Por Kakay

“Só uso a palavra para compor meus silêncios.”

–Manoel de Barros

Para qualquer pessoa, saber responder na hora, quando indagado ou provocado, é importante; para o advogado criminal, especialmente em casos de júri, é fundamental. Faz parte da profissão mesmo. Lembro-me de que, desde menino, eu gostava de cantar repentes no interior e, nesses embates, você escuta o verso do outro e tem que replicar de bate-pronto. Passávamos horas brincando de provocar e retrucar as provocações. Tempo bom aquele sem WhatsApp e sem televisão.

Quando estudante de direito na UnB, tinha só 1 par de sapatos. Lindo, tinha uma treliça charmosa. Eu o usava, claro, para tudo e o tempo todo. Ia em casamento, à universidade, para festas e até jogava futebol de salão com ele. O de campo, eu enfrentava descalço. Um dia, minha futura sogra, pessoa sensível, amiga e brilhante, perguntou-me, cuidadosa:

“Meu ex-marido –que havia falecido precocemente pouco antes– tinha ganhado de presente muitos pares de sapatos. Eles ainda estão nas caixas. Você se importaria se eu te desse?”

Eu, feliz da vida, nunca fui pobre soberbo, imediatamente aceitei. Aí veio uma questão: “qual número você calça?”. Pensei que poderia estar jogando fora a chance de ter um calçado novo. Respondi, de bate-pronto: “de 37 a 43 certamente serve!”. Ganhei 12 pares.

Quando da divisão do país, entre democratas e fascistas bolsonaristas, o Brasil se radicalizou. Nos grupos de familiares e de amigos antigos da adolescência, era comum uma resposta rápida e, às vezes, grosseira dar ensejo à saída de pessoas dos chats. Eu mesmo escrevi, várias vezes, que não era possível sentar-se à mesa com um fascista e que era fundamental todos nós nos posicionarmos.

Deixei grupos, bloqueei pessoas e retruquei, de supetão, às provocações rasteiras de indigentes intelectuais ou de fascistinhas mesmo. Os lados eram muito definidos numa luta aberta da barbárie contra a civilização. Os argumentos para defender a Constituição, a democracia e os direitos humanos estavam sempre na ponta da língua.

Agora, nessa guerra miserável e estúpida, mais uma vez, o mundo se fragmenta. As pessoas entram em conflito aberto e começam a voltar a deixar os grupos e a discutir com ares agressivos e passionais. As respostas às provocações saem como tiros de fuzil e a sensação é de terra arrasada.

Confesso que, no início, eu julgava ter um lado, pois todos nós temos. Parece óbvio que, sem o fim das ocupações ilegais do território palestino, o mundo não conhecerá a paz naquela região. A Faixa de Gaza, que antes era a maior prisão a céu aberto da história, está se transformando num cemitério de crianças, mulheres, civis e inocentes. Nem sequer têm direito a um enterro digno. Aético e injusto.

A essa altura, falar em direito de defesa, mesmo depois do covarde e traiçoeiro ataque do Hamas –um grupo criminoso que tem como objetivo declarado o extermínio do povo judeu–, o qual não pode ser minimizado e que lamentavelmente vitimizou centenas de inocentes, além de ainda estar promovendo torturas, estupros e sequestros de cidadãos, é ofender a inteligência alheia e zombar das dores indizíveis provocadas pelo massacre que toma ares de genocídio. Tudo sob a complacência cúmplice e criminosa dos organismos internacionais.

A crueldade deliberada das mortes, das torturas, da miséria e do massacre nos tira a capacidade de raciocínio e de resposta. Em vários grupos dos quais faço parte, questionam-me, no privado, a falta dos meus contrapontos sempre cortantes e firmes –nem sempre certeiros. Confesso que a falência da humanidade provocou em mim um efeito avassalador.

Estou fugindo das imagens das crianças mortas, famintas e feridas. Assim como me fixo na tela do WhatsApp ao passar pelos milhares de brasileiros dormindo nas ruas de São Paulo. Viramos, em grande parte, fingidores contumazes. Como nos ensinou Fernando Pessoa:

“O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.”

Covardes e envergonhados com a nossa própria omissão. A engrenagem que alimenta a guerra –os bilhões de dólares que brotam, do nada, para manter a barbárie– me parece muito distante do mundo que me acolhia.

Esse negócio tem como combustível um discurso de respeito aos direitos dos povos que, na verdade, não se sustenta. Mas a belicosidade é tal que, uma resposta dada com a rispidez, às vezes necessária, só abre mais um fosso. E, depois, mais outro e outro.

De fosso em fosso, caminhamos para o impasse que mantém o conflito. O homem já desistiu dele mesmo; os animais costumam ter mais critério e até piedade.

Em algum lugar, tem uma mãe chorando um filho, ou um filho que não sabe sequer com quem contar, pois perdeu tudo e todos. A devastação é absoluta. E parece que neva e faz muito frio dentro dos que ainda sofrem e não sabem se as respostas peremptórias devem mesmo ser dadas.

O silêncio dos impotentes nem sempre é um sinal de covardia. É um desespero por não encontrar forças para assumir um lado e partir contra o outro. Com os bolsonaristas fascistas era fácil. Essa guerra está sufocando a todos e matando não só a esperança, mas o que de humano restava em cada um de nós.

No entanto, nesse contexto lamentável, uma lembrança ainda me traz esperança. Há muitos anos, fui visitar, pela 3ª vez, Israel. Dessa vez, com o cantor Roberto Carlos. Ao fazer um pouco de turismo, optei por ir a Belém. Contratei uma guia judia que me levou até os portões da cidade. A partir daí, eu passaria pelo controle de passaporte e seria levado à presença da autoridade palestina.

Conversando com a guia, soube que ela, havia mais de 15 anos, trabalhava em parceria com a guia palestina, do lado de Belém, mas que nunca haviam se encontrado, salvo por telefone. Depois de 40 minutos de negociação, convenci as duas a se encontrarem. Foi lindo. Abraços fraternos. Choros de emoção. Paz, enfim.

Depois de conversas. De vontade de ouvir. De espíritos desarmados. Amparo-me no grande Mia Couto:

“Encheram a terra de fronteiras,
carregaram o céu de bandeiras,
mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.”

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 65 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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