Por José Carlos de Assis

Em qualquer economia capitalista só existe investimento, e, portanto, remuneração do capital, se existir demanda. E demanda só existe se a parte da sociedade que não é capitalista, basicamente os trabalhadores, comprar os bens e serviços vendidos pelo capitalista. Esse conceito é intuitivo. Entretanto, está na essência de muita confusão feita na análise do capitalismo, simplesmente porque as pessoas não conseguem enxergar que trabalhador e capital partilham um destino comum contraditório, um dependendo do outro.

A pobreza ideológica dos neoliberais não os deixa ver o óbvio, ou seja, a íntima interdependência do capital e do trabalho. Seus formuladores propõem fortes reduções dos salários em nome da diminuição dos custos trabalhistas, esquecendo –se de que cortar salários no plano microeconômico significa cortar demanda no plano macroeconômico. Nesse caso, o corte recai exatamente no investimento, afetando a acumulação do capital. É o capital atirando no próprio pé, desencadeando um processo potencialmente recessivo da economia.

O momento atual constitui um choque de baixa demanda no Brasil, com grande risco para o investimento e a acumulação do capital. A demanda está desabando e, com ela, o investimento. Não adianta tentar resolver a equação pelo lado do investimento porque não existe demanda para acompanhar a nova produção. A única solução possível é pelo lado da demanda. E é justamente pelo lado do investimento que a pobre equipe de Paulo Guedes quer atacar a crise brasileira, especialmente quando fala numa perspectiva de médio e longo prazo.

No curto prazo, o Ministro teve que ceder a pressões para liberar benefícios. Foi um cabo de guerra com o Congresso Nacional, que forçou o aumento emergencial. Contudo, é evidente a má vontade de Guedes em relação ao longo prazo. Provavelmente ele dá suporte a Bolsonaro para anunciar, como já fez, o fim dos benefícios na medida de uma redução da pandemia, mesmo que em situação prematura. Um secretário do Ministério da Economia também fala abertamente em cortar benefícios. Bolsonaro apenas repete os conceitos.

Entretanto, o que podemos dizer, em termos práticos, sobre o gerenciamento econômico da situação pós-pandemia? A questão central, obviamente, é o problema de financiamento da demanda – inclusive os benefícios na escala exigida pela sociedade -, e do investimento, de forma paralela. Há décadas que esse problema está resolvido. Um grande economista russo-britânico, Abba Lerner, formulou a teoria numa forma com que os economistas progressistas norte-americanos impressionou aos próprios ortodoxos.

O conceito básico reflete Keynes, com sua proposta de ampliação da demanda efetiva nas crises de derrocada do consumo. Entretanto, é mais refinada. Um economista brasileiro ortodoxo, André Lara Resende, resumiu num artigo para o “Valor”: “uma economia que emite a própria moeda não tem limites de emissão monetária e de dívida até o esgotamento de sua capacidade ociosa”. Se há capacidade ociosa na economia, como é o caso do Brasil depois de cinco anos de recessão, pode-se investir com recursos públicos sem medo de inflação.

Bem antes do artigo de André traduzi para o português, em meados dos anos 80, “Understanding Modern Money”, um livro basilar de um dos principais formuladores da teoria, L. Randall Wray. Infelizmente não houve maior repercussão no Brasil. Ficamos no ritmo de tartaruga do neoliberalismo radical, com suas prédicas ideológicas de estado mínimo, privatizações de estatais estratégicas como Petrobrás e Eletrobrás, privatização da água, tudo financiado pelo próprio Governo sob a rubrica hipócrita de investimento público-privado.

Se a imprensa ajudasse, sobretudo a imprensa escrita, talvez pudéssemos ter uma discussão mais aberta e democrática sobre financiamento público deficitário, sobretudo o financiamento público em tempo de pandemia. Isso ajudaria a quebrar os preconceitos contra o gasto público em geral, como uma ponte para o financiamento mais generoso dos benefícios do tempo de crise e, como contrapartida, para o financiamento também dos investimentos empresariais, indispensáveis para colocar a economia para funcionar depois do coronavírus.

Foi para tratar dessas questões que escrevi e lanço amanhã “O mito sem máscara – O antigoverno de ódio de Jair Bolsonaro”, via internet. O foco central do livro é a indicação de Finanças Funcionais como esteio para o relançamento da economia na pós-epidemia. Paralelamente, mostro que o principal obstáculo ao relançamento são as relações da União com Estados e Municípios, condenados há décadas a um endividamento secular junto ao Governo central.

De fato, num estudo feito, constatei que, no lugar da dívida gigantesca que se atribuía a Estados e Municípios, estes entes federados na verdade são credores junto ao Governo federal, num montante de R$ 1,380 trilhão de reais. É muito dinheiro. Com ele Estados e Municípios podem contribuir decisivamente para combater a epidemia e promover crescimento econômico no Brasil na escala do New Deal dos anos 30 nos Estados Unidos.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.