Por João Batista Damasceno

A morte de Wellington da Silva Braga, o “Ecko”, no curso desta semana, possibilitou forte discussão no seio da sociedade sobre as circunstâncias daquele episódio. Já rendido, ferido pelo primeiro tiro na altura do coração e levado para a van da Polícia Civil, foi alvejado pela segunda vez, também na altura no coração. Tanto o Capitão Adriano da Nóbrega quanto seu amigo “Ecko” foram mortos após cerco pela polícia do Rio. Não faltou gente, maledicente, levianamente dizendo que foi queima de arquivo, antes mesmo de qualquer apuração.

A democracia contemporânea não mais se exerce, exclusivamente, por meio de representantes eleitos, mas também diretamente. Uma expressão da democracia republicana é o controle dos atos do poder político e, assim como as instituições burocráticas, a opinião pública é parte do sistema de controle. Mesmo com poucas informações todos formulamos opiniões sobre ocorrências diversas, inclusive as que nos chegam pelas redes sociais. Juízo é pensamento amadurecido; opinião é ideia irrefletida.

O furor nas redes sociais aumentou quando um senador fluminense parabenizou os policiais pela ocorrência.

Trata-se do mesmo senador que lamentou a morte do, igualmente qualificado como miliciano, Capitão Adriano da Nóbrega, acusado de chefiar o “Escritório do crime” e promover execuções mediante pagamento, ou seja, um ‘matador de aluguel’. O depoimento do ex-governador Wilson Witzel, na ‘CPI do Genocídio’, contribuiu para alimentar as especulações. Todos sabemos que o delegado que iniciou a apuração da execução de Marielle foi premiado com um curso na Europa, em razão do que deixou as apurações, e outro delegado foi encarregado da presidência do inquérito. Mas, isto não prova qualquer anomalia institucional.

Os inquéritos não contêm os fatos. Estes são eventos concretos no mundo natural que se esvaem com suas ocorrências. O que é possível são as reconstituições históricas. Um inquérito se constitui de meros relatos. Fui estagiário dois anos e advogado por seis. Estou no 28º ano na magistratura fluminense. Um inquérito “bem relatado” é o primeiro passo para o resultado que se deseja ao final. Portanto, o trabalho de quem tem interesse na acusação ou na defesa começa na delegacia. Se possível, antes, com o guarda da esquina.

Na noite de 14 de março de 2018 o Rio de Janeiro vivia sob intervenção federal na segurança pública, decretada em 16 de fevereiro. Na tarde do mesmo dia o partido de Marielle ingressara com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a anulação do decreto de intervenção assinado pelo presidente Michel Temer e que nomeara o General Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, como interventor.

A intervenção militar não admoestou os executores de Marielle e a quem serviram é o que deve, também, ser apurado.

Um outro inquérito no qual se apurava crime praticado para criar embaraço para a democracia foi relembrado nas redes sociais. Em 30 de abril de 1981 uma bomba explodiu no colo de um sargento do Exército e o matou, ferindo gravemente um capitão da mesma força. Os terroristas oficiais iriam colocar bombas durante um show de MPB no Riocentro e matariam centenas ou milhares de jovens. Era o mote para dizer que a redemocratização não era possível naquele momento. As Forças Armadas, por meio de atos terroristas, tentaram impedir a redemocratização para se perpetuarem no poder.

O inquérito para apurar o Atentado do Riocentro foi inicialmente presidido pelo coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro e apontava que os dois militares eram os autores do atentado que os vitimara. Mas, o Coronel Ribeiro, por temor de ser vítima de “queima de arquivo”, renunciou à presidência do inquérito e passou para a reserva. O Exército designou o Coronel Job Lorena de Sant’Anna que concluiu o inquérito dizendo que o sargento e o capitão foram vítimas de um ato terrorista e não os autores. Como prêmio pela empulhação o Exército promoveu o coronel Lorena ao generalato.

Ludibriar, tapear, iludir, construir cortinas de fumaça e dissimular são táticas militares que, às vezes, enganam os inimigos numa batalha. Desde que se construiu o conceito de ‘inimigo interno’ tais táticas são utilizadas contra o próprio povo a quem deveriam proteger.

Em 1981 o Exército colocou os seus próprios quadros para a execução do ‘serviço sujo’ e protegeu o sobrevivente até sua promoção a coronel e passagem para a reserva.


JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia.

(Publicado originalmente em O Dia)