Por Carlos Mariano –

Novos eventos são necessários para a perpetuação do patrimônio de origem negra.

Neste ano, completa-se sessenta anos da realização do 1º Congresso Nacional do Samba, que foi um marco no debate do mundo do samba. De 28 de novembro a 2 de dezembro de 1962, no Palácio Pedro Ernesto (prefeito que apoiou o samba), aqui no Rio de Janeiro, sambistas se reuniram para defender uma tradição no samba e estabelecer um contrapondo à modernidade gerada por sua evolução. Todo esse debate entre tradição e modernidade no samba gerou no final daquele encontro, a Carta do Samba  (imagem abaixo) – documento que levou a assinatura de Edison Carneiro, um dos pioneiros na arte de estudar a cultura popular brasileira a partir da etnologia. Carneiro era autor do livro “Dinâmica do Folclore”, escrito em 1950 e que se tornou um clássico no estudo da cultura popular. Na obra, o intelectual afirma que o folclore é parte integrante do estudo das ciências antropológicas, o folclore é algo orgânico que surge da maneira de pensar, sentir e a agir das classes populares.

Com essa tese, o etnólogo rompe com aquela ideia de folclore confinado ao passado.

A CARTA DO SAMBA e o I Congresso Nacional do Samba de 1962 | SPIRITO SANTO

O 1º Congresso Nacional do Samba se tornará uma espécie de divisor de água na história do samba, ele deixa de ser tão somente coreografia e música e passa a assumir diversas formas no nosso país. Ao mesmo tempo que isso ocorre, o fenômeno da escola de samba também sofre uma grande mudança. Vai deixando de ser uma instituição cultural negra marginalizada para ser tornar o principal ícone do carnaval brasileiro. A classe média começa a frequentar e a dirigir os destinos das nossas escolas de samba. E uma escola que simboliza muito essa fase é a Acadêmicos do Salgueiro, criada em 1953 da fusão de três escolas existente no morro: a Unidos do Salgueiro, Azul e Branco e Depois eu Digo.

Passistas do Salgueiro no desfile de 1959. (Agência O Globo)

Desde o Carnaval de 1959, entrando nos desfiles das décadas de 1960, o Salgueiro começou a introduzir artistas da academia de belas artes nos seus quadros de colaboradores, que foram trazendo todo um estilo baseado principalmente na beleza, sofisticação estética e profissionalismo. É a chamada Revolução Salgueirense. Fernando Pamplona, Joãosinho Trinta e Arlindo Rodrigues são os artistas pilares dessa revolução, que eleva a escola de samba ao patamar de celebridade do carnaval.

Rosa Magalhães realizou enredo sobre Fernando Pamplona na São Clemente em 2015. (Divulgação)

Em 1962, ano do congresso do samba, começa também a mercantilização dos desfiles, com a cobrança de ingressos para o povão ver as suas escolas de samba na pista. Ismael Silva, um dos bambas que em 1928 criou a Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba do Brasil, é barrado nas imediações onde ocorreria os desfiles do carnaval daquele ano por não ter dinheiro para comprar o tíquete.

“Deixa Falar” deu origem à primeira escola de samba. (Arquivo Google)

É nesse contexto que se desenvolve todo o debate do 1º Congresso Nacional do Samba. Existia uma espécie de consenso entre os sambistas participantes de que a evolução do samba e sua modernização, seriam algo inevitável e natural, porém deveriam respeitar algumas tradições caras à autenticidade das escolas de samba. Algumas dessas tradições foram defendidas na Carta do Samba – o samba como um fenômeno cultural herdado da ancestralidade afro, seus instrumentos de percussão e cordas que representam as raízes de um samba autêntico, a ginga como a dança do verdadeiro samba de raiz e a manutenção e defesa da ala das baianas e do casal de mestre-sala e porta-bandeira como autênticas representantes de uma tradição a ser seguida nas escolas de samba.

Quadro “Morro da Mangueira”, Heitor dos Prazeres. (Enciclopédia Itaú Cultural)

O 1º Congresso Nacional do Samba e a Carta do Samba, depois de sessenta anos da sua realização e escrita, devem ser sempre lembradas como representantes de um debate que persiste até hoje no mundo do samba. Essa discussão entre tradição e modernidade tanto lá na década de 1960, como agora, tem como pano de fundo o dilema do negro e de sua cultura: a constante luta pelo reconhecimento de criador do samba e suas matizes.

Ter novos congressos discutindo os tempos atuais e a lembrança dessa grande história é mais do que um mero evento, é fundamental e necessário para a perpetuação da história do samba e seu povo.

CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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