Por George Gurgel de Oliveira –
Meu pai Lauro Gurgel de Oliveira nasceu em 2 de abril de 1921, no Ceará, na cidade de Jaguaruana, há 100 anos.
Quando meu pai nasceu, o avô Estevam vivia em Manaus, era comerciante. A
vontade do avô era levar a família para a capital amazonense. A avó Isabel não quis ir,
ficou no Ceará. Foram quatro viagens do vovô à terra natal para convencê-la a ir morar
em Manaus. Em uma dessas viagens, ela ficou grávida de papai. O avô retornou ao
Amazonas sem saber da gravidez – foi conhecer o filho Lauro posteriormente, em mais
uma das suas viagens na tentativa de levar a família com ele.
Depois destas quatro viagens ao Ceará tentando convencer a vovó de ir para o
Amazonas, onde já estava estabelecido como comerciante, vovô Estevam ficou
definitivamente em Manaus. O surto de febre amarela deve ter influenciado na decisão
dela em não ir para o Amazonas. Provavelmente, além da questão da febre amarela,
deve ter pesado na decisão dela a segurança familiar no Ceará, onde teria melhores
condições de criar e educar os filhos. Portanto, papai e os irmãos foram criados pela
avó, sem a presença paterna.
Vovó Isabel tinha uma boa formação intelectual. Era professora, gostava de
literatura e tocava violão. A infância e os primeiros estudos de papai foram em
Jaguaruana-Giquí, acompanhado pela própria mãe, que influenciou bastante a sua
formação: papai por toda a vida gostou muito de ler, de poesia, de teatro, de música e de
dançar. Ele viveu até à juventude entre Fortaleza, Jaguaruana e Aracati. Ainda jovem,
provavelmente no final dos anos 30, entrou no Partido Comunista, na capital cearense.
No início dos anos 40, foi para Manaus, junto com os irmãos Jonas, Rosalvo e
Marília, em busca do pai. Nunca o encontraram. Supõe-se que Vovô Estevam morreu de
febre amarela.
O casamento com mamãe se realizou na igreja do Giquí, distrito de Jaguaruana,
no Ceará. A festa foi realizada na casa da fazenda, em 17 de março de 1945.
Desde então, falar de papai é falar de mamãe durante os mais de 50 anos que
estiveram juntos. Os dois foram e são os fundamentos e o inconsciente coletivo de toda
a família. Depois do casamento, foram morar em Manaus, onde ele continuou a
militância político-partidária, e passou a trabalhar no SESP, órgão federal que cuidava
do combate à febre amarela.
Aqui lembramos de um episódio pitoresco, acontecido nas eleições de 1946,
relatado por papai contava, de maneira teatral, do jeito que só ele sabia. Indicado pelo
Partido para acompanhar a apuração em uma das zonas eleitorais de Manaus, esperava
em uma sala, com muita gente, ser credenciado para acompanhar a contagem dos votos.
Quando seu nome foi chamado, como representante do Partido Comunista, uma freira
que estava na sala falou em voz alta: Oh, meu Deus, tão jovem e comunista!
Quantas vezes lhe provocamos para nos contar esta história: aqui o ator entrava
em cena incorporando a fala e o gestual da jovem freira. Ainda há outro episódio
envolvendo também a Igreja Católica, quando papai ficou doente e precisou ser
hospitalizado, em Jaguaruana, já nos últimos anos de vida. Nosso irmão Nizan
presenciou e nos lembra: uma religiosa entrou no apartamento em que ele estava no
hospital para confortá-lo. Papai quando percebeu a situação pediu do jeito dele para que
a religiosa se retirasse. A cena pode ser imaginada por todos aqueles que o conheceram.
No Amazonas, a família viveu as dificuldades e os desafios desse período de
significativa presença nordestina naquela região, especialmente de cearenses, desde o
início do século XX. Então, muitos membros da família Gurgel saíram do Ceará para o
Amazonas, tanto do lado de papai, como do lado de mamãe – eram primos: minha mãe
era Gurgel do Amaral e meu pai era Gurgel de Oliveira.
Durante o período em que papai e mamãe estiveram em Manaus nasceram
Gleide, em 22 de maio de 1946, e Luiz Carlos, em 4 de agosto de 1947, na fazenda
Giquí, no Ceará, para onde mamãe ia para o nascimento dos filhos.
A vida na Bahia
Ser comunista não era fácil no Brasil do final dos anos 40. O PCB foi cassado
pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1947, depois de um curto período de
legalidade, quando, sob a liderança de Luíz Carlos Prestes, o Partido teve uma
influência significativa na sociedade brasileira. Elegeu, nas eleições de 1946, uma
expressiva bancada federal, deputados estaduais e vereadores em todo o Brasil. No Rio
de Janeiro, então capital da República, elegeu a maioria dos vereadores. Luíz Carlos
Prestes foi eleito senador; Jorge Amado, Carlos Marighela, Gregório Bezerra, entre
outros, formavam a bancada federal. Na Bahia, o partido elegeu Giocondo Dias
deputado estadual. O curto período de legalidade do PCB (1945-1947) foi de
crescimento e de grande influência do Partido na vida política, social e cultural
brasileira.
A chegada de papai à Bahia, na segunda metade da década de quarenta,
aconteceu a partir de uma decisão partidária, com o PCB já na ilegalidade, Tratava-se da
parte de um esforço da direção nacional de reorganização do partido no estado. Era
comum na política partidária esta mobilização de quadros por todo o Brasil, na busca de
uma maior integração partidária e de melhor conhecimento da realidade estadual. Os
militantes e dirigentes cumpriam tarefas em distintas regiões do Brasil, em situações de
clandestinidade severa nos “aparelhos” partidários.
No caso da nossa família, como em milhares de outras famílias brasileiras
durante toda a existência do partido, significou grandes dificuldades de sobrevivência
neste período de vida profissional de papai no PCB. Era tudo pela causa, pelo partido,
no caminho da sociedade futura, que seria mais fraterna e solidária.
A revolução russa vitoriosa em 1917 apontava o caminho. A esperança era
vermelha. Os bolcheviques procuraram ir além do ideário iluminista das revoluções
burguesas na luta pela igualdade, liberdade e fraternidade, buscando uma nova
hegemonia – a dos trabalhadores.
O ideário da revolução de 1917 não se cumpriu na sua plenitude, contudo
impactou o século XX, favorecendo as conquistas econômicas e sociais não apenas na
União Soviética, nos países do socialismo real, como também serviu de referência a
uma boa parte da humanidade. As lutas dos trabalhadores nos países capitalistas, o
processo de libertação colonial, a derrota do nazi-fascismo, a vitória da revolução
chinesa, da revolução cubana e dos vietnamitas, entre outras conquistas dos povos e dos
trabalhadores, no século XX, tiveram um apoio fundamental da União Soviética e do
movimento comunista mundial.
A utopia alimentava e ajudava enfrentar todas as dificuldades. Muitos militantes
e dirigentes do PCB, principalmente depois da ditadura militar de 1964, como aconteceu
nos anos de 1930, foram presos, torturados e mortos por defenderem o Governo Jango e
as reformas de base, ainda hoje não realizadas para a maioria da sociedade brasileira.
A militância de papai no PCB e toda sua vida foram nessa perspectiva: queria
uma sociedade mais fraterna, com melhor distribuição da riqueza produzida por todos
que trabalham.
Num período em que o PCB vivia as dificuldades impostas pela clandestinidade,
papai chegou a Salvador, de navio, no ano 1948. Ficou algum tempo na cidade, na
famosa pensão da Baixa de Sapateiros de Maria Brandão – liderança negra, dos
movimentos sociais da Bahia. Maria Brandão ficou amiga da família e, em 1964, morou
em nossa casa por algum tempo. Lembramos dela com muito carinho e gratidão.
Posteriormente, mamãe, Gleide e Luís chegaram de Fortaleza. A família reunida
em Salvador foi para Feira de Santana, indo morar em uma casa de propriedade da
família Falcão. No período, Wilson Falcão, irmão de João Falcão, era o médico da
família. O nosso irmão Lenine, logo apelidado de Zelito, nasceu em Feira, no ano de
1949. A vida em Feira foi muito difícil. A repressão levou papai e a família a mudar
para Salvador.
A partir de então papai e a família começaram a conviver com militantes e
lideranças partidárias, muitas vezes com as respectivas famílias, muitas delas com quem
convivemos até hoje. Lembranças de Aristeu Nogueira, Maria Brandão, Bóris Tabacow,
Vale Cabral, Heitor Casaes, Estevam Martins, Gérson Mascarenhas, Manuel Gerônimo,
Fernando, Vicente e a família Santana, Gérson Dias e família, João, Wilson e a família
Falcão, a família Guanaes, Milton Caires de Brito, José Aires, Ângelo Ribeiro, Luís
Contreiras, Amabília e família, Neri e família, Camacan, Ana Montenegro, Dalva
Meneses, Sinval Galeão e muitos outros companheiros e companheiras do PCB.
Em Salvador, a família foi morar, no Pau Miúdo, em 1950. Então, papai ficou
responsável por um aparelho do PCB, onde funcionava uma gráfica clandestina e ainda
servia de depósito de armas, segundo o relato de mamãe. Vivemos em duas ruas do
bairro. Em uma delas, nasceu o irmão Iordan, em 1951; e, em uma outra, eu nasci, em
1954.
Em 1955, nasceu o irmão Nizan, quando já morávamos no bairro de Macaúbas.
A família começou a viver um processo de transição: papai se afastou da vida de
militante profissional e iniciou as atividades de representante comercial. Começou a
viajar por toda a Bahia. A primeira representação comercial que conseguiu foi a do
Laboratório LABRAPA, através do amigo Gérson Dias, irmão de Giocondo Dias –
liderança histórica do PCB.
Desde os anos 50 até à década de 80, papai trabalhou com atividades comerciais.
O sustento da família era um desafio permanente. Nos momentos difíceis, muitas vezes,
o comércio de mamãe de bordados e as redes do Ceará ajudaram a garantir a
sobrevivência da família.
Papai tinha boas relações na área empresarial, comercial e entre os colegas
viajantes em todo o estado da Bahia. Foi representante comercial da Companhia
Nacional de Tecidos, do grupo Matarazzo, de São Paulo; de empresas de calçados do
Rio Grande do Sul; de empresas de porcelanas e de ferragens de São Paulo; entre outras.
Trabalhou ainda como representante comercial de empresas baianas, entre as quais as
Casas Ferreira e a MKrachete&Filhos. Por muito tempo, quando viajava, teve um
pequeno negócio de armarinho e de pedras preciosas que trazia da Chapada Diamantina,
complementando a renda familiar.
Em 1958, participou ativamente das campanhas de Fernando Santana, que se
elegeu deputado federal pelo PTB (o PCB era ilegal), e de Waldir Pires, em 1962, para
governador da Bahia. Waldir perdeu a eleição para Lomanto Júnior, que aderiu aos
militares, em 1964, e continuou governador da Bahia, neste período.
Em 1959, ainda na casa do Macaúbas, nasceu o irmão Lauro Júnior, Laurinho
para todos nós. Desta época lembramos a presença permanente do meu padrinho
Dermeval e da minha madrinha Dária, de Heitor Casaes e Virgínia, padrinhos de Zelito;
de José de Freitas e Neusa, padrinhos de Iordan; de Nacim e Tita, padrinhos de Nizan;
de Rui e Nicinha, padrinhos de Laurinho, entre outros.
No final de 1959, mudamos para o Barbalho. Ali a memória pessoal traz muitas
recordações – tinha eu, então, 5 anos. A família era grande e ia ficando maior com a
chegada dos primos e primas que vinham do Ceará e os agregados da Bahia, colegas de
escola e vizinhos que frequentavam a nossa casa. Foi o lugar em que vivemos o maior
tempo juntos: papai, mamãe e os irmãos – todos os irmãos. A família se completou
com o nascimento de Sérgio, em 1964. A casa do Barbalho era maior e mais
confortável. Era porta aberta, acolhendo primos e tios que vinham do Ceará e nossos
amigos e amigas. Muitas lembranças e boas recordações. Época de crescimento de todos
nós.
Nos anos 60, a ditadura militar muda completamente nossas vidas. Vivemos
tempos difíceis. Mudamos radicalmente a maneira de viver da família. As precauções
eram de toda a ordem. As publicações partidárias, os livros da editora Vitória e da
Civilização Brasileira, as revistas recebidas da China e da URSS, sumiram do nosso
cotidiano familiar. As nossas conversas eram cuidadosas na família e com os amigos
que frequentavam a nossa casa, principalmente quando apareciam os dirigentes do
Partido.
Papai conhecia bem a Bahia. Tinha amizades em quase todos os municípios do
estado. Por muitos anos, entre a segunda metade dos anos 50 até a década de 80 do
século passado, trouxe para os filhos dos amigos que estudavam na capital
correspondências, dinheiro e o que se possa imaginar. Funcionava como correio, em
rede, para usar a linguagem de hoje.
Papai dialogava bem com as novas gerações. Filhos de amigos seus tornaram-se
nossos amigos e muitos amigos nossos ficaram amigos de papai e mamãe também.
Somos testemunha, toda a família e agregados, destas amplas relações. Qualquer amigo
ou amiga do interior, muitos colegas nossos, quando chegavam em nossa casa, papai
perguntava sobre o lugar de onde vinha e o nome da família. Em seguida, para surpresa
de todos, falava com propriedade do município e da região em questão.
A partir do golpe militar de 1964, papai usou suas relações sociais e de amizade para ajudar a saída de companheiros de Salvador e de outros municípios da Bahia. A vida na capital baiana e as relações que tinha pelo interior lhe garantiam uma retaguarda
que foi muito útil no período ditatorial.
Um registro desta época: o nosso primo Gervásio Gurgel do Amaral, estudante
universitário e líder estudantil do PCB no Ceará, estava em Salvador, em alguma
atividade estudantil-partidária, quando aconteceu o golpe de 64. Papai o levou de carro
até Juazeiro-Petrolina e conseguiu, com um amigo Coronel do Exército, colocá-lo em
um avião da FAB. Gervásio chegou bem a Fortaleza, sem problemas.
A repressão e as dificuldades vividas pela família não tiravam a nossa maneira
de ser, evidentemente com as precauções devidas. Cada um de nós ia buscando seu
caminho. Foram tempos angustiantes. As dificuldades eram muitas, contudo sabíamos
que podíamos contar com o apoio de papai e mamãe, dos amigos e amigas da família e,
na medida possível, do próprio Partido.
Nos anos que moramos entre o Macaúbas e o Barbalho, para a nossa alegria,
tivemos as visitas da vovó Isabel e da vovó Ana, assim como das tias Zilma e Marinete
que vieram algumas vezes a Salvador.
No Barbalho, além do nascimento do irmão Sérgio, em 1964, tivemos o
casamento de Gleide e a ida de Luís Carlos para a União Soviética, em 1968. Nessa
época, a geladeira, o rádio e a televisão entraram definitivamente nas nossas vidas.
Foram grandes conquistas de toda a família.
A ida de Luis para Moscou foi cheia de sobressaltos e preocupações familiares.
Em plena ditadura, ficou clandestino no Rio de Janeiro, retornou a Salvador e,
finalmente, viajou para a capital soviética em 1968.
Mudamos para o bairro do Matatu, em 1971, quando Gleide já estava casada e
Luís vivia em Moscou. Lembramos do orgulho que todos nós tivemos com a entrada de
Iordan na Faculdade Baiana de Medicina.
Em 1975, quando sai da Bahia para ir estudar em Moscou, vivíamos em plena
repressão no Brasil, principalmente em cima do PCB – a luta armada já havia sido
derrotada.
Estudar na União Soviética nos levou à possibilidade de vivenciar a construção
de uma alternativa à sociedade capitalista. Conhecer a experiência soviética e estudar na
Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba mudou completamente a minha
vida.
A minha recepção em Moscou não poderia ter sido melhor, apesar das
dificuldades iniciais por não saber nada da língua russa, convivendo com Luís Carlos
durante dois anos, o que me ajudou muito no processo de adaptação à vida soviética.
Depois, quando Luis terminou a faculdade, foi trabalhar em Moçambique, retornando ao
Brasil, em 1980.
Neste período, no Brasil, os democratas, em uma frente ampla, lutavam contra a
ditadura militar. O MDB, como partido de oposição ao regime, era o desaguadouro
natural de resistência aos militares. A ditadura foi politicamente derrotada nas eleições
de 1974. No entanto, o aparelho de repressão com assassinatos e torturas continuava a
funcionar, agora voltado contra o PCB. Em 1975, o Partido perdeu os seus principais
dirigentes nacionais que estavam no Brasil. Foram presos, torturados e mortos. Foram
ainda assassinados, nesse período, o líder da juventude do PCB, José Montenegro, o
líder operário Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog. Centenas de lideranças
do PCB foram presas e torturadas em todo o Brasil.
Na Bahia, um pouco antes de minha viagem a Moscou em 1975, foram presos e
torturados vários dirigentes do partido, muitos companheiros e companheiras da
militância política e dirigentes do PCB, entre os quais Heitor Casaes, Luís Contreiras,
Estevam Martins, Marcelo e Sergio Santana, Carlinhos Marighela, Marco Antônio,
entre outros.
Portanto, era grande a preocupação de papai, mamãe e toda a família com a
minha saída do Brasil, no mês de setembro de 1975. Foi uma longa jornada até,
finalmente, chegar a Moscou em outubro daquele ano.
Assim, conhecer a experiência socialista e ir estudar na URSS era, na verdade,
um privilégio e um risco, considerando a realidade política que vivíamos no Brasil.
Foram muitas as dificuldades, na época da ida de Luís e da minha ida também, até
chegarmos a Moscou.
O exemplo de papai e de Luís levou todos os irmãos à militância política, em
diferentes graus. Importante aqui destacar o papel positivo jogado por Luís e a Gleide
na nossa família, como referências de irmãos mais velhos. Boas referências! Os dois
ajudavam mamãe nas ausências de papai, no dia a dia da família. Gleide sempre foi
muito presente. Era excelente estudante. Sempre um apoio para todos nós. A saída de
Luís para a URSS e, posteriormente, para trabalhar na África, fez com que esta
liderança e este apoio de Gleide na família se destacasse, principalmente para a maioria
dos irmãos que ficaram na Bahia.
Ainda queríamos lembrar, com saudades, as amizades da vizinhança em todos os
bairros que moramos, amigos de papai e mamãe; políticos e comerciantes do interior, do
partido, da maçonaria e o pessoal da família vindos do Ceará: o tio Pedro, o primo
Ozanan e a tia Marília, os pioneiros; depois o tio Olívio, os primos Luís Fernando,
Wilson, Marli, Eliane, Lúcia, Nazareno, José Anibal, Rosalvo em diferentes períodos,
faziam parte do nosso universo familiar.
Recordamos com emoção e gratidão dos nossos padrinhos e madrinhas. Foram
muito bem escolhidos por papai e mamãe. Todos eram muito presentes. Sempre. São
muitas lembranças na nossa casa, na casa deles, dos nossos passeios, particularmente
nas férias e nas idas à praia.
Aqui quero destacar a amizade do meu padrinho Dermeval e da minha madrinha
Dária. Só temos boas lembranças. Papai era padrinho de Dermizinho, filho deles. Foram
padrinhos duas vezes: no batismo e no meu casamento. Convivemos todos nós com a
família até hoje.
Um registro especial: Dermizinho sabe de histórias extraordinárias de papai com
meu padrinho e amigos, dignas do realismo fantástico.
A família ia se desenvolvendo. Todos nós íamos caminhando, procurando
nossos objetivos. Sabíamos que o apoio familiar e os nossos esforços individuais nos
levariam a uma situação social e econômica melhor. Era o desafio de cada um de nós.
A família voltou a ficar completa em Salvador, nos anos 80. Luís retornou de
Moçambique em 1980, onde trabalhou como engenheiro por conta de uma cooperação
estabelecida entre o PCB e o Governo moçambicano e eu cheguei de Moscou, em 1981.
A família ia aumentando. Os casamentos dos irmãos, os nascimentos dos netos,
proporcionando muitas alegrias a papai, a mamãe e a todos nós. Papai já não viajava
tanto. Desde o final dos anos 70 e início dos 80, ficava mais em Salvador. Nesse
período, começou a trabalhar com o amigo Benedito, no comércio de móveis,
eletrodomésticos e bebidas. Bené, de quem papai era compadre também, junto com a
esposa Mariana e seus familiares conviveram com a nossa família, por muitos anos.
Nos anos 80, fundamos em Salvador a Livraria Práxis. Funcionou em uma casa
na Rua Tuiuti, no centro da cidade. Foi uma sociedade com os companheiros Almérico
e Jones. Papai simbolizava a nossa livraria – Almérico e Jones fizeram belos
depoimentos para o centenário de papai, retratando muito bem o que papai significava
para a nossa livraria. Os livros eram editados nos países socialistas, principalmente na
URSS. Boas edições. Livros de literatura, história, filosofia, economia, engenharia,
medicina, entre outras áreas de conhecimento. Os livros infantis faziam muito sucesso.
Em geral, os livros eram muito baratos, comparados com os valores de mercado da
época.
A Livraria Práxis virou um ponto de encontro das antigas e novas gerações. Era
frequentada por estudantes, professores, intelectuais e a esquerda em geral. Papai
adorava estar na livraria por gostar de atender e conversar com as pessoas,
principalmente com a juventude e os velhos companheiros do PCB.
Nos anos 80, o PCB fundou o Jornal Voz da Unidade. Funcionava, de fato,
como sede do partido, em todas as capitais e grandes cidades do Brasil, pois o Partido
ainda era clandestino. Em Salvador, ficava na Mouraria. Papai frequentava e ia com
prazer à sede da Voz. Lembramos da satisfação dele quando foi para a Festa Nacional da
Voz da Unidade, em Minas Gerais, com seu amigo e compadre Heitor Casaes, com Ana
Montenegro, Fernando Santana, Luís Contreiras, entre outros dirigentes e militantes do
Partido na Bahia.
Em 1983, Giocondo Dias veio, pela primeira vez, à Bahia, depois de muitos
anos de vida clandestina e de exílio. Então, com a presença dele, foi feita uma
homenagem à Maria Brandão, na sede da Voz da Unidade. Lá estavam papai, mamãe e
toda a família para lembrar a querida amiga.
A primeira vez que Roberto Freire esteve em Salvador, no início dos anos 80, visitou-nos em nossa casa. Papai ficou feliz com este encontro. Participou com entusiasmo na campanha do Roberto e do Sérgio Arouca, à Presidência da República,
em 1985.
No ano de 1987, papai e mamãe foram residir na Graça, a última moradia deles.
Papai esteve presente nas atividades e campanhas partidárias até quando a saúde
permitiu. Conviveu com Francisco Almeida que, como papai e mamãe, é cearense.
Almeida viveu em Salvador no início dos anos 80, representando a direção nacional do
PCB. Esteve com Salomão Malina, Paulo Elisiário e Givaldo Siqueira quando estes
vieram a Salvador cumprir agenda partidária.
Sempre fazia, com muito entusiasmo, as campanhas políticas do Partido. As de
Fernando Santana, de Sérgio Santana e de Paulo Fábio, todas as campanhas do PCB na
década de 80. A de Waldir Pires também, nos anos 80, quando Waldir se elegeu
Governador da Bahia e as de Lídice, Salete e Bete quando Lídice foi eleita prefeita e
Bete vice-prefeita de Salvador, pelo PCB.
Frequentou o Bar do Clube de Engenharia, quando nosso irmão Luís Carlos foi
sócio, sempre com a presença do nosso querido e inesquecível Luís Contreiras, e o Bar
Raso da Catarina. Eram espaços da resistência democrática, de discussões, derrotas e
comemorações da esquerda de uma parte da intelectualidade baiana nos anos 70 e 80.
As viagens que fizemos ao Ceará com papai e mamãe são inesquecíveis. Muitos
bons momentos vividos com a família e sempre lembrados quando estamos juntos na
Bahia ou no próprio Ceará.
A primeira viagem de retorno de papai e mamãe ao Ceará foi nas nossas férias
de verão de 1963-1964. Chegamos à Jaguaruana, em dezembro de 1963, toda a família
em uma rural dirigida por papai e em um jipe dirigido por Tio Pedro. Quantas boas
recordações!
As vovós Ana e Isabel, as tias e os tios, os primos e as primas, os amigos de
papai e mamãe nos receberam muito bem em Jaguaruana, no Giquí, no São José, em
Juazeiro do Norte na Casa de tio Luís (militante do PCB) e da tia Radi. Em Fortaleza,
ficamos nas casas de tia Maria, tia Alda, tio João e tio Rosalvo.
Depois dessa viagem, muitas outras foram realizadas com a participação de
papai, mamãe e de todos nós. Nizan contribuiu muito para esta integração familiar entre
a Bahia e o Ceará quando se tornou proprietário, nos anos 80, da fazenda Vila Gurgel,
em Jaguaruana, que era propriedade da família de mamãe, onde esta nasceu e os irmãos
Gleide e Luis.
Desde então, todos nós sempre visitamos o Ceará. Somos bem recebidos por
todos da família de papai e de mamãe, até hoje. A fazenda Vila Gurgel virou ponto de
encontros memoráveis, com a participação de todos nós. Em Salvador, continuamos a
receber os nossos primos e primas, com muito prazer e boas recordações das vivências e
encontros da família tanto no Ceará, quanto na Bahia.
Papai, quando viajava, era sempre convidado para estar nas fazendas dos amigos
no interior da Bahia. Adorava caçar. Atirava bem. Enfrentou muitos desafios quando
morou no Amazonas e no período em que viveu na clandestinidade partidária.
Conhecia, como poucos, a Bahia. São muitos relatos dos antigos companheiros
ou amigos da época com quem viajava, posteriormente dos filhos dos amigos dele e
nossos colegas de escola e amigos que vinham morar em Salvador.
Aqui, como testemunho desta época, queremos com emoção falar do relato
recente gravado por Joel Meira, ex-prefeito de Xique-Xique, que, na altura dos seus
mais de 90 anos, recorda e fala do seu amigo Lauro Gurgel, simbolizando uma centena
de amigos e amigas que papai fez por toda a Bahia. O relato foi possível graças ao
empenho do nosso querido amigo Joelson, filho do próprio Joel Meira. Joelson quando
criança em Xique-Xique ficou encantado com as histórias e o posicionamento firme de
papai frente à política e aos desafios da vida – até hoje estas conversas são lembradas,
todas as vezes em que nos encontramos.
A fila dos encantados é longa. Podemos encontrar, pelo menos, uma família em
cada município da Bahia que lembraria da amizade, das conversas e do bom humor que
papai trazia consigo, sempre, na sua maneira de ser e agir.
Nas nossas conversas familiares e com os agregados, as lembranças de papai e
mamãe, muitas vezes, dão a tônica dos nossos encontros até hoje.
Agora, o que papai gostava mesmo era receber e ir à casa dos compadres e
amigos. Jogar buraco com papai era uma festa! O jogo era bom por causa das conversas,
dos comentários de papai durante as partidas. A cerveja tinha de ser bem gelada e com
colarinho. Lembram?
O que posso dizer mais?
Papai era um brasileiro com os sentimentos do mundo. Era pelo que pensava,
pela sua maneira de ser e agir. Amava a vida. Viveu plenamente. Autodidata, trazia
consigo a memória cultural europeia e indígena. Na Bahia, temperou-se com a cultura
africana. Era um leitor da literatura brasileira e universal. Tinha lado, opinião e uma
alegria natural de viver. Tinha bom humor e era muito rigoroso com os filhos.
Cada um de nós, pela convivência que temos até hoje, se perguntados em
qualquer situação acho que vai dizer e expressar estes mesmos sentimentos. Ainda
deverá ser a opinião da família e dos agregados que conviveram conosco na infância, na
juventude e até hoje.
Papai e mamãe juntos nos construíram e ajudaram a mais de uma dezena de
familiares que viveram em nossa casa, em diferentes momentos das nossas vidas, além
dos agregados, nossos amigos e amigas de infância, da juventude e de toda a vida. Papai
nos abriu o mundo na sua complexidade política, social e cultural. Mamãe, por sua vez,
nos trazia para a difícil realidade cotidiana: a de viver em uma família numerosa e
enfrentar todas as dificuldades ainda hoje existentes para a sobrevivência e a educação
dos filhos no Brasil.
Uma questão a ser destacada na nossa criação: fundamental era a importância
que papai e mamãe davam à educação. Conseguimos estudar em boas escolas públicas
em Salvador, aqui destacadas, com gratidão, a Escola Leopoldo Reis, o ICEIA, O
CENTRAL, a Escola Técnica Federal da Bahia e a nossa querida Universidade Federal
da Bahia, onde Gleide, Nizan e Serginho estudaram. Ainda destacando a Escola Baiana
de Medicina e a Universidade Católica, onde Iordan e Laurinho concluíram seus cursos
universitários.
Papai e mamãe sabiam que a educação era o principal instrumento de inclusão
social, decisiva para o futuro de cada um de nós. É um mantra que sempre repetimos
para os nossos filhos, sobrinhos e alunos: fora da educação é a exclusão, é a barbárie. A
cultura, a educação e a arte em geral nos fazem melhores seres humanos, podendo nos
salvar como humanidade nestes tempos sombrios.
Temos plena consciência, gratidão e sempre devemos lembrar o que papai e
mamãe fizeram por todos nós. A ideia de fraternidade, de acolhimento e de cooperação
aprendemos primeiro em nossa casa. As relações construídas ao longo das nossas vidas
na escola, no trabalho, em qualquer uma das nossas atividades, foram fundamentadas
nos princípios e experiências familiares.
Hoje, lembrando a nossa vida familiar, ficamos nos perguntando como
conseguiram fazer o que fizeram por nós e por todos que foram acolhidos: os da família
que vieram do Ceará e moraram conosco (alguns por muitos anos) e os nossos colegas
de escola, amigos de infância, da juventude e de toda a vida.
A família construída na perspectiva de papai e mamãe continua atual nos seus
valores e desafios, apesar de todas as transformações acontecidas na sociedade brasileira
e na mundial.
Somos, pelo menos na nossa experiência familiar, muito como os nossos pais.
Refletimos e projetamos nas nossas vidas os valores e os fundamentos aprendidos em
família.
Portanto, não temos dúvidas: a base familiar nos deu condições de enfrentar os
desafios da infância, da juventude e da vida adulta com papai e mamãe sempre
presentes. Foram importantes nas nossas vidas até o último dia de vida de cada um
deles. Eles continuam nos nossos corações, nas nossas mentes e nos nossos melhores
atos: na cooperação, na solidariedade, no ver e saber o valor de ser e não de ter,
desafiados que somos na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
O nosso registro do centenário de papai e das lembranças de mamãe, cujo
centenário vai ser comemorado em 12 de maio de 2022, é, principalmente, para os
nossos filhos e as novas gerações da família saberem quem foram os seus ancestrais e a
história de vida deles.
Papai nos deixou em julho de 1997, aos 76 anos, e a mamãe em setembro de
2012, meses depois de comemorar muito bem os seus 90 anos.
Lembramos e lembraremos de papai e mamãe sempre: são nossas referências
por todas as nossas vidas, com muito carinho, amor e gratidão.
*George Gurgel de Oliveira é professor da Universidade Federal da Bahia e da Oficina da Cátedra da Unesco em Sustentabilidade.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com
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