Por José Carlos de Assis

A série de denúncias da Polícia Federal e de outras instituições policiais a respeito de irregularidades em compras de equipamentos e de construção de hospitais em várias cidades, notadamente o Rio de Janeiro, me deixa duplamente angustiado: em primeiro lugar, porque há provavelmente muitos vigaristas que se aproveitam de uma situação dramática como a pandemia do coronavírus para ganhar dinheiro fácil; em segundo lugar, porque grande parte dessas denúncias deve ser infundada e apenas atrapalha o sistema de combate ao vírus.

Sou um jornalista calejado em denúncias de corrupção. Nos anos 80, em plena ditadura, denunciei vários escândalos financeiros acobertados pelo regime autoritário. Na verdade, praticamente fundei o jornalismo investigativo em matéria financeira no país, em casos publicados em jornais e três livros (A Chave do Tesouro, Os Mandarins da República e A Dupla Face da Corrupção), dos quais ainda se lembra o pessoal de minha geração. Nunca fui denunciado por notícia falsa. Fui denunciado, sim, politicamente, pela antiga LSN.

Fiz efetivamente um jornalismo investigativo, isto é, investigava por conta própria por cima de opiniões de delegados, promotores e mesmo juízes. Naquela época, não havia a figura do juiz de instrução, inventada por Sérgio Moro na Lava Jato, pela qual o suspeito fica sob o jugo conjunto de promotores, delegados, juízes e imprensa. Nem se havia tornado comum o expediente odioso da delação premiada, instituto da Justiça norte-americana que reduz tudo, culpas e inocências, a dinheiro. Desgraçadamente, o STM não coíbe essa prática horrorosa.

Na minha época era eu, o processo e as testemunhas que encontrava. Como disse, jornalismo investigativo, e não jornalismo declaratório, como faz de forma absolutamente incompetente a TV Globo. Os casos que investiguei – Delfin, Coroa Brastel, Capemi – eram rastreados no limite. E houve casos, como o da Capemi, que reverti a denúncia inicial, feita por um coronel do SNI, contra o presidente da instituição, General Aragão. Não parei diante do preconceito contra generais. Provei que o General Aragão era honesto.

Agora vejo o tipo de denúncia que se faz em relação às compras de equipamentos médicos em época de pandemia. Normalmente, numa situação de crise aguda, os controles devem necessariamente ser relaxados, pois é uma questão de vida e morte atingindo milhares de pessoas. Claro que ninguém vai tolerar exageros. Entretanto, suspeito que muitas denúncias sejam vazias, porque não há tempo de apuração adequado. Os investigadores, nesses casos, funcionam como os próprios vírus, tendo uma espécie de licença para matar.

Como economista numa economia capitalista, não consigo entender o conceito de superfaturamento. Os preços são livres. As diferenças podem se dever a questões de qualidade, prazo de entrega, distância. Uma empresa foi acusada de saber qual seria o objeto da concorrência na véspera de ela ser aberta. Qual a surpresa? Com todos trabalhando em regime de urgência, justifica-se plenamente que os concorrentes tentem obter a lista de preços dos produtos que serão comprados no prazo menor possível.

A obsessão da denúncia sem investigação adequada é uma sequela da Lava Jato. Ela condenou Lula, duas vezes, sem provar nada. Claro que foi uma condenação política, o que desmoraliza todo o Judiciário brasileiro, inclusive o STM. Isso, desgraçadamente, abre as portas da Justiça para o completo arbítrio do sistema jurídico. Prende-se sem prova, usa-se um delator premiado, e pronto: inocentes são condenados, mesmo se sabendo, pela tradição ocidental secular, que não há crime sem lei que o define, nem pena sem cominação legal.

Existe um programa de tevê por assinatura, Investigação Discovery, no qual me admiram muito as histórias reais de julgamento de crimes nos Estados Unidos . Ressalta o profissionalismo rigoroso das investigações, em que investigadores e promotores só apresentam um caso concreto perante o júri se houver provas contundentes – não valendo, por exemplo, simples testemunhos ou mesmo indícios materiais do crime. Se aplicassem esse método à Lava Jato, não teriam condenado um Marcelo Odebrecht, por exemplo.

Outra coisa distorcida no sistema judicial brasileiro refere-se à doação de dinheiro a parlamentares por particulares com financiamento de caixa dois. Em primeiro lugar, caixa dois não está tipificado como crime. Ninguém deveria ser condenado por ele. Em segundo lugar, o financiamento de campanhas fora do caixa dois só é crime se a polícia ou o promotor provar que houve uma contrapartida da parte do parlamentar. Certo, eu sou radicalmente contra o financiamento privado de campanha. Contudo, isso precisa ser colocado na lei.

P.S. Nesta sexta-feira (15), às 19h, iniciaremos a série de videoconferências “O Brasil visto por dentro”, dirigida principalmente a parlamentares. Os links serão enviados por zap, a partir de 16h. A primeira tratará, entre outros temas, da política assassina de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes em relação à pandemia do coronavírus, com a virtual destruição da autonomia federativa pelo esmagamento financeiro dos Estados. Será provado que, em lugar de dever à União, Estados e Municípios tem um crédito de mais de um trilhão de reais junto ao Governo federal, suficiente para um ataque eficaz ao vírus e a retomada da economia.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.