Por Igor Mendes –
Pretender ressocializar alguém por meio da privação da liberdade é o mesmo que um corredor se preparar deitado para uma maratona.
O artigo a seguir é o prefácio escrito por Igor Mendes para o livro “O sistema prisional: o labirinto da punição” organizado por Marco Mondaini
Dante, na descida ao inferno, alertava: “A trilha pela qual descíamos era tão rude, tão desprovida de encantos, que a todo olhar causaria assombro”. Falar do sistema prisional é ousar descer por tais trilhas desditosas, em cujos labirintos de punições (e solidões) penam milhões de brasileiros, pertencentes ao penúltimo degrau de nossa perversa escala social – penúltimo, sim, pois ao menos ainda vivos.
Pode-se discutir as prisões isoladamente, sem dúvida, e isso tem sido feito, não apenas no âmbito acadêmico, mas também no mainstream, em séries e filmes de apelo crescente, com diferentes níveis de comprometimento com a realidade. Sua gestão, prenhe de negociações e conflitos; os rituais de despersonalização que as caracterizam; a superlotação; o isolamento solitário, que é uma espécie de prisão ao quadrado; as agruras; a solidariedade e a falta dela; as rebeliões: são mesmo um inesgotável material a ser decifrado.
Pode-se discutir a prisionização, fenômeno verificado (e sentido) por todos aqueles que mantém contato com o cárcere, e que refuta o âmago da ideia liberal de “ressocialização” através do cativeiro; longe de educar o interno para a vida em sociedade, enreda-o cada vez mais nas teias da sociedade carcerária, uma vez que:
“A estrutura penitenciária e os processos sociais nela inseridos atuam reciprocamente, criando uma força social determinante, capaz de alterar os aspectos sócio psicológicos de seus membros, condicionando suas atitudes conforme os valores da vida carcerária.”[1]
Em suma, pretender ressocializar alguém (sem entrar no mérito de quais são os valores tidos como inerentes a toda a sociedade, eles próprios historicamente determinados) por meio da privação da liberdade é o mesmo que um corredor se preparar para a maratona, deitado.
Retira-se alguém do convívio em sociedade, com o discurso de que esse é o meio pelo qual este sujeito pode ser reinserido. Convenhamos, isto não é ridículo? Mas este discurso ridículo ainda é, adentrado o século XXI, a única justificativa do encarceramento em massa. Uma espécie de pinguela argumentativa, na qual não acreditam nem mesmo (diria até que muito menos) os seus agentes diretos. Ideologia, aqui, conta, e muito: em plena pandemia, mesmo com a queda dos registros de ocorrências policiais, a população carcerária aumentou cerca de 7,6%, segundo o Conselho Nacional de Justiça (de 885.195 pessoas encarceradas em 2020, saltamos para 919.651 em 2022).[2]
Nem mesmo a instituição das audiências de custódia foi capaz de reverter a tendência geral de expansão do punitivismo penal. E como poderia, se os juízes (isto é, a sua concepção de mundo) são os mesmos, se a sanha persecutória é a mesma, se o inimigo público — preto, pobre, favelado — é o mesmo? Aqui, mais do que os códigos, trata-se de uma verdadeira cultura de segregação, que têm já profundas raízes, infensas a reformas pontuais[3].
Mas o fato é que o sistema prisional é algo mais amplo do que discutir a prisão. Porque o sistema prisional abrange as condições econômico-sociais que empurram milhões de brasileiras e brasileiros para o trabalho precário e informal, que tem na economia marginal um dos seus tentáculos mais lucrativos; a cultura do bangue bangue e da violência cega, importada do vizinho do Norte tanto quanto o Twitter, os massacres nas escolas e a nova extrema-direita ultraneoliberal; o ciclo vicioso de abandono e esfacelamento familiar que atinge as crianças cujos pais e mães cumprem pena; a falida guerra às drogas, uma espécie de história sem fim macabra, cuja ferocidade assassina não é crise, mas método; as filas diante dos presídios masculinos; a sua ausência diante dos presídios femininos. Lista que não acabaria, uma vez que discutir o sistema prisional é discutir, enfim, a própria sociedade que constrói as prisões.
Sem dúvida, o livro “Sistema prisional: o labirinto da punição. Reeducação falha e controle social da pobreza”, organizado pelo professor Marco Mondaini, que o leitor tem em mãos, apresenta uma grande contribuição para esta discussão cada vez mais (tragicamente) relevante para a compreensão do mundo e do Brasil contemporâneo. A realidade pernambucana — cujo programa “Pacto pela Vida” foi em certa época apresentado como modelo de segurança pública, diga-se de passagem, como também as malfadadas Unidades de Polícia Pacificadora cariocas — é destrinchada a partir de uma análise minuciosa, de fatos e de dados, sem perder de vista a sua inserção no quadro histórico-universal. Longe de uma colcha de retalhos, inofensiva descrição fenomenológica a que não raro se vê reduzido o que se pretende o pensamento crítico de nossos dias, temos uma sólida visão de conjunto, que integra as problemáticas relativas ao cárcere pernambucano no contexto mundial, latino-americano e brasileiro.
Um exemplo. Somos informados, por exemplo, no capítulo 7, intitulado “Acesso ao trabalho pelos egressos do sistema prisional de Pernambuco: embates entre direito social e exploração do capital”, de Glauciene Farias Rocha e Fabíola Araújo, que dos quase 15 mil egressos atendidos no Patronato Penitenciário de Pernambuco (PPP), instituição que deveria zelar, dentre outras coisas, pela sua reinserção no mercado de trabalho (como estratégia crucial para diminuir a reincidência criminal), apenas 1.485 exercem alguma atividade laboral, isto é, menos de 10% do total de pessoas cadastradas. Quanto ao pessoal responsável pelo acompanhamento de milhares de egressos, descobrimos, no capítulo 8, intitulado “Um estudo sobre o trabalho dos setores psicossocial e educacional do Patronato Penitenciário de Pernambuco”, de autoria de Clécia Pereira da Silva, Daiana Ferreira de Almeida, Jayane Estefany da Silva Lima, Vanessa Vitória da Silva Pina e Sara Helen de Almeida Lima, que na unidade do PPP de Petrolina há apenas dois funcionários (um advogado e um policial penal, este na condição de gestor), e, na de Caruaru, três (uma coordenadora formada em Recursos Humanos e dois assistentes administrativos).
Esses números explicitam que não há qualquer interesse do Estado brasileiro (nada nos faz crer que Pernambuco seja uma exceção) na efetiva recuperação dessa população carcerária dos abismos da marginalização.
Independentemente do empenho de funcionários singulares — eles existem, assim como advogados, defensores públicos, magistrados, assistentes sociais, psicólogos, professores, e seu trabalho é digno de apreço, pois cada pessoa resgatada de um calabouço vale o empenho — constata-se que a engrenagem é feita para não funcionar. O papel da prisão é tirar de circulação os sujeitos indesejáveis, a “escória”, o “povo do abismo” — como dizia Jack London no seu belo livro sobre os “dejetos sociais” da industrialização de Londres, no início do século passado — e ponto.
O problema, insolúvel para essa perspectiva, é que esses “excedentes” são cada vez mais numerosos (e ameaçadores). Daí que seja necessário aumentar mais e mais o aparato de vigilância, ao ponto de já não ser mais tão nítida como outrora a fronteira de presos e não-presos, como provocam Negri e Hardt[4].
Ao fim e ao cabo, como “reinserir”, e onde, os que sempre estiveram à margem? Mais realistas parecem os próprios presos, num dos cujos provérbios, desses que são repassados de galeria em galeria, sintetizam a sua sina: “Cadeia é igual ímã, atrai mais cadeia”.
Na verdade, uma das reflexões mais importantes a que o estudo do cárcere nos obriga é sobre o caráter de continuidade das arcaicas estruturas de opressão brasileiras. Nascemos, de fato, como uma prisão de proporções continentais, fundada sobre os cascos dos navios negreiros, e também sobre a escravização e holocausto dos povos originários. O latifúndio foi o primeiro cárcere do Brasil, local onde a autoridade do donatário não tinha limites, onde se verificavam lado a lado, mutuamente condicionados, a disciplina para o trabalho e o suplício. Finda a escravidão legal, permaneceram as amarras econômicas e culturais, a fome de terras de um lado, a fome de braços de outro, num cabo de guerra que desembocou no inchaço das grandes cidades, com o seu cortejo de iniquidades, e na brutal concentração fundiária de nossos dias. Falando da Europa e dos Estados Unidos do final do século passado, Loïc Wacquant dizia que:
“À atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um tem como contrapartida direta e necessária a grandeza e prosperidade insolente do outro.”[5]
É certo que, nos países capitalistas centrais, o momento do grande confinamento coincide com o desmanche do Estado de bem-estar social, mas esta fórmula — como, de resto, todas as outras — não pode ser aplicada a uma realidade periférica como a nossa sem as devidas mediações: afinal, quando foi que houve no Brasil o tal Estado de bem-estar social? Foi durante o regime militar — Estado de bem estar com generais no comando, torturas, censura prévia, ausência de liberdade sindical e direito de greve, Doi-Codi? Foi a partir da Constituição de 1988 — logo marcada pela eleição de sucessivos governos comprometidos com a “desestatização”, “desregulamentação”, “livre comércio” e, no âmbito penal, com a criminalização constante da pobreza, de que exemplos característicos são a nova lei de drogas, o uso indiscriminado das Forças Armadas em funções de polícia, a progressão geométrica de encarcerados, a manutenção do infame instituto dos autos de resistência? Sem dúvida, há uma tendência mundial a ser analisada, mas há algo muito brasileiro — perversamente brasileiro — quanto à cor da pele, localização geográfica e condições sociais dos nossos encarcerados. Se o princípio de less elegibility, consagrado na “Lei dos Pobres” inglesa de 1834, estabelecia que as condições nas casas de trabalho deveriam ser piores do que as piores condições do trabalho livre, devemos olhar com cuidado em que situação vivem os trabalhadores brasileiros dos quais se recrutam os condenados — e também os desaparecidos e assassinados — de daqui a pouco. Há, ainda entre nós, um sistema penal subterrâneo, que não acabou com a redemocratização, que segue produzindo julgamentos e interrogatórios, bem como cemitérios, clandestinos, atrelados a diferentes facções do tráfico e das “milícias”, com envolvimento sistemático de agentes públicos[6].
Verificaremos que, para nós, talvez a fórmula analítica não seja a de uma integração subalterna ora perdida, mas o aprofundamento radical de uma constante (e estrutural) espoliação. Situação essa que reclama como resposta não a recolocação de um pacto que nunca houve, mas a quebra de seculares cadeias, em sentido metafórico e efetivo.
(*) Igor Mendes é professor e escritor. É autor de A pequena prisão (2017), Esta indescritível liberdade (2020) e Junho febril (2023).
Notas:
[1] Lobosco, Fábio. “Prisionização: múltiplos aspectos da assimilação prisional”. Disponível em: https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/985/R%20DJ%20Pris
[2] Conferir o capítulo 5 do presente volume, intitulado “Pernambuco na onda punitiva: a contribuição do Programa Pacto Pela Vida na ampliação do encarceramento em massa no estado e na piora das condições do sistema prisional e socioeducativo”, de autoria de Glauciene Farias Rocha.
[3] Terry Eagleton, ao discutir o velho tema da dialética de natureza e cultura, bem assinala: “É mais fácil extirpar ervas daninhas do que o sexismo. Transformar toda uma cultura seria muito mais trabalhoso do que represar um rio ou arrasar uma montanha. Nesse sentido, pelo menos, a natureza é uma matéria bem mais tratável do que a cultura”. (Eagleton, Terry. “A ideia de cultura”, ed. Unesp, p. 136). Por isso, só podemos encarar com ceticismo a recente revisão da lei de drogas votada no Supremo Tribunal Federal, que guarda à autoridade policial a interpretação sobre uma situação em que se configura tráfico ou porte de maconha para consumo próprio. Oras, com qual olhar (ideologia, cultura) ela o fará? Nesse caso, vale menos o código, do que o sujeito ao qual ele será aplicado — como, de resto, em tudo que diz respeito ao Direito.
[4] “Há certo tempo, a prisão, separada da sociedade, era a instituição de vigilância total, na qual os reclusos eram constantemente observados e suas atividades eram registradas; atualmente, no entanto, a vigilância total é cada vez mais a condição geral da sociedade”. (Negri, Antônio; Hardt, Michael. “Declaração — Isto não é um manifesto”. N-1 edições, p. 33).
[5] Wacquant, Loic. “As prisões da miséria”, ed. Zahar, p. 53.
[6] Referindo-se aos regimes militares latino-americanos, em seu clássico estudo “O inimigo no direito penal”, E. Raúl Zaffaroni diferencia sistema penal paralelo e clandestino: “Quanto aos dissidentes, foram implementadas duas formas de exercício do poder punitivo, traduzidas num desdobramento do sistema penal: um sistema penal paralelo que os eliminava mediante detenções administrativas ilimitadas (invocando estados de sítio, de emergência ou de guerra que duravam anos) e um sistema penal subterrâneo, que procedia à eliminação direta por morte e ao desaparecimento forçado, sem nenhum processo legal”. Ed. Revan, págs.50-51.
IGOR MENDES é professor e escritor. É autor de A pequena prisão (2017), Esta indescritível liberdade (2020) e Junho febril (2023).
Publicado inicialmente no Opera Mundi. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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