Por Felipe Quintas e Pedro Augusto Pinho –

Soberania é condição indispensável para a existência de qualquer nação. Os territórios, suas águas territoriais, seu espaço aéreo, em todo planeta, podem ser classificados como Nações ou Colônias, conforme desfrutem ou não de soberania.

Por quais espaços se exerce a soberania e que critérios devemos adotar na sua definição são algumas questões decorrentes da existência dos Estados. No Fundamentos do Poder Nacional, editado pela Escola Superior de Guerra (ESG) em 2019, lê-se: o “Brasil como Nação livre e soberana está alicerçado em três componentes:

– a integridade do Território, envolvendo o Mar Territorial, a Zona Econômica Exclusiva e a Plataforma Continental, bem como o espaço aéreo sobrejacente:

– a integridade dos bens público, dos recursos naturais e do meio ambiente, preservando-os da exploração predatória; e

– a integridade do patrimônio histórico-cultural, representado pela língua, costumes e tradições.”

Alexandre Herculano, em sua fundamental História de Portugal (Livrarias Aillaud & Bertrand e Livraria Francisco Alves, Paris, Lisboa, Rio de Janeiro, S. Paulo, Belo Horizonte, 1914, 8 volumes), discorre na “Introdução” sobre como considerar as origens de Portugal. Busca aquele escritor nos cronistas que, se expressando em “latim bárbaro”, narraram a infância da história, o período decorrido desde a separação da monarquia leonesa dos habitantes daquele espaço que viria constituir Portugal.

Nossa origem está nos primitivos habitantes do que constitui o Brasil de hoje, mas que infelizmente apenas deixaram registros antropológicos, cuja datação ainda se discute, mas podemos considerar o trabalho da arqueóloga Niède Guidon, no Parque Nacional Serra da Capivara (Piauí), como o “latim bárbaro” de Herculano. Nossa população originária pode ter ocupado o Brasil há 25 mil anos.

Temos então dois momentos do nosso início histórico. O mais antigo, o antropológico, que será tratado mais adiante. E aquele que constitui nosso registro escrito, desde a “Carta de Caminha”, para o qual faremos algumas considerações neste artigo.

A chegada dos portugueses no Brasil pode ter sido a fortuita consequência da calmaria oceânica ou do propósito colonizador, resultado das informações já disponíveis pela realeza portuguesa. É necessário, preliminarmente, conhecer como era Portugal e quais objetivos tinham os reinados europeus no século XV.

Portugal, de 1385 até 1580, foi governado pela dinastia de Avis. Assim, nosso descobrimento é fruto dos trabalhos de João I (1385–1433), fundador da dinastia e pai de Dom Henrique (1394–1460) o principal impulsionador da expansão portuguesa, denominada “descobrimentos”; de Duarte (1433–1438), que concluiu a compilação das leis conhecidas como “Ordenações Afonsinas”; de Afonso V (1438–1481) e João II (1481–1495), que se empenharam na conquista da África; e de Manuel (1495–1521), quando se dá a chegada dos portugueses ao Brasil.

“A atividade comercial e marítima, que marcou a existência lusitana na Idade Moderna, tem seus fundamentos em uma tradição histórica dos últimos séculos medievais”, afirmam Antônio Mendes Júnior, Luiz Roncari e Ricardo Maranhão (Brasil História 1 Colônia, Editora Brasiliense, SP, 1976). Este período pós-medieval é denominado mercantilismo.

Pierre Deyon (1927–2002), historiador francês, em seu livro O Mercantilismo (Gradiva, Lisboa, 1983, tradução do original de 1969 por Margarida Sérvulo Correia), polemiza afirmando que “o mercantilismo foi definido e batizado pelos seus adversários. Não é de espantar que lhe tenham dado o nome errado. Para melhor o desacreditarem, fingirem não reparar senão no seu aspecto comercial e conseguiram atribuir ao adjetivo mercantil um tom pejorativo”. E “do século XVI ao século XVIII ninguém se declarou mercantilista”.

Mas, na definição usual do mercantilismo, estão as características da ação portuguesa no Brasil: intervenção do Estado, balança comercial favorável, pacto colonial e protecionismo.

Adam Smith desenvolveu seu pensamento calcado no enriquecimento das nações graças ao comércio exterior, encontrando saída para os excedentes da produção. O Estado adquire assim papel primordial no desenvolvimento da riqueza nacional, ao contrário do que propugnam os liberais dos séculos XX e XXI (vide Felipe Maruf Quintas, “Adam Smith contra o liberalismo: o capital produtivo”, Monitor Mercantil, 29/9/2020).

Ignácio Rangel (“Dualidade e Escravismo Colonial”, in Encontros com a Civilização Brasileira nº 3, Civilização Brasileira, RJ, 1978), após distinguir os dois patamares da sociedade feudal – do rei e barões e dos barões e servos da gleba – escreve que não se podem excluir condições objetivas para que surjam, em momentos diferentes, estes patamares. E foi o que ocorreu no Brasil, afiança. “Para isso concorreram as condições objetivas de nossa nascente economia colonial e da economia da Europa, nos quadros da economia mercantilista, da qual Portugal era um exemplo acabado”.

Portugal, pelos séculos XIV e XV, foi tomado por pestes e fome, tendo em 1500 por volta de um milhão e cem mil habitantes. O que se pode considerar como Brasil é a parte oriental da linha de Tordesilhas, comumente estabelecida de Belém, ao norte, a Laguna (Santa Catarina), ao sul. No entanto, meia dúzia de meridianos diferentes foram traçados até o século XVI, por diferentes geógrafos, como sendo o de Tordesilhas.

Na Europa, Portugal disputava a expansão marítima e a tecnologia náutica com os reinos de Castela e Aragão. Qual a realidade se impunha a Portugal para colonizar um vasto território que Cabral, Gonçalo Coelho, Américo Vespúcio e Martim Afonso de Souza fizeram conhecer até 1531? E cuja riqueza de pau-brasil já despertava a cobiça para exploração de diversos navegadores?

Não foi a presença do Estado, o mercantilismo, mas a privatização, com a entrega a 12 membros da pequena nobreza de Portugal das 14 capitanias hereditárias criadas em 1534.

Portugal não teve a experiência do feudalismo. Sua nobreza foi constituída pelos favores da realeza de Henrique de Borgonha e sucessores, primeira dinastia de 1095 a 1383, na luta contra os mouros, e consolidada posteriormente pela dinastia de Avis. Faltavam, a esta gestão privada, experiência e recursos, daí apenas duas das 14 capitanias tivessem sucesso.

O Estado assume então o governo da colônia, em 1549, por decreto da Coroa Portuguesa que nomeava Tomé de Sousa como o primeiro governador-geral do Brasil. Mas Portugal também não dispunha de pessoas e recursos financeiros. É uma das razões que o Estado, desde Tomé de Souza até 1822, só cuidará das finanças e das seguranças nacional e pública, como se vê nos auxiliares do governador-geral: o provedor-mor (Antônio Cardoso de Barros), responsável pelos negócios da Fazenda, o ouvidor-mor (Pero Borges), responsável pela justiça, ou seja, a segurança interna; e o capitão-mor da Costa, cargo ocupado pelo ex-donatário da capitania de São Tomé, Pero de Góis. A inexistência de promotor de manufaturas pode ser vista como característica mercantilista, assim como a exportação de produtos primários.

A educação, a comunicação e a integração com a população originária foram entregues aos religiosos jesuítas que vieram com Manuel da Nóbrega.

As expedições coloniais e defensivas e os estabelecimentos de missões jesuítas aumentaram o Brasil de Tordesilhas, sendo, em 1709, constituído das seguintes províncias: Grão-Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande de São Pedro, com a conformação atual e abrangendo parte de todas cinco regiões: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul como se vê no mapa do Brasil Colonial em pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_colonial_do_Brasil#/media/Ficheiro:Brazil_in_1709.svg

Constata-se, assim, que o território brasileiro foi se constituindo pelas ações públicas e privadas, ao longo da colonização, estando plenamente conformado em sua independência. É este o território cuja integridade nos cabe defender.

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Soberania, integridade do patrimônio nacional: população originária

As colonizações inglesa, espanhola e portuguesa tomaram, nas Américas, rumos diferentes do que se verificou na África e na Ásia. Enquanto nesses dois continentes a colonização foi apenas de exploração e genocídio, espoliando, massacrando e manipulando povos já existentes e com os quais os colonizadores não se misturaram, a colonização ibérica nas Américas, além do caráter exploratório, também teve o viés de povoamento, no sentido de criar raízes e nelas assentar famílias que aqui permaneceram e se mesclaram aos povos originários, criando um povo novo.

Prevaleceu a avaliação de Edward Potts Cheyney (1861–1947): “A partir da época da colonização, a única população da América que teve significação foi a de origem europeia” (European Background of American History 1300–1600, Harper & Brothers, NY, 1906). O que mostra ser a política inglesa, tanto quanto a espanhola e a portuguesa, em relação aos povos originários, a de genocídio. Porém, ao contrário dessas duas últimas, a inglesa não teve qualquer caráter criador e inovador, apenas espoliativo.

Vemos a população indígena, que em 1500 era três vezes maior do que a portuguesa, em torno de 3 milhões, no Censo Demográfico 2010 estarem reduzidas a 817 mil pessoas, ou seja, aquelas que se autodeclararam indígenas (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, “Os indígenas no Censo Demográfico 2010”, Rio de Janeiro, 2012). Mas quantos descendentes de indígenas, miscigenados com europeus e africanos, não temos em nosso país?

Os portugueses tiveram interesse em escravizar aqueles nativos, como já ocorrera na África, desde o século XV. Escreve Herbert Aptheker (1915–2003), historiador estadunidense: “A sujeição militar da África em tempos modernos e a escravidão de partes de sua população foi iniciada por Portugal em meados do século XV; nos anos seguintes, Espanha, Inglaterra, França e Holanda uniram-se à lucrativa empresa” (H. A., Uma nova história dos Estados Unidos – A Era Colonial, tradução de Maurício Pedreira do original inglês de 1959, para Editora Civilização Brasileira, RJ, 1967).

Naquele início do século XVI, quando Pedro Álvares Cabral chega a Porto Seguro, seu contato com os 500 nativos deu-se, certamente, com tupiniquins. Toda costa brasileira era ocupada pela tribo tupi-guarani, dentre eles, ao sul da Bahia e em São Paulo, encontravam-se os tupiniquins.

“A enorme extensão territorial e a desigualdade de desenvolvimento das suas várias regiões fazem do Brasil um país de violentos contrastes”. “Aquilo que para o Brasil litorâneo é a história mais remota, só registrada nos documentos da colonização, para o Brasil interior é crônica atual”. Assim o gênio Darcy Ribeiro inicia a “Introdução” da obra basilar Os índios e a Civilização (Editora Vozes, Petrópolis, 1979, 3ª edição), o quinto volume dos Estudos de Antropologia da Civilização.

Adotando os dados estatísticos do IBGE de 2010, anteriormente referidos, verificamos que a população autodeclarada como indígena está majoritariamente na Região Norte, 37,4%. Deve-se ressaltar que não estão incluídos os indígenas que fogem ou evitam, de algum modo, o contato com os “civilizados”. Especialmente na Região Norte, a população descendente da originária deve ser bem mais numerosa.

Detalhando os dados do IBGE para esta região temos, por estado, os números absolutos e a percentagem desta população como se segue:

1 – Amazonas: 168.880 indígenas, que compareceram ao levantamento do IBGE, e que representavam 4,8% do total da população do Estado;

2 – Roraima: 49.637, representando 11% do total do Estado;

3 – Pará: 39.081, representando 0,5% do total do Estado;

4 – Acre: 15.921, representando 2,2% do total do Estado;

5 – Tocantins: 13.131, representando 0,9% do total do Estado;

6 – Rondônia: 12.015, representando 0,8% do total do Estado; e

7 – Amapá: 7.408, representando 1,1% do total do Estado.

No citado estudo de Darcy Ribeiro, temos a seguinte assertiva: “O delta do Amazonas constitui uma das áreas de mais antiga ocupação europeia no Brasil. Já nos primeiros anos do século XVII ali se instalaram soldados e colonos portugueses. Estes núcleos encontrariam uma base econômica na exploração de produtos florestais como o cacau, o cravo, a canela, a salsaparrilha, a baunilha, a copaíba que tinham mercado certo na Europa e podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o concurso da mão de obra indígena, farta e acessível naqueles primeiros tempos.”

Ao enumerar as áreas culturais do Brasil, conforme as populações aqui existentes ao tempo da chegada dos portugueses, Darcy Ribeiro, na obra citada, elenca com existência na Região Norte, a Amazônia brasileira, as sete seguintes:

a) área cultural Norte-Amazonas, com 25 tribos, distribuídas nas sub-regiões do Amapá – quatro; Norte Pará – cinco; Rio Branco – sete e Rio Negro-Putumayo – nove;

b) área cultural Juruá-Purus com 17 tribos;

c) área cultural Guaporé com 15 tribos, entrando na região Centro-Oeste (Mato Grosso);

d) área cultural Tapajós-Madeira com 16 tribos, também entrando no Estado de Mato Grosso;

e) área cultural Alto Xingu com 16 tribos, igualmente ocupando parte do Estado de Mato Grosso;

f) área cultural Tocantins-Xingu com 22 tribos, não só na Região Norte mas em partes das regiões Nordeste e Centro Oeste;

g) área cultural Pindaré-Gurupi com seis tribos habitando os estados do Pará e Maranhão.

Das restantes áreas culturais, com população inteiramente em território brasileiro, só teremos a denominada Nordeste, com 13 tribos espalhadas pela costa atlântica, do nordeste ao sudeste.

A proteção e manutenção destas populações/culturas são compromisso do Estado, pois são representativas da especificidade da Nação Brasileira. Elas constituem um dos eixos da nossa formação sociocultural brasileira. Difícil haver um brasileiro em cujas veias não corram sangue ameríndio. Impossível haver um brasileiro que não carregue, nas suas expressões culturais, a marca indígena, incorporada na língua, nos hábitos e costumes, na gastronomia, na toponímia, enfim, em tudo que diga respeito à existencialidade brasileira.

A integridade do patrimônio nacional vai além da defesa territorial – sem dúvida indispensável ação das Forças Armadas – mas inclui a especificidade cultural, hábitos que repetimos muitas vezes inconscientemente, por fazer parte do mais íntimo sentir e compreender brasileiro. Daí o sentido da valorização e da preservação do elemento indígena em nosso país, não como apêndice mas como fator estruturante da Nação.

Já esmaece a ideia globalizante pela própria inadequação de ser implantada em qualquer parte do mundo. A Ásia e a África se levantam. Precisamos fortalecer nossas características próprias e para tal a população originária é quem melhor nos fornece importantes elementos.

De Darcy Ribeiro transcrevemos de “O Destino Nacional” (in D. Ribeiro, O povo brasileiro, Companhia das Letras, SP, 1995):

“Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos, Canadá, Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa”.

“Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.”


Felipe Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

Textos pulicados originalmente no jornal Monitor Mercantil. Envie seu artigo para mazola@tribunadaimprensalivre.com