Por Roberto Amaral

“O socialismo não é um fim imanente à sociedade e à sua história, mas um fim que os próprios homens elaboram, sujeito a se realizar ou não. Se as condições objetivas impessoais são, num grau variável, determinadas e determinantes, a realização dos fins, a que os homens se propõem, inclusive do fim socialista, estará sempre sujeita à indeterminação, dependente da luta dos próprios homens.” – Jacob Gorender, Marxismo sem utopia

Historiador original, escritor prolífico, cientista social, intelectual orgânico na melhor acepção gramsciana, comprometido a vida toda com os interesses da classe trabalhadora, Jacob Gorender figura entre os mais destacados pensadores brasileiros do século XX. Sua bibliografia se encontra na mesma prateleira que guarda as obras de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e mais uns poucos, contados nos dedos de uma mão. Ao lado de Caio Prado Júnior, pioneiro na interpretação dialética da história social brasileira, e de Florestan Fernandes, fundador da sociologia crítica do Brasil, destaca-se como um dos nossos principais teóricos marxistas, e dos mais criativos, porque certamente, na sua maturidade, o menos ortodoxo.

Em comum, Caio, Gorender e Florestan, percorrendo experiências existenciais distintas, associam a alta especulação e a pesquisa científica à ação militante. Todos marxistas, os dois primeiros vinculando-se ao Partido Comunista Brasileiro, Gorender lançando-se à ação revolucionária direta, e Florestan dedicando-se a uma das mais brilhantes carreiras acadêmicas de nosso país, desenvolvida fundamentalmente na USP.

Todos conheceram a repressão. Os três tiveram seus direitos políticos cassados pelo regime militar instaurado no infame 1º de abril de 1964. Nenhum, porém, permitiu que a repressão, em qualquer momento, tolhesse a militância, o comprometimento histórico ou a produção intelectual. Deixaram obras que merecem o epíteto de primas.

A principal contribuição científica de Jacob Gorender revela-se no estudo de nossa formação, ao superar a disjuntiva feudalismo versus capitalismo na interpretação do modelo econômico do Brasil Colônia-Império, modelo que, nos seus estertores, chega à república sereníssima preso à lavoura e ao extrativismo, ainda como economia agroexportadora. A ciência deve-lhe a identificação de um modo de produção inteiramente novo e específico, o escravismo colonial, com o qual avança sobre as formulações anteriores de Alberto Passos Guimarães (feudalismo), Nelson Werneck Sodré (modo de produção escravista, segundo os parâmetros do escravismo clássico) e de Caio Prado Jr., que, ao introduzir na análise as categorias do materialismo dialético, distingue, em sua obra seminal (Formação do Brasil contemporâneo, de 1942), o caráter já capitalista do processo colonial brasileiro. Afasta-se de Roberto Simonsen, que enxergara os ciclos dos produtos de exportação como épocas ou sistemas econômicos e neles identificava a estrutura exportadora da economia nacional.

Após lembrar que o escravismo colonial não pode ser visto como invenção arbitrária, fora de qualquer condicionamento histórico, afirma-o como fenômeno específico de nossa experiência que surgiu e se desenvolveu “dentro de determinismo socioeconômico rigorosamente definido no tempo e no espaço”. Desse determinismo é que o escravismo colonial teria emergido “como um modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana” (O escravismo colonial, 1978).

Jacob Gorender saiu de um cortiço de Salvador (onde nasceu em 20 de janeiro de 1923) para a Faculdade de Direito da Bahia, cujo curso abandonou em 1943 para, como voluntário, integrar a Força Expedicionária Brasileira e lutar na Itália contra o fascismo. No regresso se reintegra ao Partido Comunista Brasileiro de sua juventude, onde viveria uma longa trajetória de militância revolucionária. Enfrenta o macartismo caboclo que traz para o Brasil a Guerra Fria na sucessão do conflito mundial, e, com ela, a cassação do PCB, a repressão policial, as prisões e a clandestinidade, que voltaria a purgar após o golpe de 1964. No “partidão” (onde chegaria ao Comitê Central) permanece até 1967, quando, com Mário Alves e Apolônio de Carvalho, entre outros, é expulso da legenda por divergências que se vinham acumulando e que se tornariam insuportáveis após o VI Congresso: desencontros profundos sobre estratégia e tática, fundamentalmente sobre o caráter da revolução brasileira. Numa tentativa de resumo pode-se afirmar que o embate se centrava em duas desilusões: a descrença numa via pacífica para a conquista do socialismo, e a descrença numa aliança com a chamada burguesia nacional. Em artigo de 1960 (Estudos Sociais, nº 9), Gorender enfatizava o papel do proletariado na liderança da “revolução nacional e democrática” – em antagonismo com a linha do “partidão”, a pleiteada aliança com a burguesia nacional -, e já dissertava que a revolução brasileira provavelmente conheceria a luta armada.

Veremos, adiante, que reconsiderará o papel do proletariado na revolução socialista.

Em 1970, com Mário Alves e Apolônio de Carvalho, participa da fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário-PCBR e se dedica à luta contra o regime militar, pela via que naquela altura lhe parecia mais consequente. É nessa contingência que começa nossa amizade, por intermédio de Aytan Miranda Sipahi, que me levara, com Valton Miranda Leitão, a acompanhá-los na aventura (que então não supúnhamos quixotesca) de tentar construir uma organização comunista realmente revolucionária. Fracassamos todos.

Sem lograr o que fosse de positivo na luta contra a ditadura, o PCBR foi destruído pela repressão que sobre ele se abateu de forma implacável. Toda sua direção e grande parte de seus quadros foram encarcerados. Jacob, Apolônio e Aytan foram presos, torturados, julgados pelos tribunais militares e condenados. Mário, empalado, foi assassinado nas dependências do Quartel da Polícia do “exército de Caxias” no Rio de Janeiro. Familiares e amigos ainda procuram seu cadáver.

Com o fim de sua organização, Gorender dedica-se a pensar o Brasil; desvinculado da militância partidária, elege a militância intelectual, cuja base é a autonomia intelectual e a razão livre. Constrói obra de análise crítica engenhosa, inovadora e inevitavelmente polêmica, quando, ousadamente, discute as carências da interpretação marxista da revolução brasileira, as limitações do determinismo histórico, e põe em questão o papel revolucionário do proletariado, “ontologicamente reformista”, em suas palavras. A bagagem intelectual acumulada e a longa experiência vivida levam-no a rever muitas das posições políticas e intelectuais sustentadas ao longo da vida, a começar pelo projeto socialista brasileiro, seu conceito e os meios de conquista do poder. A maturidade impõe-lhe o império da realidade sobre o sonho. Não abjura o marxismo (o bolchevismo, sim), antes o vivifica. Ousa afirmar que “já é tempo de atualizar o marxismo”, tarefa a que se dedicará, e questiona o destino revolucionário do proletariado, bem como sua prometida ditadura. Para o Jacob Gorender desse então o socialismo deixa de ser um determinismo histórico para constituir-se em necessidade, cuja realização depende da ação dos homens. A concepção “autenticamente dialética do determinismo” requer “passar o marxismo pela prova da história”, escreveria.

Combate nas Trevas (1987), produto de oito anos de pesquisa, associa investigação e testemunho do autor, bem como suas reflexões, sua crítica e alguma autocrítica sobre a saga dos grupos da esquerda que optaram pela luta armada desde os idos antecessores de 1964 até os anos 1970, quando os focos de resistência armada são dizimados pela repressão. É, talvez, a primeira tentativa de desvelar a história das torturas e dos assassinatos praticados pelos agentes do Estado.

Em Marxismo sem utopia, escreve: “Assim como Marx e Engels apostaram no proletariado industrial, em meados do século XIX, podemos agora, às vésperas do século XXI, apostar na classe dos assalariados intelectuais. […] Se os assalariados intelectuais constituem, em nosso tempo, a classe que cresce e o faz a ritmo acelerado, em contraste, o proletariado rural e o campesinato se tornaram classes residuais, de pequena significação, nos países desenvolvidos, e, na maioria dos demais, se encontram em declínio. Ao mesmo tempo o proletariado industrial sofre o impacto do processo de encolhimento e perda de força social. Mas os assalariados intelectuais, além de estarem em crescimento, são os detentores do fator cada vez mais decisivo no processo de produção, ou seja, o fator conhecimento”.

Este texto de Gorender é de 1999. Passados 14 anos, sua atualidade aparece acentuada pelo processo histórico, reclamando a reflexão dos que pensam o processo político brasileiro nas contingências de nosso curto prazo.

Visitar a obra de Gorender (no caso deste intelectual orgânico, vida e obra constituem uma unidade revolucionária) torna-se uma exigência quando vivemos perigosamente carentes de reflexão à esquerda. Sua obra e sua militância são, hoje mais do que nunca, uma boa contraposição aos liberais de todos os matizes que associam o marxismo a ortodoxia e dogmatismo, bem como aos autointitulados marxistas que, lamentavelmente, fazem exatamente isso.

Devemos a Jacob Gorender uma existência de 90 anos dedicados à libertação de nosso povo e ao culto à inteligência. Trata-se, acima de tudo, de um grande e precioso brasileiro. Na expressão de Eugenio Bucci, sua vida “foi uma prova de que a humanidade pode ser melhor do que é”. No último dia 20 passou em branco seu centenário.

(Colaboração de Pedro Amaral)

ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org

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