Por Aderson Bussinger –
Neste mês que se comemora o Dia Internacional de luta das mulheres, o já consagrado 8M, com forte presença das discussões não só de gênero, mas racial, torna-se cada vez mais oportuno retomar a memória desta luta, que se reportam a um passado muito longínquo. Ainda que não tenha na ocasião sido motivado pela questão de gênero, o Departamento de Pesquisa e documentação da OAB-RJ (Centro de Documentação e Pesquisa da seccional) iniciou no ano de 1984 um projeto com vistas a preservação da memória cartorária, em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com grande empenho dos ex-presidentes Helio Saboya e Nilo Baptista, e que teve seus trabalhos endereçados primeiramente para uma das mais antigas cidades de origem escravagista e cafeeira do Estado do Rio de Janeiro: Vassouras.
O fato é que, nesta fabulosa pesquisa, já encontramos também fortes elementos indicadores da presença feminina nas lutas contra a escravidão, como é sabido que também houve no quilombo nordestino de Palmares, o que é um traço infelizmente ofuscado na história.
Com efeito, este magnifico esforço de estudo de memória produziu muita documentação, uma profusão de registros minuciosos sobre a escravidão no Estado do Rio de Janeiro e sobretudo a luta dos escravizados, suas fugas e heroicos quilombos, com base nos exame dos antigos autos de processos judiciais tendo como réus negros, sendo o livro Insurreição Negra e Justiça, editado pela seccional da OAB-RJ, em 1987, Editora Expressão e Cultura,de autoria de João Luiz Pinaud, Carlos Otavio de Andrade, Salete Neme, Maria Cândida Gomes de Souza e Jeannette Garcia(com prefácio de Antonio Houaiss),um dos resultados mais belos e frutíferos deste trabalho de pesquisa feito há mais de três décadas, sendo, infelizmente, muito raro encontrar hoje um de seus exemplares, além do que consta arquivado na seccional ou em algum sebo escondido, quando estas lojas ainda podiam ser visitadas com frequência antes da pandemia.
Pois bem, fiz questão de fazer esta breve introdução citando esta pesquisa e histórico livro para, neste mês dedicado a luta emancipatória feminina, rememorar a figura de Marianna Crioula, cujo nome foi objeto de referida pesquisa, assim como em outras fontes, como sendo a 2ª Ré de um grupo de 16 homens e mulheres insurretos, negros e negras, que foram presos, com base no Código Criminal do Império, por liderarem revolta escrava ocorrida na região em que se encontravam cativos em 1838, uma das maiores do Estado, que ficou gravado na história como o Quilombo de Manoel Congo, o principal líder e companheiro de Marianna Crioula, que figuram nos depoimentos das testemunhas oculares lavrados nos autos do processo de captura, prisão e julgamento como sendo, respectivamente, o dois companheiros reconhecidos como o Rei e a Rainha daquele Quilombo também denominado de Santa Catarina. E consta nestes autos que a frase “morrer sim, entregar não” foi o grito de Mariana no momento em que presa pelos soldados da Guarda Nacional e milícias dos fazendeiros locais, em comentário á dificuldade de imobiliza-la.
Marianna Crioula, ex-escrava evadida da fazenda do Capitão-mor Manoel Francisco Xavier, portanto, é uma heroína do Estado do Rio de Janeiro, região de vasta influência da cultura negra, desde que os primeiros africanos escravizados aqui pisaram pela primeira vez, entrando pelas portas do Cais do Valongo, local de recepção comercial dos africanos recém-chegados. Fiz questão de escolher o nome de Marianna Crioula para falar do 8M, além da influência que me causou a leitura de referido livro, porque tenho a compreensão que, sem desmerecer nenhum das milhares de anônimos heróis e heroínas que lutaram contra a escravidão (incluindo também brancos que se entregaram a esta causa), o nome de Marianna é um símbolo pelo qual se é possível comunicar com passado escravagista na celebração e discussões em torno do 8M,dedicado a luta das mulheres, pois Mariana era não somente discriminada por ser mulher, mas também por ser escrava e aprendi que é dentro desta perspectiva que deve ser enxergada a questão a luta feminina, como de gênero e de classe, assim como ensina a ativista e filósofa americana Angela Davis, outra grande liderança negra, como Mariana ao seu tempo e modo. Sobre a luta quilombola em Vassouras, aproveito a oportunidade para anunciar que no próximo 29 de março haverá um seminário no conselho federal da OAB sobre o tema racial e, aqui no Rio de Janeiro, em 30 de março teremos também um seminário sobre a rebelião quilombola liderada por Manoel Congo e Marianna Crioula, promovidos pela Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra nacional e estadual.
Em verdade, as mulheres seguem discriminadas no sistema econômico atual, superada o regime jurídico de escravidão negra do tempo de Marianna criolla, como vítimas da moderno modelo do trabalho assalariado, em tempos de capitalismo neoliberal, que sequer contrato exige para grande parte das mulheres exploradas e o próprio salário é cada vez menor e por vezes sequer o salário mínimo legal! São trabalhadoras informais, domésticas, fazedoras de”bicos”, camelôs, cozinheiras, faxineiras, empregadas de supermercados, cuidadoras, cortadoras de cana, enfim, uma enorme quantidade de trabalhos precaríssimos nos quais as mulheres recebem os menores rendimentos e ainda são obrigadas a uma dupla jornada como mães e, parte expressiva destas são chefes de família, cuidando sozinhas dos filhos. Este é o drama de ser mulher, quando, além da histórica opressão patriarcal e assédios sexuais, convivem – parte do mesma opressão- com diferenças de tratamento no chamado mundo do trabalho que lhes convertem em mais oprimidas. E se a mulher é negra? Aí então convergem para cor da pele outros tantos grilhões, como aqueles que eram impostos a Mariana Criolla, escrava negra e mulher, guardadas as proporções de época, mas cujo conteúdo é em sua raiz duplamente opressor.
É fato que temos muitos avanços na luta das mulheres e, do ponto de vista legal, é importante citar aqui o advento da legislação trabalhista no mundo e no Brasil com o objetivo de coibir a discriminação da mulher, assim como combater o machismo e o feminicídio, este último o mais grave e horrendo crime contra a mulher.
Historicamente, o tema teve também presença na revolução francesa, sendo que a constituição França de 1791 passou a admitir a rescisão do contrato do casamento civil, ainda que com limitações. Dando um outro “pulo histórico”, sendo desta vez mais contemporâneo, é importante destacar a constituição da ex-URSS, de 1920,(o primeiro pais do mundo a assegurar o aborto legal, além do fato de que desde 1918 garantiu plenamente o divórcio aos homens e mulheres); a constituição de Weimar, na Alemanha de 1919, que estabeleceu a regra da igualdade jurídica entre marido e mulher, equiparou os filhos ilegítimos aos legitimamente havidos durante o matrimonio; as primeiras convenções sobre o trabalho da mulher elaboradas pela OIT em 1919, de índole protetivas, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, que com sua ênfase no conceito de igualdade entre os indivíduos acabou por fortalecer também as questões de gênero. Todos estas constituições e normas internacionais representaram realmente grande progresso na proteção da mulher, mas foi somente recentemente, em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, que as mulheres conseguiram especificar melhor a questão de gênero, a inclusão do seguinte dispositivo: “os direitos dos homens, das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais”, ou seja cunharam a questão de gênero não somente como uma questão de igualdade, mas com o destaque merecido, tendo em vista a opressão da mulher. E evidente que em nosso pais a Constituição de 1988, e leis como a denominada Maria da Penha são de suma importância no enfrentamento cotidiano da opressão contra baseada em fator de gênero, mas, sem luta direta das mulheres, sem tomarem as ruas( como espero que aconteça após esta pandemia), todos estes valiosos instrumentos jurídicos se convertem em letras mortas.
MAS é importante aqui citar também duas Convenções internacionais, que são, ambas, particularmente valiosíssimas para o movimento das mulheres, sendo uma a denominada Convenção Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher(Convenção da Mulher ou CEDAW) e outra a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Enfim, tem sido dados passos á frente, felizmente, apesar de toda a reação promovida por governos como o brasileiro, turco e saudita, sendo que em relação ao Brasil, por exemplo, Bolsonaro e sua Ministra dos Direitos Humanos (e das Mulheres) se posicionaram constantemente contra todas as proposições progressistas colocadas em votação na ONU sobre o temas de gênero, as vezes até mesmo simples recomendações, incluindo sua ferrenha oposição a descriminalização do aborto, educação sobre gênero, combate ao feminicídio e tantas outras questões relevantes, em um país que é tristemente conhecido por bater recordes mundiais em violência contra as mulheres.
Caminhando para o final deste texto e longe de pretender esgotar o assunto, seja por minha confessa incapacidade, seja principalmente pela sua amplitude, quero novamente chamar atenção para a figura histórica de Mariana Crioula e dizer que precisamos valorizar a luta destas heroínas, especialmente as negras, que como acima disse, foram oprimidas porque escravas e também porque mulheres. A luta feminista tem muito a ganhar e se nutrir com a história de seus antepassados, suas lutadoras, para que possamos ser mais feministas no presente, tanto homens como mulheres. O machismo, patriarcalismo, sexismo, tudo isto que integra o “DNA” cultural, político e ideológico do universo masculino, em especial, ( e eu confesso me incluir nesta mesma herança, embora tentando combater) precisa das lutas presentes, de jornadas vitoriosas como tiveram, recentemente as mulheres argentinas, mas precisa igualmente ter os olhos no retrovisor pelo qual enxergamos as mulheres que antes lutaram antes de nós, que resistiram ao longo dos séculos em condições, inclusive, muito mais precárias e difíceis que as atuais.
E Viva Marianna Crioula? Ela é 8M! E morrer sim, entregar não!
ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH da OAB-RJ, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.
MAZOLA
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