Redação

Na medida em que a hegemonia dos EUA sofre abalos, alguns países têm buscado — por vontade própria ou por conta de sanções norte-americanas — construir alternativas à dependência do dólar. Embora não seja um caminho fácil, a Sputnik Brasil explica, com especialistas, como o Brasil pode vislumbrar percorrê-lo, sobretudo pela relação com o BRICS.

Rússia e China têm sido dois dos principais países do sistema internacional a buscarem a construção de alternativas à dependência da moeda dos Estados Unidos. Conforme a própria mídia ocidental tem apontado, os dois países têm criado seu próprio sistema financeiro, independente do Ocidente.

O Novo Banco de Desenvolvimento, o banco do BRICS, é um claro exemplo dessa busca por uma nova ordem econômica, mas vai além disso. A desdolarização perpassa a realização de transações comerciais em uma moeda distinta da norte-americana, a desvinculação das reservas internacionais com o dólar e até mesmo a emergência de alternativas cambiais digitais.

Mas como o Brasil se insere nesse contexto? Qual o grau de dependência do dólar na economia brasileira? É possível seguir o mesmo caminho de Rússia e China?

Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil destacaram que a economia brasileira não é dolarizada como a de outros países da América Latina, como a Argentina, e que o principal desafio para uma desvinculação ao dólar estaria nas transações internacionais. A dinamização das relações comerciais com os países do BRICS pode ser uma rota de fuga da dependência do dólar.

Exclusão promovida pelos EUA provoca desdolarização

O economista Marcio Pochmann, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), afirma que a desdolarização é uma tendência global com duas motivações principais: a primeira é a emergência das criptomoedas — privadas ou nacionais — e a segunda, provocada pelos próprios Estados Unidos, é a exclusão de nações do sistema de pagamentos internacional.

“Esse movimento geral de desdolarização vem ocorrendo por força de mudanças que estão em curso em razão da emergência de uma diversidade de moedas. Desde que o dólar virou uma moeda fiduciária, sem lastro em algum produto, ele depende muito do poder do governo, da economia, das armas [dos EUA]. E estamos percebendo que há um movimento maior que vai retirando a importância global que tinham os EUA, especialmente quando se tornam referência mundial ao fim da Segunda Guerra Mundial”, aponta Pochmann à Sputnik Brasil.

“[Esse movimento se dá] especialmente por conta das iniciativas que foram feitas por parte dos Estados Unidos de provocar a própria desdolarização, na medida em que foi excluído determinados países do sistema monetário ancorado no dólar, como Irã, Venezuela e Cuba. […] Com o conflito na Ucrânia, a Rússia foi colocada junto a outros países excluídos do acesso ao dólar. Estamos vendo o país responsável pelo sistema dólar excluindo outros países e essa exclusão fortalece o surgimento de outras moedas.”

Dessa maneira, o economista enxerga uma tendência quase natural de derrocada do dólar. A moeda que, segundo ele, se coloca no lugar de substituta da norte-americana é o yuan chinês.

“Até agora a China não tinha demonstrado buscar um sistema monetário internacional centrado no yuan, até porque isso tem implicações internas. Havia uma entrada muito comedida. […] Não se buscava impor uma ruptura [com o dólar], mas há um fato novo [exclusão da Rússia do sistema dólar] que vai levando águas para um outro moinho, de repensar o sistema monetário internacional em razão da exclusão promovida pelos EUA a outros países”, apontou.

O economista Mauricio Weiss, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também enxerga Rússia e China com processos mais avançados de desdolarização, mas pondera que ainda há alguns entraves.

“A Rússia, já faz tempo, tem aumentado as reservas em ouro, ao invés de dólar. Proporcionalmente, é o país que mais mantém reservas em ouro em relação ao dólar. […] Mas, em termos de sistema de pagamentos, ela ainda é muito dependente ou do dólar ou do euro”, destacou Weiss.

“A China tem conseguido diminuir a dependência do dólar porque a [sua] moeda [yuan] vem de uma economia muito forte. Hoje, a China é o principal importador e exportador global e realiza muitos investimentos em outros países, mas a maior parte do comércio é em dólar”, ponderou.

BRICS pode impor o fim da hegemonia do dólar?

Assim como Pochmann, Weiss enxerga a economia mundial em uma “fase de transição global”, o que afeta diretamente a hegemonia do dólar. O fortalecimento da China no cenário internacional, segundo ambos, é o principal elemento de abalo nas estruturas da ordem atual e o BRICS acaba sendo um meio para o Brasil se integrar nesse novo momento.

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“Historicamente, a elite dirigente faz movimentos antecipatórios de algo que ocorre mais pra frente. […] Desde o estabelecimento do BRICS e a forma como o Brasil saiu da crise de 2009, a China tornou-se o principal parceiro comercial do país. […] Isso é uma antecipação de para onde o Brasil está indo”, aponta Pochmann.

“A China, que é um país já bastante resolvido em termos de participação econômica mundial e acaba tirando proveito disso, por uma questão estratégica, tem conseguido aos poucos fazer com que alguns países reduzam as transações em dólares e tem também sinalizado que vai reduzir bastante as reservas em títulos públicos nos Estados Unidos para algo inferior a US$ 1 trilhão [R$ 5,09 trilhões, em reais] — já chegou a ter US$ 2 trilhões [R$ 10,19 trilhões, em reais] de reservas em dólar”, destaca Weiss.

Para o ex-presidente do IPEA, é possível dizer que é quase inevitável uma perda de influência do dólar em razão da aproximação com a China, por mais que possa haver algum rechaço de alguns setores.

“Os laços econômicos vão se configurando de tal maneira que a política termina sendo uma decorrência da vinculação econômica. É óbvio que isso não é um determinismo histórico, mas a vinculação da nossa moeda com o dólar se dá pela importância que ele teve ao longo do tempo no nosso comércio externo, mas na medida que ele vai se enfraquecendo, há um movimento de descolamento da importância que o dólar tem”, diz Pochmann.

“Nosso comércio com a China é uma comércio feito em dólar, mas é importante lembrar que desde o BRICS abriu-se a possibilidade de comércio com moedas comuns. O mundo avançou muito e essa relação estará em um patamar superior nos próximos anos”, completou.

Weiss não vê um cenário de desdolarização tão aberto para o Brasil e destaca que o próprio Banco do BRICS segue operando em dólar.

“A situação brasileira, ainda assim, vejo mais distante de ter esse movimento, especialmente porque ela ainda se relaciona muito com os Estados Unidos e Europa e não vejo nenhum vislumbre em termos estratégicos para se distanciar do dólar. É possível? É possível, mas depende de uma série de fatores — de quanto o Brasil vai querer optar por priorizar essa relação do BRICS, se o BRICS também vai querer usar o real, tem a questão do Mercosul, a grande maioria dos fluxos financeiros ainda é em dólar”, pondera o professor da UFRGS.

Ainda que o Brasil não tenha a economia dolarizada e tenha reservas internacionais superiores à dívida externa, o economista aponta que o país “tem um passivo externo muito grande e quase toda a totalidade é em dólar”.

“Nas negociações domésticas a dependência é baixa, mas tudo que nós compramos e exportamos é em dólar”, acrescentou Weiss.

Para o professor, os caminhos para reduzir a dependência do Brasil da moeda norte-americana passam principalmente pela utilização de uma moeda distinta do dólar no BRICS e nos acordos com os países do Mercosul, tanto em negociações comerciais quanto para empréstimos.

O pesquisador defende ainda que o país diversifique suas reservas internacionais e se mobilize para que os Direitos Especiais de Saque dos países no Fundo Monetário Internacional (FMI) sejam feitos com uma moeda internacional, uma pauta que ele considera mais difícil.

Efeito Lula?

Pochmann acredita que uma mudança diante do dólar perpassa um novo posicionamento internacional do Brasil, que poderia ser adotado por um eventual novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — que aparece com vantagem nas pesquisas de opinião para as eleições de outubro deste ano.

O ex-presidente do IPEA acredita que o contexto internacional em 2023 será muito diferente do de 2003, o que permite que o Brasil ouse mais em seu posicionamento.

“O governo do presidente Lula não teve em 2003 a liberdade que pode vir a ter em 2023 no cenário internacional. O Brasil em 2003 era dependente do FMI, tinha uma dívida e praticamente não tinha reservas externas. Na época, os EUA eram a principal potência econômica, política e militar e, mesmo assim, foi feito um movimento ousado liderado pelo Brasil com relação à América do Sul, para autonomizar a região”, disse Pochmann.

“Os EUA continuam sendo uma economia fundamental, importante, mas não é mais a única. Há uma disputa e uma polarização com a China e, ao mesmo tempo, há um esvaziamento da União Europeia. Isso tudo dá a um estadista a possibilidade de olhar para um novo cenário [de inserção internacional]. O Brasil pode escolher uma maior aproximação com os Estados Unidos, com a União Europeia ou com a China. Ele tem um espaço de escolha que não teve anteriormente.”

Fonte: Sputnik

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