Por Flavio Gordon

Ontem, num grupo de WhatsApp, conversava com alguns velhos amigos dos tempos de escola, quase todos empresários liberais, sobre o seguinte dilema: como é possível que um empresário bem-sucedido como Jorge Paulo Lemann – “forjado no mais puro capitalismo”, como resumiu um desses meus amigos – financie, por exemplo, uma revista de educação como a Nova Escola, talvez a publicação mais influente da área, cujo conteúdo é radicalmente de esquerda e anticapitalista, e para a qual o marxista Paulo Freire é “o maior educador brasileiro”?

Por qual motivo um sujeito que fez fortuna no capitalismo – e que, portanto, pode ser considerado um representante desse sistema – fomenta a divulgação de ideias socialistas dentro das escolas?

DOIS FATOS CONCRETOS – É claro que o dilema só pode existir se forem conhecidos os dois fatos concretos que o perfazem: que Lemann é um empresário capitalista de destaque e que, ao mesmo tempo, promove institucionalmente uma educação com forte viés marxista e neomarxista.

Meus amigos conheciam bem o primeiro deles. Daí que, sendo liberais, admirassem Lemann e vissem nele um emblema da economia de mercado. Mas ignoravam totalmente o segundo. Não tinham ideia de que a Fundação Lemann abrigasse a Nova Escola, e menos ainda da importância dessa revista (que, desde que fundada por outro empresário capitalista, Victor Civita, promove toda sorte de pautas “progressistas” nas salas de aula, do feminismo radical ao antiamericanismo terceiro-mundista) para os ideólogos esquerdistas da educação.

Eis por que não consigam sequer conceber, e tendam a ridicularizar como fantasioso, esse aparente paradoxo, o de um notório capitalista fomentando uma cultura política socialista.

DIREITA E ESQUERDA – É difícil entender por que os donos das maiores fortunas do mundo, e especialmente os que possuem grandes fundações em seu nome, empregam o seu vultoso capital no fomento de agendas de esquerda, frequentemente radicais

Mutatis mutandis, essa incapacidade de compreensão é estruturalmente similar ao daquela conhecida jornalista segundo a qual não há esquerda nos EUA, porque, afinal de contas, o país é “a meca do capitalismo”. Naturalmente, assim como eu, meus amigos riem de tal opinião, não percebendo que o seu espanto diante da mera possibilidade de um grande capitalista ajudar a difundir ideias de extrema-esquerda é apenas uma versão mais sutil daquela peça de humor involuntário.

Mas se, no caso da jornalista, a incompreensão talvez decorra de certa indigência intelectual, posso garantir que esses meus amigos são pessoas inteligentes. Não, o problema aqui não é de inteligência, mas de hábito.

VICIO DE RACIOCÍNIO – Reside num vício de raciocínio, adquirido em nosso ensino fundamental, que consiste em analisar a realidade política com base em definições meramente enciclopédicas, resultando em silogismos factualmente absurdos como este: se socialismo é sinônimo de esquerda, logo capitalismo só pode sê-lo de direita; e, portanto, um empresário capitalista jamais seria um aliado objetivo de radicais de esquerda.

Curiosamente, aquele vício de raciocínio é, ele próprio, contaminado com elementos de marxismo, a começar pela teoria da determinação material da consciência. Assim, as ideias de uma pessoa seriam determinadas por sua posição respectiva na sociedade de classes. Um empresário capitalista – ou burguês, na terminologia clássica – esposaria necessariamente ideias e valores capitalistas. Um proletário, por sua vez, defenderia necessariamente ideias e valores socialistas. Tudo isso consagra no imaginário nacional um clichê tão ridículo e desmentido pelos fatos quanto difícil de erradicar, mesmo em inteligências acima da média.

O VELHO CLICHÊ – A sugestão de que empregadores são (ou deveriam ser) sempre de direita; empregados, sempre de esquerda. Ou, em versão ainda mais burlesca, de que ricos são de direita; pobres, de esquerda. Os primeiros, para manter o status quo e garantir seus privilégios; os segundos, para revolucionar a estrutura social e melhorar sua condição de vida.

Ora, a realidade mostra precisamente o contrário. Basta observar que, hoje, os donos das maiores fortunas do mundo, e especialmente os que possuem grandes fundações em seu nome, empregam o seu vultoso capital no fomento de agendas de esquerda (eufemisticamente chamadas de “progressistas”),  frequentemente radicais. O exemplo mais patente talvez seja o de George Soros, um dos principais financiadores de movimentos extremistas como Occupy Wall Street, Black Lives Matter e Antifa.

O EXEMPLO DE SOROS – Não é preciso fazer grandes especulações sobre a razão disso para constatar o fato de que as coisas são realmente assim. Essa hipótese é reforçada, por exemplo, pela confissão do próprio George Soros, que, em artigo significativamente intitulado “A Ameaça Capitalista”, publicado na The Atlantic em fevereiro de 1997, escreve com todas as letras, e sem um pingo de vergonha:

“Embora eu tenha feito fortuna no mercado financeiro, hoje temo que o fortalecimento irrestrito do capitalismo laissez-faire e a difusão dos valores do mercado para todas as esferas da vida estejam ameaçando a nossa sociedade aberta e democrática. O principal inimigo da sociedade aberta, creio, já não é a ameaça comunista, mas a capitalista”.

Logo, ao ser perguntado por um daqueles amigos sobre qual seria a minha hipótese para explicar o dilema com o qual abri este artigo, respondi não ter uma plenamente elaborada, limitando-me a constatar a existência objetiva dos fatos aparentemente paradoxais.

CAPITALISTAS ARISTOCRATAS – Uma explicação possível, todavia, é a de que, contrariando o axioma materialista, os grandes empresários capitalistas, detentores do poder econômico, já não tenham uma mentalidade burguesa-capitalista, mas, ao contrário, aristocrática e dinástica, desejando proteger-se das flutuações do mercado por meio da associação com o poder político-militar.

Nesse sentido, conquanto tenham enriquecido na economia de mercado, já não a considerariam propícia aos seus interesses, vendo na ordem capitalista antes um perigo que uma oportunidade. Cansado de aventuras e riscos, o antigo empreendedor torna-se, então, um novo aristocrata.


Fonte: Gazeta do Povo, por Flávio Gordon – Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017).

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