Por João Batista Damasceno –
A morte do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips é a ponta do iceberg. Enrolados na bandeira do Brasil e com do apoio do Partido Militar Brasileiro e das milícias que o orbita os saqueadores gritam frases patrióticas e se apropriam das riquezas nacionais.
A jornalista paraense Cristina Serra, em artigo no jornal ‘Folha de S. Paulo’, escreveu que “Bruno e Dom foram mortos por todos os que incentivam o crime contra os povos indígenas, suas terras, a floresta, suas águas, bichos e plantas. Por aqueles que enfraqueceram os órgãos de fiscalização nos últimos anos”. Nenhuma análise poderia ser mais precisa.
No campo e nas cidades a incivilidade permeia as relações sociais e institucionais e torna o Brasil um dos países com maior número de mortes proporcionalmente ao número de habitantes do mundo. Nem mesmo algumas guerras matam tanto quanto se mata por aqui, embora continuemos a promover o autoengano do “país abençoado por Deus” e da cordialidade do brasileiro.
A estória de que somos cordiais foi primeiramente lançada pelo “Imperador Carlos Maximiliano” em carta ao seu primo D. Pedro II, numa tentativa de conseguir apoio para governar, no México, o império que nunca existiu de fato. Carlos Maximiliano era um fantoche de Napoleão III na América, num tempo em que as potências disputavam a hegemonia sobre nós. Foi a França quem inventou a expressão “América Latina” e quis, na metade do século XIX, que a América do Sul e Central estivessem sob sua zona de influência, em contraposição aos interesses dos EUA. O embusteiro Napoleão III acreditou que contrariando os interesses dos EUA poderia fundar um império favorável à França no México.
Em carta ao embaixador do México no Brasil, Alfonso Reys, o cônsul brasileiro na França, Ribeiro Couto, romancista autor de Cabocla, escreveu em 1931 que nossa contribuição ao mundo seria produzir o homem cordial. Esta expressão, apropriada por Sérgio Buarque de Hollanda em artigo de 1935, virou livro em 1936 e povoa o nosso imaginário. Mas, o escritor Cassiano Ricardo desancou com o pai do Chico Buarque e mostrou que cordialidade não é bondade, mas falta de racionalidade. Daí que cordial tanto pode ser o comportamento amistoso quanto raivoso.
Vivemos tempos de fúria. As instituições que deveriam ser referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro foram tomadas por quem não lhes reconhece as atribuições. A irracionalidade pauta as tomadas de decisões. Até mesmo o conhecimento científico produzido ao longo de mais de século passou a ser deslegitimado em nome de fantasias. Há quem recuse vacina contra vírus, mas toma vermífugo cuja superdosagem pode afetar severamente a saúde, conforme advertência do próprio laboratório que o produz.
A ignorância, que sempre foi astuciosa, hoje campeia com selvageria. Selva!
Mas não é apenas a irracionalidade violenta que está produzindo efeitos. Há também o cálculo daqueles que promovem o caos para, em razão dele, se locupletaram. Assim tem sido a apropriação do que ainda resta de patrimônio público, que vem sendo pilhado. A morte do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips é a ponta do iceberg. Enrolados na bandeira do Brasil e com do apoio do Partido Militar Brasileiro e das milícias que o orbita os saqueadores gritam frases patrióticas e se apropriam das riquezas nacionais.
E foi por oposição a este tipo de saque ao patrimônio público que as vidas de Bruno e Dom foram ceifadas. O crime só mereceu apuração porque vitimou um jornalista inglês e teve repercussão internacional. Diariamente brasileiros anônimos são executados pelas forças do Estado e por grupos armados por elas apoiados e se tornam mera estatística.
A jornalista paraense Cristina Serra, em artigo no jornal ‘Folha de S. Paulo’, escreveu que “Bruno e Dom foram mortos por todos os que incentivam o crime contra os povos indígenas, suas terras, a floresta, suas águas, bichos e plantas. Por aqueles que enfraqueceram os órgãos de fiscalização nos últimos anos”. Nenhuma análise poderia ser mais precisa. Há os que matam, os que ordenam, os que facilitam a execução e os que – por omissão – deixam de impedir os crimes. E quem de qualquer modo concorre para o crime há de incidir nas penas a ele cominadas. É o que dispõe o Código Penal.
As piores agruras de um agente público com visão elevada de suas funções e compromisso republicano ocorrem quando fica na contramão dos desvios de função das elites dirigentes nas instituições aparelhadas para ilicitudes. Bruno é o retrato desta ocorrência. Em todas as instituições somos capazes de encontrar situações similares. O Estado mata e deixa matar em prol de interesses escusos. Não é apenas a cultura e os povos indígenas que estão sendo eliminados. O desmando no qual estamos imersos elimina a vida humana, a cultura dos povos originários e o meio ambiente. Mas, o propósito é a apropriação dos bens públicos.
A classe dominante sempre teve projeto de pilhagem no Brasil: subtração do pau-brasil, retirada do ouro das Minas Gerais, escravidão para produzir açúcar e café e outras modalidades em ciclos econômicos posteriores.
No presente momento neoliberalismo apregoa o Estado mínimo e redução de sua capacidade de conter a pilhagem, mas com forte aparato armado para eliminar quem se oponha. Somente o Tribunal Penal Internacional (TPI) poderá responsabilizar a cadeia de comando e governantes pelos crimes contra a humanidade e genocídio que se praticam contra o povo diariamente.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI. Texto publicado inicialmente em O Dia.
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