico, para permitir que a vizinhança dormisse, o advogado da igreja recorreu dizendo que era perseguição religiosa dos vizinhos e que tinha encontrado guarida num juiz que além de macumbeiro era cachaceiro. Não pratico qualquer religião. A ideia de que sou macumbeiro decorreu de uma palestra que fiz na OAB de Nova Iguaçu, onde falando do ideário de justiça que orienta os povos falei de Xangô e de sua eticidade. Não pude reclamar com o advogado. Afinal, acreditar que eu professasse tal culto não era ofensa. Igualmente não poderia reclamar dele ter dito que eu era cachaceiro. Imagina se eu o processasse e ele pedisse para fazer a exceção da verdade? Eu acabaria me tornando um cachaceiro com decisão judicial transita em julgado, qualidade que torna as sentenças imodificáveis.
Mineiro de verdade é cachaceiro, ainda que comedido. E se lhe tiram a cachaça ele entristece. Um amigo em Santa Margarida/MG andou tristonho, amoado, recôndido (mineiro contrariado fica amoado ou recôndido) porque suas cachaças estavam desaparecendo. A princípio pensou que fosse um sobrinho que estava bebendo, mas o sobrinho ainda não bebia cachaça. Depois começou a desconfiar que estivessem jogando, aos poucos, as cachaças fora.
Quando reclamava da situação não faltavam conselhos impróprios. Uns lhe diziam para ir para a Igreja, outros diziam que se apegasse à sua santa toda vez que quisesse beber e outros sugeriam que substituísse o armário onde guardava as cachaças por um oratório. Nenhuma das soluções lhe agradava.
Os amigos encontraram uma saída: fazer um oratório, com chave, onde ele pudesse colocar suas cachaças. Assim, quem olhasse para o oratório acreditaria na sua religiosidade. Mineiro é religioso, embora muitos sequer tenham fé no que transcende. Mas são exteriormente religiosos, tal como os fariseus ou sepulcros caiados. Os amigos fizeram o oratório!
Dentro do oratório, somente cachaças com nomes de santo: São Francisco, Santo Antônio, São Paulo, Santa Martha, Beata e claro, Santo Grau, produzida pela família do meu amigo Pepe no mais antigo engenho em funcionamento no Brasil e onde Tiradentes passava para beber algumas, enquanto articulava a Conjuração Mineira. Espero que esta lembrança não estimule nenhum bovino a dizer que a Conjuração Mineira foi coisa de cachaceiro fazendo balbúrdia. Meu conterrâneo o desembargador Cláudio Manoel da Costa não morreu em briga de botequim, nem Tiradentes deu sua vida por coisa pouca.
Os cachaceiros têm lugar na cultura brasileira e especialmente na mineira. Assim, como o escocês se orgulha do seu Whisky, os alemães de suas cervejarias locais e os franceses dos seus vinhos, precisamos tomar a cachaça como expressão da nossa cultura.
E se algum religioso implicar podemos usar a própria bíblia para retrucar: O primeiro milagre de Cristo foi transformar água em vinho. Somente depois cuidou de ressuscitar mortos, curar leprosos e andar sobre as águas. No Velho Testamento, no livro de Provérbios, que é um livro de sabedoria, há expressa recomendação para que se amenize o sofrimento do povo dando-lhe cachaça:
“Dai bebida forte ao que está prestes a perecer, e o vinho aos amargurados de espírito. Que beba, e esqueça da sua pobreza, e da sua miséria não se lembre mais” (Provérbios, 31:6,7).
Quem condenou as bebidas foi São Paulo. Mas isto decorria de sua formação militar. Fora um oficial do Exército Romano. Imagina um pelotão bêbado! Se sóbrios os militares sempre fizeram arruaça, bêbados ou drogados são um risco para todos, inclusive para eles próprios. Depois os moralistas calvinistas deram corda à proibição. Quem não bebe e condena as bebidas pode ser paulino ou calvinista. Mas cristão não é.
Somente os que querem a infelicidade do povo lhes censuram os prazeres. O próprio filho de Deus experimentou os desprazeres feitos por religiosos sisudos e classe dominante perversa. A caminho do calvário, chegando a um lugar chamado Gólgota, que significa Caveira, lhe deram para beber vinho e ele aceitou. Mas estava misturado com fel e ele, depois de provar, recusou-se a beber (Mateus 27: 33,34).
Não é a cachaça que faz a pessoa comedida perder a cabeça. São João Batista não bebia o que tivesse sido fermentado, nem depois de destilado, e perdeu a cabeça assim mesmo. E o divino primo se referia àquele da seguinte forma: “Veio João Batista, que jejua e não bebe vinho, e vocês dizem: ‘Ele tem demônio’. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e vocês dizem: ‘Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores’”. (Lucas 7: 33)
Na última ceia, o filho da divindade foi claro: se quiser entrar no céu e sentar-se comigo à mesa tem que aprender a beber: “Eu lhes afirmo que não beberei outra vez do fruto da videira, até aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus” (Marcos 14: 25). Quem não bebe não terá direito a tal prazer.
Cachaceiros de toda a Minas Gerais, uni-vos e orgulhem-se!
JOÃO BATISTA DAMASCENO – Professor da UERJ, Doutor em Ciência Política (UFF), Desembargador do TJRJ, membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia, colunista do jornal O Dia, conselheiro efetivo da ABI, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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