Por João Marcos Buch

Num mar de dores e angústias, aqui darei voz a um preso que sabia como ninguém da prisão. Eu o chamarei pelo meu nome, João Marcos.

A população carcerária deste país, em regra, fica em unidades superlotadas, marcadas pela violência e onde falta tudo, desde produtos de higiene e limpeza à alimentação adequada. As celas são abafadas, muitas sem energia e iluminação, com água racionada. Tratam-se de locais degradantes da condição humana.

Mas “De tudo isso o presidiário sabe perfeitamente, sabe de corpo inteiro, e não só com a mente; e sabe ainda que está ferreteado e de cabeça raspada, e ainda, sabe que não tem mais direitos…” (Dostoiévski, em carta ao censor, sobre seu livro Escritos da casa morta, do século XIX).

E nós, sabemos?

Em Sobrevivendo no inferno, livro sobre os Racionais MC’s, o professor de literatura Acauam Silvério de Oliveira explica a construção do modelo ético periférico da obra, que coloca o preso com lugar de fala e tem a ensinar. Para o professor, isso não significa apologia ao crime, mas sim que a violência é um fenômeno muito mais complexo e não algo binário, simples, a que o “cidadão do bem” está acostumado, “bandido bom é bandido morto”.

Ou seja, conferir poder de fala ao preso, não só na sociedade em geral, mas também no Estado, é retirá-lo da margem e superar o arquétipo do bandido não humano, é quebrar a espinha do Estado necrocapitalista; é construir espaços emancipatórios para toda uma população que até então sobrevive no inferno.

joão marcos

Não sou melhor que ninguém, jamais poderia ser, tenho muitas contradições e incertezas. E como nunca estive preso, não posso saber sobre a vida de quem está.

Ocorre que essa vida presa está em tudo que vejo, ouço e sinto e o mínimo que devo fazer é repercutir o que sei, assim cerrando fileira na luta para a superação de uma estrutura opressora e racista, neutralizadora dos vulnerabilizados e marginalizados.

Num mar de dores e angústias, aqui darei voz a um preso que sabia como ninguém da prisão. Eu o chamarei pelo meu nome, João Marcos.

Durante uma dessas inspeções, encontrei João Marcos em uma cela de isolamento. João Marcos era um jovem muito humilde, que não conseguia se expressar com nitidez, além do que lhe faltavam os dentes incisivos superiores. Entre murmúrios e meias-palavras, João Marcos contou possuir apenas uma certidão de nascimento, por isso sua mulher e filha não conseguiam lhe visitar, “faltava a papelada”. João Marcos passou a mostrar seus pertences. Afastava-se da porta de ferro e voltava com um sabonete pastoso; saia e retornava com uma mini escova de dente, com um pedaço de pão, um pacotinho com alguns comprimidos amarelos. João Marcos era extraordinário, de uma luminosidade ímpar, no entanto, suas forças se esvaiam. João Marcos passava fome, não tinha com o que se limpar, seu estômago doía. João Marcos sentia solidão.

Num determinado momento, João Marcos silenciou. Também silenciei. Seus olhos avermelharam, lágrimas começaram a escorrer.

Ficamos ali, estáticos, João Marcos e eu. Nada mais dissemos. Nada mais precisava ser dito.

Não esquecerei você, João Marcos, nunca mais.

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

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