Por Lincoln Penna

Jacques Lambert escreveu um livro que foi fruto de suas observações, estudos e contatos por ocasião da vinda de professores franceses ao Brasil, em 1939. É dele o título do qual me aproprio para intitular este artigo. Seu livro foi editado pela Companhia Editora Nacional na célebre coletânea Brasiliana, em fins dos anos sessenta. Ocupava-se em retratar o Brasil europeu dominantemente branco, com níveis de desenvolvimento mais acentuado que o resto do país, em relação ao Brasil arcaico, mais miscigenado, numa das configurações de nossas diferenças e da diversidade delas resultantes.

Contraste que mascarava a desigualdade social presente nesses dois brasis. Durante muito tempo, enfatizou-se muito mais as diferenças regionais, o centro-sul do norte e nordeste, do que as estruturas sociais díspares. Referência mínima era dada à concentração das relações capitalistas no Brasil moderno, distinto das áreas regionais a acomodar ainda relações pré-capitalistas, razão principal da distorção que chamara atenção de Lambert. E ao constatar essa dualidade, o autor interessado em nos conhecer melhor, dava conta de que havia um sentido de unidade nacional.

As distâncias, tanto geográficas quanto de ordem econômica e social, não impediam a manifestação do que poderia se designar de um sentimento de brasilidade.

Cerca de oito décadas depois convém propor uma reflexão. Os brasis de hoje se situam em dois horizontes bem distintos e até antagônicos. Em um deles está presente a inserção na humanidade despida de preconceitos e aberta ao novo e ao enfrentamento de velhos e novos desafios. Ela se nutre da capacidade de interação construtiva das pessoas em busca permanente da satisfação para uma vida melhor. Na outra ponta, aqueles cujo horizonte curto e preconceituoso se alimenta do ódio e da ganância; do desapreço com o outro e da ignorância pervertida. É um horizonte da destruição, do egoísmo extremo e do estímulo à violência.

É hora, portanto, de se atualizar a imagem dos dois brasis, para que compreendamos a importância e a necessidade de um projeto nacional que venha a contemplar os desafios de sempre. Sem esse projeto de nação ficamos reféns da impotência a viralizar pelas redes sociais nossas angústias e a reafirmar crenças e concepções ocas, vazias de ações propositivas. Trocam-se insultos e denúncias com base em postulados meramente verbais, nesse falso diálogo, improdutivo porque travado ao largo da política real, como se esta fosse a reafirmação de paradigmas e nada mais.

E essa urgência decorre em grande parte do estado em que se encontram as populações desassistidas de nossas periferias, assaltadas pelo incremento da criminalidade sob forma de organizações para estatais, as milícias, que têm se tornado um instrumento de espoliação junto a essa gente desprotegida pelo Estado. Ao surgirem como “protetoras” em face da bandidagem, em pouco tempo transformarem-se em apêndices de uma forma de exploração a proporcionar ganhos de capital à margem do sistema formal. Fez da ausência da legalidade um trunfo para se expandir em territórios, cuja implicação mais perceptível é a da falência do Estado de bem-estar social.

Essa mais recente dualidade entre a legalidade fundada nas instituições de Estado e a contravenção tolerada, reacende a releitura de Dois Brasis a partir de um olhar contemporâneo de nossas mais recentes mazelas.

Daí, a urgência no trato dessa questão, sob pena de ter de se aceitar que aquela realidade evidenciada por Lambert não somente está presente, tal como observara quando de sua passagem pelo Brasil, como ganhou novas dimensões. E estas são tão impressionantes e dramáticas quanto a que vivenciara, em razão de ser mais transparente o incremento das relações de exploração capitalistas a apontar para a penetração das lutas de classes aonde elas se escondiam por detrás de uma fronteira regional marcada pela desigualdade. No fundo, de classes.

No embate entre a ordem pública e a dos chefetes acobertados pelos seus protetores, ocupantes de cargos eletivos, está em jogo o compromisso com a democracia. A crença de que é possível erradicar esses tumores antes que se irradiem mais ainda como metáteses a destruir nosso organismo social já debilitado, e em estado pouco animador. Mas, a melhor forma de vencer essa guerra é alimentar a esperança de que é possível reverter toda e qualquer situação que nos oprime. Basta acreditar que o verdadeiro poder emana do povo e cabe a ele exercitá-lo como melhor lhe convier. Por delegação ou diretamente, como previsto na nossa Constituição.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional; Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.