Por Roberto Amaral

Uma crítica que se deve fazer à ciência política brasileira é a de não se haver detido adequadamente no estudo das forças armadas, nada obstante o papel de sujeito por elas desempenhado no curso de nossa formação, e a preeminência que sempre exercera sobre o poder civil em toda a história republicana, mais destacadamente na sequência do golpe de 1964.

Essa lacuna, porém, não é de hoje, pois se reflete já nas obras de nossos principais “intérpretes”, omissas na consideração das forças no processo sócio-político. Manoel Domingos Neto, um dos poucos cientistas brasileiros que se têm devotado ao tema, registra, entre nós, certo menoscabo ao estudo das forças armadas, lembrando que “não se exerce poder sobre o que não se conhece”.

Pode-se mesmo atribuir a essa carência de estudos e reflexões muitos dos problemas que terminaram por debilitar os governos civis, quase sempre atravancados por crises militares. A mesma reserva se dirige à universidade, que não se tem aplicado ao tema. São poucas as dissertações de mestrado e teses de doutorado, são raros os cursos de pós-graduação voltados para questão tão ingente e agônica em nossa vida política.

Para a esquerda e para a academia, de um modo geral, a questão militar permanece como tabu, construído por preconceito ou ranço. Por consequência, a questão, que diz respeito diretamente à democracia e ao poder civil, fica encastelada nos círculos militares, padecendo toda sorte de distorções.

Talvez estejamos purgando uma das heranças do comunismo ortodoxo, quando o tema era tratado em círculo fechadíssimo do Partidão – que, no entanto, graças à militância de seus intelectuais, ditava a linha discursiva observada de um modo geral pelos poucos que se voltavam ao tema.

Predominava a visão de um exército nacionalista, democrático e legalista. Essa leitura idealista, corpo estranho em corrente de pensamento filiada ao materialismo histórico, via os fardados como oriundos dos estamentos da classe média, e, graças a um determinismo inexplicado, comprometidos com os interesses das grandes massas.

A legenda dos combatentes de 1924 aparecia assim congelada, até a rebordosa de 1964. É conhecida a histórica conferência de Prestes na ABI, no dia 17 de março de 1964, quando se amparou em tais pressupostos para garantir – com a dupla autoridade de chefe partidário e herói militar – a impossibilidade de um golpe de Estado com apoio das forças armadas.

Mesmo presentemente, quando a realidade cobra a revisão de muitas teses desamparadas de comprovação, o tema parece ainda não haver cativado a reflexão que sua importância cobra, e contam-se em reduzido número os pensadores brasileiros de hoje, de dentro e de fora da academia, habilitados a iluminar a questão. O quadro se revela desolador quando voltamos nossas vistas para o panorama político, partidário e parlamentar.

Participei ativamente da elaboração de todos os programas de governo do campo da esquerda de 1989 até a primeira campanha de Dilma Rousseff, e não me recordo de qualquer reflexão razoavelmente atenta à temática militar. Era um tema que nos fugia. Recentemente, a Fundação de um partido de centro-esquerda desativou o grupo de trabalho dedicado à questão. Não pudemos, pois, revelar qualquer estarrecimento quando o presidente Lula, em um de seus mais substanciosos pronunciamentos após as últimas decisões do STF, declarou que assumira o primeiro mandato, em 2003, sem maior clareza quanto a esse desafio, e que se louvara nos conselhos que então lhe prestara o Oswaldo Oliva.

A questão central, naquela altura, dizia respeito ao caráter que deveria presidir as relações entre o chefe da nação – personificação do poder civil – e os engalanados, ciosos de uma autonomia sem respaldo na ordem constitucional.

Essas observações me trazem à baila episódio provocado pelo então comandante do exército (cujo nome a história não guardou) ao fazer publicar, no dia 17 de outubro de 2004, intempestiva e provocativa nota, escrita em nome da força, em que justificava mortes como a de Vladimir Herzog, revivendo, em pleno século XXI, os fantasmas da “subversão” e do “movimento comunista internacional”. Era um texto velho como as más lembranças dos anos 70 do século passado.

O mundo mudara, o Brasil mudara, mas o pensamento militar permanecia preso às mofadas teses de segurança nacional. O muro de Berlim ruíra, a União Soviética se auto-dissolvera, mas a alta oficialidade brasileira continuava embrenhada na Guerra Fria. E resiste a saltar fora desse bunker.

Estávamos praticamente no início do governo, em fase ainda de descobrimento de uma realidade até então só conhecida por intermédio da literatura. Tudo era inédito, urgente e delicado, não havia intimidade com as questões de Estado e quase todos éramos neófitos na administração pública.

Vindo a público sem prévia submissão ao ministério da defesa, a nota do comandante do exército era, sem dúvida, uma provocação, e logrou o que queria, a saber, pôr em confronto a autoridade do ministro e as baionetas do “Forte Apache”. A história é conhecida, e teve seu aparente termo com a demissão do irrepreensível ministro da defesa, embaixador José Viegas Filho, que não pode ser acusado de omisso ou tíbio, pois seguiu as orientações de seu chefe, o presidente da república, como relata em sua carta de demissão, do dia 22 de outubro, que transcrevo ao final em face de sua importância histórica, mas acima de tudo confiando que dela um eventual governo progressista a ser eleito em 2022 possa colher a lição que encerra. Ao embaixador Viegas sucederam, no ministério, dois dos mais ilustres homens de Estado, brasileiros de primeira água, mas ambos desafeitos às palavras de ordem, à impositividade e ao comando.

A partir desse episódio, o governo perdia condições de comando das forças que constitucionalmente lhe deviam obediência. Se não sobreveio o desastre – a legalidade foi preservada, sabe-se – ali se instalava a erosão do poder civil. Uma vez mais o passado é a fonte de explicação do presente. Não é de hoje o mau vezo de nossos governantes de confundir a aparência com a essência. O silêncio dos militares fôra lido como solidariedade às nossas políticas e as relações governo-partido-forças armadas haveriam de ser as melhores, porque havíamos revertido a dramática situação orçamentária em que se encontravam as três forças e procedêramos a sensível reajuste dos salários. Fizéramos tudo quanto mandava um guia da boa vizinhança, mas havíamos renunciado ao irrenunciável quando se trata de relações com militares: o exercício de rígido comando. O resto são consequências, e elas, como lamentava o conselheiro Acácio, “sempre vêm depois”.

Carta de demissão do ministro da Defesa, embaixador José Viegas Filho

Brasília, 22 de outubro de 2004.

Estimado senhor presidente,

Após uma reflexão prolongada a respeito das ocorrências desta semana, julgo necessária uma atribuição mais efetiva de responsabilidades com relação à nota emitida pelo Exército no último domingo.

Embora a nota não tenha sido objeto de consulta ao Ministério da Defesa, e até mesmo por isso, uma vez que o Exército brasileiro não deve emitir qualquer nota com conteúdo político sem consultar o ministério, assumo a responsabilidade que me cabe, como dirigente superior das Forças Armadas, e apresento a minha renúncia ao cargo de Ministro da Defesa, que tive a honra de exercer sob a liderança de Vossa Excelência.

Tenho sido o seu ministro da Defesa com os propósitos básicos de contribuir para a reinserção plena e definitiva das Forças Armadas do Brasil no seio da sociedade política brasileira, de ser o enlace entre elas e o governo, representando-as junto a Vossa Excelência e à sua equipe, e de melhorar a sua eficiência e a sua capacidade de ação.

Muito avançamos neste período. A título de exemplo, no que diz respeito aos interesses das Forças Armadas, logramos reverter a dramática situação orçamentária em que se encontravam as nossas Forças e reiniciamos os programas para o seu reaparelhamento. O reajuste parcial da remuneração dos militares também deu início à necessária correção dos seus vencimentos desatualizados.

O governo cumpriu plenamente com os seus propósitos acima delineados e tratou permanentemente as Forças Armadas com o respeito que elas merecem e obteve delas pronta resposta sempre que necessário, com o ardor, o desprendimento e o profissionalismo que caracterizam os seus integrantes.

Foi, portanto, com surpresa e consternação, que vi publicada no domingo, dia 17, a nota escrita em nome do Exército brasileiro que, usando linguagem totalmente inadequada, buscava justificar lamentáveis episódios do passado e dava a impressão de que o Exército, ou, mais apropriadamente, os que redigiram a nota e autorizaram a sua publicação, vivem ainda o clima dos anos 70, que todos queremos superar. A nota divulgada no domingo 17 representa a persistência de um pensamento autoritário, ligado aos remanescentes da velha e anacrônica doutrina da segurança nacional, incompatível com a vigência plena da democracia e com o desenvolvimento do Brasil no século 21. Já é hora de que os representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena.

É incrível que a nota original se refira, no século 21, a “movimento subversivo” e a “Movimento Comunista Internacional”. É inaceitável que a nota use incorretamente o nome do Ministério da Defesa em uma tentativa de negar ou justificar mortes como a de Vladimir Herzog. É também inaceitável, a meu ver, que se apresente o Exército como uma instituição que não precise efetuar “qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico”.

Não posso ignorar que aquela nota foi publicada sem consulta à autoridade política do governo. Assumo a minha responsabilidade. Agi neste episódio desde o primeiro momento. Informei Vossa Excelência, sugeri ações, convoquei, no próprio domingo 17, o comandante do Exército, entreguei-lhe um ofício que pedia a apuração das responsabilidades e a correção da nota publicada. Segui a orientação de Vossa Excelência e não divulguei posições e pontos de vista individuais. Vossa Excelência sabe que em momento algum fui omisso ou deixei de cumprir com as minhas responsabilidades no exercício das minhas funções.

Reitero, senhor presidente, que foi uma honra trabalhar sob a sua direção direta nestes quase dois anos. Reafirmo também a minha total lealdade a Vossa Excelência e a minha admiração pelo notável trabalho que vem realizando em prol do progresso do nosso país e da união de todos os brasileiros.

Respeitosamente,

José Viegas Filho.”