Por Wander Lourenço –
“A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão; viu.”
Como se observa nos versos em epígrafe, ao escrever a letra da canção “Apesar de você”, o compositor Chico Buarque de Hollanda se utilizou do recurso da interlocução com o regime tirânico e sangrento do período ditatorial brasileiro, a fim de que se dirigisse uma mensagem metafórica aos mandatários forjados pelo golpe de Estado de 1964. Embora, à primeira vista, olvidando-se do contexto histórico, o recado / monólogo se refira, basicamente, à voz feminina queixosa pelo abandono e opressão numa relação familiar conturbada e conflituosa, em 1970: “Hoje, você é quem manda / Falou ‘tá falado / Não tem discussão”, por detrás da menção ao conflito conjugal se desenrolam críticas atrozes ao regime antidemocrático, que subjugava o Brasil aos exílios e torturas dos porões do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Confesso que, nesta crônica corriqueira, eu até fiquei seduzido a me habilitar à estratégia buarqueana para propor um diálogo entre o emissário (sociedade) e o receptor (Governo de Estado), no contexto contemporâneo; entretanto, por ausência de habilidade retórica “para tirar efeito igual ao jogador”, creio que irei me expressar sem os subterfúgios discursivos do mestre Buarque de Hollanda, para retratar um comentário do governador Sr. Cláudio Castro que, em relação ao presidente da República Federativa do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, se sentiu o próprio “Patinho Feio” da fábula infantil, excluído e solitário, no G20, que se realizou no município carioca, em nítida predileção pelo seu direitista de estimação, o alcaide Eduardo Paes, que, quiçá, por pura implicância, paparicou demasiadamente o presidente francês Emmanuel Macron, desafeto declarado de Jair Bolsonaro e também ao que parece da carne bovina proveniente do agronegócio pátrio.
Como o veto francófono e por tabela da União Europeia ao bumba meu boi nacional pode vir a ser assunto para outra crônica ou artigo; e, por sinal, não vem ao caso enfiar dilemas do Mercosul em assunto alheio, retornar-me-ei ao tema central, pois que, a princípio, a exclusão estratégica da figura do governador Cláudio Castro pode vir a ser explicada pela sua (dele) opção ideológico-partidária de adesão à candidatura de Jair Bolsonaro ao maior cargo executivo nas eleições de 2022. Não obstante, ainda que haja o distanciamento cronológico entre a década de 1970 e a contemporaneidade, alguns aspectos deflagrados pela ausência de justiça social devem ser levados em consideração, entre o passado opressor da ditadura militar e a atual conjuntura sócio-política e econômica da antiga capital do país, o que, de fato, a meu ver, justificaria a posição de Lula em relação ao Patinho Feio; digo, ao governador Cláudio Castro.
De acordo com a Folha de São Paulo, o Rio de Janeiro, apesar de representar o segundo Produto Interno Bruto (PIB) da federação, amarga a maior taxa de desemprego entre as unidades do Sul/Sudeste; e, atualmente, o quinto pior lugar de desocupação da República.
De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o nível de desemprego será menor apenas do que Pernambuco (10,5%), Bahia (9,7%), Distrito Federal (8,8%) e Rio Grande do Norte (8,8%). No bojo deste quadro estatístico aberrante e desanimador – e muito provavelmente por esta razão específica –, o alto índice desemprego atávico e abissal deságua no pântano da criminalidade e da violência urbana, que explode, a olhos nus, em todo território assolado pelas facções do narcotráfico, pelos grupos de milicianos e ainda pelas narcomilícias que, recentemente, nos surgiram como um fato novo na história da bandidagem regional.
Diante do fogo cruzado entre marginais fortemente armados de fuzis e inteligência, as organizações criminosas, que adentram orçamentos das prefeituras da Região Metropolitana, impossibilitam quaisquer espécies de investimento nas áreas sociais – Educação, Saúde, Cultura, Moradia, Saneamento etc. O fato é que, em todo este cenário de guerrilha, a população do Estado do Rio de Janeiro se tornou refém do sequestro de sua dignidade humana. Neste processo de aprisionamento mais do que territorial, que nos oprime e cerceia o direito fundamental do livre arbítrio, impossibilita-nos o exercício de cidadania mais elementar – o da sobrevivência –, sem perspectiva de ressocialização por intermédio das políticas públicas, abortadas pela inépcia e pela incompetência das autoridades de plantão (em regime de escala 6X1?), em que a mais-valia se esvai pelo ralo capitalista do subemprego oriundo do crime organizado, que ceifa vidas e sonhos atirados nas valas negras da realidade social fluminense.
Nesta ambiência de fragilidade física e psicológica, como se não bastasse a insegurança pública que se baseia no matar ou morrer por parte das autoridades, quando a bala perdida se forja como cartão de visitas estadual, o sucateamento por vias corruptas da Saúde e da Educação se deflagra escancaradamente, como se viu no episódio da deposição do ex-governador Wilson Witzel e das bolsas-fantasma da UERJ, escândalo que precisa ser apurado, com a máxima urgência, como resposta à sociedade que não aplaude o fisiologismo estapafúrdio e inescrupuloso com fins eleitoreiros, que nos assaltou, à urna armada, em primeiro turno nas eleições do pleito democrático(?) ao cargo de maior relevância no âmbito estadual.
Enfim, por estas e outras razões, o presidente Lula se afastou da presença do governador Cláudio Castro, por precaução política ou profética, haja vista que, deveras, tenha obtido a nítida convicção de que não há a mínima hipótese do Patinho Feio se transformar no Cisne belo e encantado do conto de fadas, mesmo que, decerto, amanhã seja outro dia e o jardim da resistência (e da esperança) há de florescer qual você não queria…
WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. PhD em Literatura Comparada pela Universidade Clássica de Lisboa; pela PUC-GO; e pela UFMG. Doutor, mestre e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Produtor e diretor do documentários “Carlos Nejar, o Dom Quixote dos Pampas (2015); “Nélida Piñon, a Dama de Pétalas” (2017); e o “Cravo e a lapela: biografia de Ricardo Cravo Albin” (2021). Livros recentes: Escrevinhaturas – Poesia / Editora Elefante-SP (2022); e A República do Cruzeiro do Sul – Romance histórico / Editora Almedina (2023).
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