Por José Augusto Ribeiro

Há quase setenta anos, Getúlio Vargas fez na Bahia, durante a campanha presidencial de 1950, uma afirmação que hoje, 2019, precisamos renovar e transmitir a todo o país, a todos os brasileiros, eleitores no ano passado de Bolsonaro ou Haddad, ou de qualquer outro candidato no primeiro turno, brasileiros de centro, direita ou esquerda, trabalhadores e empresários, empregados e empregadores, civis e militares, jovens e velhos de todas as origens – enfim ao país inteiro.

– País que entrega seu petróleo – disse Getúlio – entrega também sua soberania.
Ele tinha autoridade para dizer isso. Logo depois da Revolução de 30, nos primeiros meses de seu primeiro governo, Getúlio acabou com a verdadeira farra de concessões petrolíferas que vinha da República Velha e decidiu que o petróleo deixaria de ser uma questão a cargo dos Estados e passaria a depender do governo federal.

Não se sabia sequer se existia petróleo no Brasil e só em 1921 a Standard Oil, norte-americana, hoje Exxon, e a Shell, inglesa, assinaram cerca de 120 contratos de concessão – em média dez contratos por mês. Antes da Revolução de 30, o grande Estado do Amazonas tinha sido dividido em seis fatias, seis áreas de concessão, quatro das quais entregues a laranjas da futura Exxon e as outras duas a outras multinacionais.

Getúlio acabou com isso em 1931, subordinando ao governo federal as decisões sobre petróleo – e foi mais longe. Em 1934, ele decretou o Código de Minas, estabelecendo que a propriedade da terra, da superfície, não incluía a propriedade do sobsolo, e que as riquezas do subsolo, como o petróleo que nele fosse encontrado, seriam propriedade da Nação, pertenceriam ao povo brasileiro. Em 1938, Getúlio anulou, sem direito a qualquer indenização, todas as concessões feitas na República Velha. A partir desse momento já se podia dizer o que se proclamou depois: o petróleo é nosso!

Na campanha presidencial de 1950, Getúlio deixou claro que, no governo, adotaria para a questão do petróleo uma solução brasileira, voltada para o interesse nacional e comprometida com a soberania e o desenvolvimento do Brasil. Já em 1951, ele mandou ao Congresso o projeto da Petrobrás, que se transformou na Lei 2004, de 3 de outubro de 1953 e tornou ainda mais realidade a afirmação que mobilizara o Brasil: o petróleo é nosso!

No domingo, 1º de agosto de 1954, a Petrobrás, ainda em organização, assumiu o controle total das reservas de petróleo já encontradas ou ainda por encontrar em todo o Brasil e também da única refinaria então existente, a de Mataripe, na Bahia, e dos navios da frota nacional de petroleiros. Nesse momento, conversando com Lutero, seu filho mais velho, Getúlio lembrou a queda de seu primeiro governo, em 1945, seguida imediatamente pela autorização de entrada de capitais estrangeiros na indústria do refino, que é a fatia mais lucrativa da cadeia do petróleo e permite o controle dos preços pagos por seus consumidores finais.

Nessa conversa, Getúlio previu o que seria tentado no futuro contra ele e a Petrobrás – e disse a Lutero:

– Vai acontecer de novo…

O futuro não demorou. Três dias depois, com o atentado da rua Tonelero, começou a crise que Getúlio transformou de tragédia em seu maior triunfo. A oposição civil mobilizou os quartéis, porque no atentado morrera o major da Aeronáutica Rubens Vaz. A cúpula das Forças Armadas se dividiu e o grupo mais barulhento embarcou no clamor das ruas, produzido como sempre pela grande mídia, e somou-se à oposição civil, pedindo a renúncia ou a derrubada de Getúlio.

O jornalista Carlos Lacerda, ferido no atentado e maior voz da campanha golpista, falava toda noite, pedindo a derrubada de Getúlio, numa das duas únicas TVs existentes no Brasil, uma no Rio, que era a capital da República, e outra em São Paulo, já a capital econômica do país. Lacerda falava o tempo que queria, porque as TVs tinham sido postas à disposição do golpe por seu dono, Assis Chateaubriand, o Rei da Mídia na época, dono também de poderosos jornais e rádios em todos os Estado, e de uma ainda mais poderosa revista semanal de meio milhão de exemplares de tiragem. As TVs de Chateaubriand eram um verdadeiro monopólio privado que pautava quase toda a mídia impressa e radiofônica do país e era dona de um pensamento único na TV. Alguma semelhança com épocas posteriores?

No auge da campanha televisiva e radiofônica de Lacerda contra Getúlio, com um discurso de ódio e mentira que se antecipava à era das fake news, o subchefe do Gabinete Militar de Getúlio, General Mozart Dornelles, resolveu procurar Chateaubriand, a quem conhecia desde a Revolução de 30, ele combatente e Chateaubriand jornalista.

O General perguntou por que tanto rancor, intolerância e veneno nos pronunciamentos de Lacerda. E se pelo menos seria possível evitar essa violência, manter a crítica em linguagem dura, mas civilizada? Chateaubriand interrompeu-o:

– Mozart, eu sou o maior admirador do Presidente, eu adoro o Presidente… Quando ele quiser, eu tiro o Carlos Lacerda da televisão e entrego a televisão a quem o Presidente quiser, para fazer a defesa do governo.

O General não teve tempo de dizer nem perguntar nada, porque Chateaubriand, fazendo de imediato o preço da chantagem, acrescentou:

– É só o Presidente desistir da Petrobrás que eu tiro o Lacerda da televisão.

Surpreendido e chocado, o General voltou para o Palácio do Catete, sede da Presidência da República, ainda no Rio, e aí encontrou-se com o Ministro da Justiça Tancredo Neves, seu cunhado. O General perguntou se devia comunicar a Getúlio que tinha feito essa visita e o resultado dela. Tancredo respondeu que Getúlio devia ser informado sem demora e disse:

– Mas nós dois sabemos, Mozart, que o Presidente morre, mas não desiste da Petrobrás.

Dias depois, Getúlio estava morto e o tiro que varou seu coração adiou por dez anos o golpe de 64 e manteve a Petrobrás viva e cada vez maior pelos até agora 65 anos seguintes.

O Vice Café Filho, que assumiu a Presidência no lugar de Getúlio, não teve coragem de mexer na Petrobrás e disse isso ao chefe de seu Gabinete Militar. General Juarez Távora, que fora o líder do minoritário grupo militar descrente nas possibilidades da Petrobrás e favorável à entrega do petróleo brasileiro às multinacionais; e que naquele agosto chefiara a corrente golpista nas Forças Armadas. Nos governos seguintes, com os Presidentes Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, a Petrobrás nada de mais grave teve a temer, apesar dos esforços dos partidários da entrada de capitais estrangeiros na exploração do petróleo brasileiro incrustados nos dois. No governo do Presidente João Goulart, Ministro do Trabalho e herdeiro político de Getúlio, a Petrobrás foi muito fortalecida.

Apesar do caráter inicial do regime militar instaurado em 1964 com a derrubada de João Goulart, regime que via comunismo em tudo que não fosse submissão incondicional aos interesses dos Estados Unidos, a Petrobrás, paradoxalmente, não foi ameaçada e até foi levada, no governo Geisel e no auge da crise internacional do petróleo desencadeada em 1973, ao desafio das águas profundas na Bacia de Campos, primeiro passo para nossa autossuficiência em petróleo e para a futura descoberta do Pré-Sal. Para os militares no poder, o petróleo não era uma commodity, era estratégico e essencial à segurança e ao desenvolvimento do país.

Com a volta do poder civil, a Petrobrás correu riscos no governo Collor, que não teve tempo para agir contra ela. Em seguida, ela foi duramente mas ainda não mortalmente atingida no governo Fernando Henrique, com a entrega às multinacionais de áreas promissoras encontradas pela Petrobrás. Na era Lula, a descoberta do Pré-Sal em 2006 teve como consequência o restabelecimento parcial das garantias conferidas à Petrobrás pela Lei 2004, sua lei original, sancionada pelo sangue de Getúlio Vargas.

No governo Temer e agora no governo Bolsonaro, este presidido por um ex-militar que jurou nossa bandeira e nossa soberania, é que começou e avança velozmente o desmonte da Petrobrás. Agora não é só a entrega às multinacionais de áreas decobertas pela Petrobrás. É a venda em andamento de suas refinarias, que têm o poder de decidir que preço o consumidor final vai pagar pelo diesel, pela gasolina e, afetando perversamente as famílias mais pobres, pelo botijão de gás. É o desmantelamento, pela privatização, de partes vitais das operações da Petrobrás, como oleodutos, gasodutos e terminais.

Ao entregarmos assim nosso petróleo, não é só a nossa soberania que estamos renunciando. Estamos desistindo da retomada de nosso desenvolvimento, estamos aceitando essas taxas humilhantes de desemprego, estamos condenando à miséria milhões de brasileiros que começavam a sair dela, estamos oferecendo a nossas gerações jovens um futuro sem esperança e sem horizontes. Estamos, de fato, devolvendo o Brasil à condição de colônia.
Para Getúlio Vargas, a primeira obrigação de qualquer governo é promover a justiça social. E não há justiça social sem desenvolvimento, nem desenvolvimento sem soberania. O desmonte da Petrobrás já avançou demais. Sem a Petrobrás não teremos nem soberania nem desenvolvimento e muito menos justiça social.

O que todos temos de dizer neste momento cabe em pouquíssimas palavras: chega! o petróleo é nosso!

(*) José Augusto Ribeiro é jornalista e escritor, autor entre outros livros de “A Era Vargas” (2001), “De Tiradentes a Tancredo, história das Constituições do Brasil” (1987); “Nossos Direitos na Nova Constituição” (1988), “Tancredo Neves: a noite do destino” (2015), e “Lula na Lava Jato e Outras Histórias Mal Contadas” (2018)