Por João Batista Damasceno –
À militarização da vida politica brasileira, desde que um golpe militar instituiu a República em 1889, seguiram a militarização das policias civis que já foram chamadas de policia judiciária, das Guardas Municipais que se esparramam pelo país como se fosse uma pandemia e, agora, chega às escolas que se chamam cívico-militares. O fundamento ideológico é de que em tais espaços há hierarquia e disciplina. Mas, estas palavras expressam conceitos e sem os compreender ficamos a lhes atribuir significados diversos.
Hierarquia é palavra de origem religiosa que tornava o “hierarcos” incontestável, porque falava em nome de uma divindade. Em sentido contemporâneo é empregado nos cenários onde se estabelecem prioridades ou precedências de uns em relação a outros, em escalonamento. As organizações fundadas em escalonamentos estabelecem ordem de prioridade entre seus integrantes, bem como relações de subordinação de uns a outros, com graus sucessivos de privilégios, de prerrogativas, de poderes e de responsabilidades. Toda a administração pública, civil ou militar, é fundada na hierarquia. Disto decorre o poder de mandar e o direito de impor a obediência. Portanto, as hierarquias não são próprias das democracias ou das repúblicas.
A militarização da vida tem levado a que praças, a quase todos subordinados na hierarquia militar, subordinem os que consideram párias na ordem social, passíveis de serem eliminados em chacinas, agora à luz do dia. Oitenta tiros num músico negro, que passeava com sua família, na periferia da cidade do Rio de Janeiro, disparados por praças do Exército durante a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, é apenas o exemplo do que a militarização da vida é capaz. As políticas militares, que deveriam ser apenas uniformizadas, ostensivas e preventivas das ocorrências criminosas, se tornaram instituições em guerra contra a sociedade. O mesmo passo seguiu parcela das polícias civis, guardas municipais e empresas privadas de vigilância que adotam similar comportamento bélico. A militarização da vida é o império do autoritarismo.
Se hierarquia é o poder de mandar, com direito de exigir obediência, disciplina é aceitação do conjunto de regras e normas estabelecidos num determinado contexto ou grupo social. A disciplina é a conduta desejável de um indivíduo nas interações que estabeleça na ordem social e para a qual tenha sido socializado.
Disciplina pode decorrer de educação e socialização. Mas, também de adestramento, termo utilizado no disciplinamento animal e nas instituições militares. Adestramento significa um conjunto sistemático e organizado de comandos que permite o atendimento mecânico e condicionado de uma conduta desejada. Somente uma pessoa adestrada para o desvalor da vida é capaz colocar a sua em risco mediante comando de outra que acredita ser superior.
Mas, a falácia da hierarquia e disciplina nas organizações militares vai até certo nível da escala funcional. No Brasil, não houve instituição que mais desatendeu ao dever de hierarquia e disciplina que as Forças Armadas. As constantes intervenções militares na ordem interna, desde o Golpe Militar que destronou a monarquia, é prova constante da indisciplina. Até impugnação de resultado eleitoral já se tentou, como em novembro de 1955, quando um coronel, vinculado à presidência da república, quis confrontar as instituições. Naquele tempo estava em serviço o Marechal Lott que não permitiu a violação à disciplina militar, assim como hoje não permitiria que um general de três estrelas tivesse precedência sobre generais de quatro.
Os regulamentos militares são tratados como textos sagrados quando a indisciplina é de praças ou baixa oficialidade. Mesmo esta, quando atendendo a interesses dos seus “superiores” é relevada. Exemplos emblemáticos são a manutenção em atividade do capitão terrorista que juntamente com um sargento pretendia matar milhares de jovens num show de MPB no Riocentro em 1981, da promoção ao generalato do coronel que conduziu a farsa da apuração do Caso Riocentro e do tenente processado porque revelou a jornalista seu plano de colocar bombas em quarteis no final dos anos 80 do século XX. Promovido a capitão e reformado, o capitão teve amplo apoio da “hierarquia disciplinada”, que voltara aos porões, para ingresso na vida politico-partidária.
Em 1964, a pretexto de que a anistia a cabos e sargentos concedida pelo Presidente João Goulart favorecia a quebra da hierarquia, os oficiais generais quebraram a hierarquia, desrespeitaram a disciplina e protagonizaram um regime, a serviço do capital, que mergulhou o país em trevas por 21 anos. Começaram atentando contra o presidente da República e continuaram os atentados contra o Congresso Nacional, a Constituição da República, o STF que teve ministros cassados, bancas de jornais, igrejas e instituições da sociedade civil. Os quarteis foram transformados em centros de torturas, mortes, estupros e desaparecimentos. A ‘Bomba do Rioocentro’ desvelou do que eram capazes e tiveram que se recolher para as sombras, de onde continuaram a tramar contra a democracia, o Estado de Direito e suas instituições.
A quem serviram? A quem servem? Para que servem? “Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição. De morrer pela pátria e viver sem razão”, disse um poeta levado à insanidade decorrente de atrocidades.
Quem consulte o Estatuto dos Militares (Lei 6880/80) verá o quão é preciso nas definições dos termos utilizados. Verá também que se dizem ligados à pátria, devem ter fidelidade à pátria, que atuam na defesa da pátria e que são servidores especiais da pátria. Mas, não há definição do que seja pátria para tais patriotas.
Diferentemente de pátria, nação é o conjunto de pessoas unidas por um conjunto de valores, que ocupam determinado território e no qual estabelecem instituições que expressam organização política. A palavra ‘nação’ não consta do Estatuto dos Militares a não ser em 16 vezes para compor as palavras ‘destinação’ (uma vez), ‘ordenação’ (duas vezes), ‘subordinação’ (duas vezes), ‘alienação’ (cinco vezes), ‘condenação’ (duas vezes), ‘denominação’ (uma vez), ‘determinação’ (duas vezes) e ‘designação’ (uma vez).
As instituições militares brasileiras se fundamentem na abstrata ideia de pátria que sequer seus regulamentos definem e não inspiram temor em qualquer similar instituição estrangeira. Seus métodos de recrutamento, seleção, adestramento e até os uniformes militares são cópias dos estadunidenses. Mas, são temidas pelo próprio povo e os 80 tiros no músico negro que passeava com sua família na periferia foram apenas mais um recado para que continuemos a temê-las. Somos reféns da sentinela que deveria tomar conta da nossa casa.
Mantemos e custeamos instituições militares para nos ameaçar permanentemente. Até o STF foi destinatário de ameaça, contemporaneamente, por um general que lembra o último discurso de Unamuno. Mas o que está estragado não é o vinho; é a garrafa. Sem profunda modificação da finalidade das Forças Armadas, o que teremos serão instituições que se acham no direito de intervir na ordem interna, determinar diretrizes para a sociedade e tutelar as instituições. E quando demandadas para cumprimento de sua finalidade institucional continuarão a alegar ausência de recursos para atender à ordem lhes dirigida. Mas sempre se dirão organizadas com base na hierarquia e disciplina, desde que não seja dos seus próprios dirigentes, que se pretendem acima da sociedade e das instituições por ela instituídas.
Não são servidores da sociedade. Não se consideram servidores públicos. São “servidores especiais da pátria”. Na verdade, servem-se.
Mas a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem por fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Seus objetivos fundamentais são construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Não havemos de ser uma ‘República das Bananas’, da soja ou outras commodities, com instituições subordinadas a chefetes transitórios. Mas um país soberano, livre e justo, onde reine a soberania popular.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia.
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Dr. Damasceno e Redação da Tribuna Livre, hierarquia e disciplina é segundo o jornalista Rafael Barifouse da BBC News Brasil, se manter no poder ‘com ou sem Bolsonaro’. Segue a reportagem:
Militares planejam se manter no poder ‘com ou sem Bolsonaro’, diz coronel da reserva
O coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza virou nos últimos anos uma das vozes mais críticas ao envolvimento das Forças Armadas na política. Para explicar o porquê, ele conta sobre uma conversa que teve com um tenente sobre como vários dos colegas com quem tinha servido estavam no governo.
“O tenente disse: ‘É, realmente, houve um aparelhamento, mas o outro lado, quando governava, fazia o mesmo’. Na hora nem percebi, mas depois vi que ele pensa que os militares têm um lado. Isso é errado”, diz o coronel Pimentel à BBC News Brasil.
É UMA ANTIDOUTRINA – Nascido em uma família de militares e formado pela turma de 1987 da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), Pimentel diz que isso vai contra tudo pelo que ele trabalhou até deixar a ativa, em 2018.
“Estão destruindo a muralha que minha geração construiu entre as Forças Armadas e o governo, entre o militar e a política”, diz o coronel de 54 anos. Se os militares tomam partido, “deixam de ter representatividade para defender o Brasil inteiro”, defende ele.
Pimentel avalia que essa mentalidade é cada vez mais comum entre os militares. Mas acredita que as baixas patentes estão apenas seguindo o exemplo que vem de cima, dos generais que formam o que Pimentel chama de “Partido Militar”.
CHEGANDO AO PODER – Em sua visão, esse grupo, que comanda o Exército, encontrou no presidente Jair Bolsonaro (sem partido) uma forma de chegar ao Planalto sem uma ruptura institucional, como no golpe de 1964.
“Dos 17 generais que formam o Alto Comando do Exército, 15 exercem cargos de primeira ordem. Há militares tanto na administração direta, que é a Esplanada dos Ministérios, quanto nas empresas estatais, autarquias, órgãos de fiscalização.”
Ele diz ser por isso que ele chama o atual governo é um governo militar. “As pessoas não enxergam porque esse grupo chegou ao poder sem uma ruptura institucional, mas eles ocupam cabeça, tronco, membros, entranhas e alma desse governo.”
FICAR NO PODER – De volta ao comando do país, diz Pimentel, esses militares agora estão se preparando para se manter no poder, “com ou sem Bolsonaro”.
Pimentel diz que pegou emprestado de cientistas sociais o termo Partido Militar para falar desse grupo que decidiu se lançar na política.
Ele aponta que são militares formados na Aman nos anos 1970, em plena ditadura — como o próprio Bolsonaro. Tornaram-se generais no primeiro mandato de Lula, segundo Pimentel, e chegaram ao comando do Exército no governo Dilma.
UM GRUPO COESO – “São generais da reserva em sua maioria, mas também da ativa. É um grupo bastante coeso, hierarquizado, disciplinado, com algumas características autoritárias e pretensões de poder até hegemônicas. Sua finalidade é manter o poder conquistado”, diz.
O grupo teria começado a se articular no início da década passada, segundo o coronel, em parte por causa das insatisfações com as conclusões da Comissão da Verdade sobre os crimes cometidos por militares na ditadura e o fato do país ser governado por Dilma Rousseff (PT), uma ex-guerrilheira.
Ao mesmo tempo, a missão da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti aproximou as Forças Armadas brasileiras e americanas.
MATRIZ E FILIAL – “Estabeleceram-se relações pessoais entre os generais brasileiros e americanos. O lazer das tropas era na Flórida, em Nova York, em Washington. Esses oficiais viram como o cidadão americano tratava o militar. olhavam para cá e não sentiam que o brasileiro valorizava, né?”, comenta Pimentel.
O coronel diz que foi esse grupo que procurou Bolsonaro e não o contrário. Não teria sido por acaso, portanto, que o presidente lançou sua candidatura na Aman, ainda em 2014.
“Nós temos que mudar o Brasil, tá ok?”, disse Bolsonaro na época, diante de um grupo de aspirantes que o chamavam de líder . “Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018, seja o que Deus quiser, a tentar jogar para a direita este país.”
ESTAVA PREVENDO – “Parece até que ele estava vaticinando o que ia acontecer na presidência dele”, diz Pimentel, que é um crítico antigo do presidente.
O coronel diz que, em algum momento do primeiro mandato de Dilma foi fechado um acordo em torno da candidatura de Bolsonaro. Ele afirma ter acompanhado de perto a transformação da imagem do então deputado federal entre as tropas.
“Em 2015, eu fui a uma formatura na Aman, e Bolsonaro era simplesmente o maior astro. Como um camarada que tinha saído do Exército pela porta dos fundos tinha sido de repente convertido em mito?”, questiona.
MUITO PLANEJAMENTO – “Essa candidatura foi muito bem pensada, planejada, e foi usada muita história de cobertura para disfarçar o envolvimento desse grupo, como aquela novela (da escolha) do vice. Falaram no Magno Malta, no príncipe (Luiz Phelippe de Orleans e Bragança), na Janaína Paschoal, mas a única dúvida era se seria o (general Augusto) Heleno ou o (general Hamilton) Mourão.”
A idade avançada de Heleno acabou sendo decisiva, e Mourão foi o escolhido, completa o coronel. A chapa Bolsonaro-Mourão venceu as eleições, e o Partido Militar ocupou o governo e a máquina pública, diz Pimentel.
O coronel diz que o mesmo grupo agora está se preparando para continuar no poder. “Repito: com ou sem o atual presidente da República”, pontua.
MOURÃO E SANTOS CRUZ – Ele calcula que uma possibilidade passa por Mourão — “podendo ser ele o cabeça de chapa” — ou pelo general Santos Cruz, “como o candidato de uma frente ampla”.
Pimentel atuou junto com Santos Cruz em 2016 em um grupo de trabalho do Estado Maior do Exército que era supervisionado pelo coronel, ainda na ativa, e orientado pelo general, que já estava na reserva.
“Talvez o Mourão passe para o segundo turno. Talvez seja o Santos Cruz”, especula Pimentel. “Mas o Partido Militar vai estar no segundo turno no ano que vem.”