Redação

Após ser consistentemente assediada por seu chefe, o produtor de filmes de Hollywood Harvey Weinstein, Zelda Perkins assinou um acordo extrajudicial para encerrar o assunto. Ela recebeu 125 mil libras. Em contrapartida, foi submetida a diversas cláusulas leoninas.

Livro narra apuração de jornalistas do NYT

Entre elas, a proibição de falar com outras pessoas sobre o período em que trabalhara com Weinstein; a exigência de que qualquer “profissional da medicina” com quem comentasse a respeito do ocorrido assinasse um acordo de confidencialidade; a manutenção de sigilo sobre a origem do dinheiro — até para seu contador; e a vedação a contar o caso para veículos de imprensa.

Zelda não pôde nem ficar com uma cópia do contrato — quando quisesse lê-lo, deveria agendar uma visita ao escritório de advocacia que a representou.

Os acordos firmados por Weinstein com ex-funcionárias e atrizes em início de carreira foram fundamentais para descobrir os abusos sexuais cometidos por ele e por diversos outros homens poderosos da indústria do entretenimento e da política.

A história é contada no livro Ela disse — os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo (Companhia das Letras), das jornalistas investigativas do The New York Times Jodi Kantor e Megan Twohey.

No começo da apuração, em 2017, nem a fonte mais promissora — a atriz Rose McGowan — queria falar com as repórteres sobre o assédio que sofrera do produtor. Após Jodi insistir, Rose topou ter uma conversa privada com a jornalista. Ou seja, nada seria publicado, a não ser que a atriz mudasse de opinião.

Ela narrou que, após um festival de cinema, Weinstein convocou-a para uma reunião em seu quarto de hotel. Os dois conversaram sobre filmes e papéis. Porém, quando a atriz estava indo embora, o produtor a puxou para uma jacuzzi, arrancou a sua roupa e enfiou o rosto à força entre as pernas dela.

Em choque, Rose fingiu ter um orgasmo para conseguir sair deixar o recinto. Posteriormente, assinou um compromisso com Weinstein, pelo qual se comprometia a esquecer o caso em troca de US$ 100 mil.

Porém, o NYT só publicaria as declarações de Rose McGowan se elas fossem corroboradas por outras pessoas ou documentos e se o produtor tivesse uma oportunidade prévia de refutá-las.

O jornal não queria cair no erro que a revista Rolling Stone caíra em 2014 (quando publicou uma acusação de estupro em uma universidade sem provas mínimas, o que gerou processos e afundou a reputação do veículo) ou entrar em uma briga clássica da palavra dela contra a palavra dele.

Se havia um acordo, ele deveria estar registrado em algum lugar. Seria difícil encontrá-lo, mas, com o documento em mãos, ele poderia embasar o relato da atriz e mostrar que Weinstein pagou uma quantia significativa a ela para resolver a questão.

Precedente da Fox News
Havia um precedente que indicava que os acordos eram documentos-chave para se descobrir casos de assédio sexual. Algum tempo antes, o New York Times havia revelado que o apresentador da Fox News Bill O’Reilly tinha assediado sexualmente funcionárias da emissora.

Na apuração, os jornalistas descobriram que os termos dos acordos faziam com que eles não parecessem transações legais legítimas, mas maneiras de encobrir a verdade.

Por meio dos documentos, as mulheres se comprometiam a entregar todas as evidências dos abusos a O’Reilly e seus advogados. Elas não podiam ajudar outras mulheres que passaram por situações semelhantes.

Caso fossem convocadas a depor na Justiça, deveriam avisar o apresentador e a sua equipe, que poderia contestar a citação. Uma das vítimas se comprometeu a nunca fazer afirmações desrespeitosas sobre O’Reilly e a Fox News.

Se elas descumprissem essas obrigações, teriam que devolver os valores que receberam de indenização.

Estudando esse caso, Jodi Kantor e Megan Twohey perceberam que os Estados Unidos tinham um sistema para silenciar queixas de assédio sexual que, em diversas situações, mais ajudava os assediadores a prosseguirem com suas práticas do que os impedia.

No caso Fox News, os advogados das mulheres argumentavam que elas tinham boas razões para assinar os compromissos — necessidade do dinheiro, desejo de privacidade ou vontade de deixar o assunto para trás.

Afinal, a alternativa a isso era ir à Justiça. Como as leis de combate ao assédio sexual eram fracas e limitadoras (por exemplo, excluíam freelancers e empresas com menos de 15 funcionários), a exposição poderia ser dolorosa e não valer a pena — até porque o teto para indenizações era de US$ 300 mil.

Acima de tudo, os acordos eram vantajosos para os advogados — principalmente pelo lado financeiro. Nesses casos, os advogados costumavam receber apenas honorários ad exitum. Ou seja, só eram pagos se o cliente ganhasse a causa. Com os contratos, os advogados evitavam perder tempo nos tribunais sem lucrar nada e embolsavam cerca de um terço das indenizações.

O problema era encontrar mulheres assediadas por Weinstein dispostas a correr o risco de violar os compromissos, contar suas histórias e apresentar cópias dos documentos ao New York Times.

Acordos vêm à tona
Em um jantar em Londres, Zelda Perkins mostrou a Jodi Kantor trechos do acordo que celebrara com o produtor, o que deixou a jornalista em êxtase. “No jornalismo investigativo, saber da existência de documentos incriminadores é bom; ver esses documentos é excelente; ter cópias deles é ainda melhor”, escreveu no livro.

Posteriormente, Lenny Davis, um dos advogados de Weinstein, disse a Megan Twohey que o produtor havia firmado de 8 a 12 compromissos com ex-funcionárias e atrizes. Revendo seu acordo, Rose McGowan percebeu que ele não tinha cláusula de confidencialidade. Dessa forma, ela poderia enviar uma cópia às repórteres sem correr o risco de ser processada pelo produtor.

Irwin Reiter, contador de uma das empresas de Harvey Weinstein, exibiu a Jodi um memorando que a agente literária Lauren O’Connor havia enviado ao alto escalão da companhia. No documento, ela narrava como o produtor assediara ela e outras mulheres e como esse comportamento gerava prejuízos à empresa.

Com esses documentos, as corroborações dos abusos e o depoimento de última hora da atriz Ashley Judd, as repórteres apresentaram as acusações a Weinstein. Depois de ouvirem suas versões dos fatos, concluíram o texto, com foco no fato de o produtor ter pago para encobrir assédios durante décadas.

A reportagem foi publicada pelo New York Times em 5 de outubro de 2017. Logo diversas outras atrizes e ex-funcionárias de Weinstein quiseram falar sobre os abusos dele. O produtor não acionou a Justiça pelas violações das cláusulas de confidencialidade. Ele passou a ser alvo de investigações e processos. Teve início o movimento #MeToo, no qual mulheres relatavam atos de assédio que tinham sofrido. Diversas celebridades e executivos foram acusados, e empresas mudaram suas práticas com relação a assédio sexual.

Tentativas de intimidação
Antes de a reportagem do New York Times ser publicada, contudo, Harvey Weinstein tentou usar meios sub-reptícios para evitar que seus abusos fossem divulgados. Mas o rigor ético do jornal impediu que suas intenções prosperassem.

Por meio do advogado David Boies, o produtor contratou detetives particulares para investigar Jodi Kantor e Megan Twhoney. O Black Cube, de Israel, recebeu a missão de barrar a investigação das jornalistas. Se conseguisse isso, receberia um bônus de US$ 300 mil. Uma agente do grupo convidou Jodi para dar uma palestra em um evento sobre desigualdade de gênero e discriminação de mulheres no ambiente de trabalho. A repórter estranhou e negou o convite — seu trabalho era apurar e escrever, não ser ativista. E ela não poderia palestrar, pois as regras de ética do New York Times proíbem jornalistas de dar palestras pagas em empresas, com o objetivo de evitar tentativas de compra de influência.

Como suas empresas tinham sido grandes anunciantes do jornal durante anos, Weinstein sugeriu a Boies usar sua influência com Arthur Sulzberger Jr., publisher do veículo, para barrar a reportagem. O advogado afirmou que a pressão poderia dar certo com outro jornal, mas não com o NYT.

Pouco antes da publicação da reportagem, o produtor plantou notas em outras revistas levantando suspeitas sobre a apuração do New York Times. Para não dar margem a questionamentos sobre a integridade do trabalho jornalístico, o editor executivo do jornal, Dean Baquet, exigiu que as acusações fossem expostas pormenorizadamente a Weinstein, para que ele tivesse oportunidade de se defender de cada uma delas.

O veículo não descreveria as narrativas que fossem refutadas pelo produtor. Somente após esse processo é que a reportagem foi publicada.

Fonte: ConJur