Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, o compositor Helder Oliveira, afirmou: “Na minha opinião, há ainda dois grupos de compositores de música contemporânea, os que compõem com brasilidade explícita, que podem ser chamados de nacionalistas, e aqueles que não apresentam explicitamente aspectos da cultura brasileira. Uma proposta brasileira, portanto, pode existir tanto no primeiro grupo, que exala nacionalismo por meio de ritmos, texturas e características melódicas típicas da música “acadêmica” tradicional e de tradição oral, como no segundo grupo, através da brasilidade abstrata, apresentada na forma de títulos alusivos, uso de instrumentos musicais brasileiros, ideias inspiradas em enredos locais e a própria diversidade do povo brasileiro representada musicalmente por uma variedade de propostas sonoras em simultaneidade ou justaposição.” Para o compositor:
“Existe o racismo estrutural no Brasil. Gestos, situações e falas intrínsecas da nossa cultura promovem de forma direta ou indireta a exclusão e preconceito racial. Há ainda um menosprezo não somente pelo negro, mas pelo pobre, feio, homossexual etc. (…) Já sofri inúmeras vezes o racismo social, implícito, quase que sem intenção, mas também doloroso. Já fui excluído momentaneamente de acessos a locais físicos e fui menosprezado, mas por causa das palavras de conforto de amigos não me desanimei.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Helder Oliveira: Na minha opinião, nenhuma das três. Cada um desses termos —
utilizados para representar um tipo de música com sonoridade diferente da que se ouve
geralmente nas ruas, saraus e espaços de diversão — tem uma denotação equivocada.
Sobre o primeiro termo, uma música dita popular pode, por exemplo, ser apresentada
na forma de concertos por uma orquestra. Arranjos de músicas consagradas nas rádios
e TV são comumente interpretadas por orquestras, e há ainda o fato de que uma
composição impopular pode incorporar células rítmicas e/ou maneirismos melódicos
típicos da música folclórica ou da música dos pequenos grupos de instrumentistas de
rua. Já “música erudita” discrimina a música “do povo”, colocando-a como um tipo de
música sem qualidade artística aceitável. Embora haja casos em que compositores
considerados como não eruditos tenham estudado em escolas especializadas de música,
o tipo de conhecimento adquirido fora dessas instituições também é bastante rico e
focaliza determinados aspectos não muito trabalhados nas aulas de teoria e prática,
como por exemplo as “conversas” melódicas entre os instrumentos (flauta e violão) das
extremidades das alturas no choro, contendo um improviso controlado que segue um
conceito de complementaridade e preponderância. “Música Clássica” é o mais
equivocado de todos os termos, pois denota a música feita no período clássico da
História da Música. O termo é tão equivocado que tudo o que não soa tradicional, ou
seja, que não utiliza aspectos consagrados das estruturas composicionais — como por
exemplo o sistema tonal — deveria ser descartado dessa classificação, mas às vezes não
o é. Por fim, como solução, poderia se falar na distinção entre música de massa e música
sem ser de massa. Alguns usam o termo “música acadêmica” para destacar que a
estrutura da composição apresentada vem de um tipo de estudo específico. Esse
poderia, talvez, ser o termo mais apropriado.
Porém, até mesmo dentro da universidade, principalmente nos EUA, há compositores “teóricos” e compositores “artistas”, que não partem de um estudo analítico ou planejamento rigoroso e complexo para depois criarem suas obras.
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? O quanto de potiguar podemos identificar no seu piano e instrumentos de sopro que encontramos nas suas obras gravadas? Qual seu interesse pela música e as práticas musicais do Rio Grande do Norte?
Helder Oliveira: Embora a maioria das obras do meu catálogo contenha características
similares, gosto de pensar que sou um compositor plural, que compõe músicas tonais,
outras com técnicas expandidas, outras com massas sonoras, experimentais etc. Algo
como “poliestilismo” composicional. Apesar dessa minha preferência, é notável que
uma grande quantidade de minhas obras se embebede da música popular e folclórica,
através do uso de ritmos típicos desse tipo de música, bem como seu perfil melódico.
Um fato interessante que gostaria de mencionar é que não sou potiguar. Sou o único
paraibano da minha linhagem familiar recente, cujos membros encontram-se em
Pernambuco. Então, vivi minha infância tanto na Paraíba como em Pernambuco. Isso
influenciou bastante minha forma de perceber a música, pois pude presenciar, tal como
dizem, o maior São João do mundo (em Campina Grande-PB) e o melhor São João
(Caruaru-PE). Por muito tempo fui radicado no Rio Grande do Norte, mas infelizmente
não tive muito contato com a música “do povo” local. Para a minha felicidade, a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) — local de minha formação
acadêmica inicial — me apresentou canções de tradição oral e grupos de dança e
percussão desse tipo de música. Então, eu ainda não utilizo conscientemente ritmos
potiguares nas minhas composições, embora tenha grande interesse em pesquisar esses
ritmos e práticas musicais potiguares nas minhas futuras obras. Por fim, o ouvinte
poderá ouvir, de forma explícita nas minhas obras, ritmos de danças mais presentes em
Pernambuco e Paraíba, tais como, maracatu, baião, xote e xaxado, inseridas
conscientemente a fim de enriquecer o planejamento composicional. Vale salientar que,
apesar desses ritmos serem usados deliberadamente, a escolha ocorre de forma natural,
visto que os gêneros nordestinos estão em mim interiorizados por causa da minha
vivência.
Além disso, de forma inconsciente, o ritmo e caráter melódico das minhas músicas que não têm como base células de ritmos nordestinos contêm traços do regionalismo.
Prestes Filho: Os compositores negros como o Padre José Maurício Nunes Garcia, Henrique Alves Mesquita e Francisco Braga, entre outros, são referências culturais e étnicas para você? Nos EUA o uso de percussão pelos africanos escravizados foi proibido, o que fez a população negra levar a linguagem musical dos ancestrais para a clarineta, saxofone, trompete e piano – instrumentos que os escravocratas consideravam ser exclusivamente de brancos. Hoje estudiosos, como o historiador Alessandro Ventura, em sua tese sobre a “Memória e a Cultura Negra nas Américas”, na Universidade Paris III, reconhecem que negros levaram a percussão, inclusive, para o piano. Na sua obra podemos encontrar frases que remetem as suas origens culturais?
Helder Oliveira: Não tive muito contato com as músicas de tais compositores. A música
brasileira é ainda um pouco abordada na formação do músico em universidades,
embora isso não seja de certa forma uma desculpa para a minha falta de contato com
ela. A minha referência negra na música impopular (“acadêmica”) é mais atual, tendo
como exemplos os compositores baianos — em destaque meus colegas Natan Ourives,
Danniel Ribeiro e Vinicius Amaro — e o compositor americano James Lee III, que é meu
grande amigo. Gostaria de mencionar que prefiro pensar nas circunstâncias originais do
compositor, como seu local de nascimento e infância e suas condições de vida, ao invés
de focalizar apenas na questão de cor de pele. Acho magnífico, por exemplo, a Academia
Brasileira de Música ter um compositor do interior do Ceará em uma de suas cadeiras,
o professor Liduino Pitombeira, quem eu tive o privilégio de estudar. Apesar das
dificuldades, Pitombeira acumulou vitórias na sua produção artística e bibliográfica que
o fizeram chegar onde está agora. No que diz respeito às minhas origens culturais, a
música africana está presente em minhas obras de forma internalizada, por “osmose”,
e sistematicamente através do uso de síncopes afro-brasileiras que moldaram as células
rítmicas dos gêneros musicais brasileiros que utilizo, como por exemplo o maxixe. Mas
as minhas origens culturais, tal como a dos brasileiros, não se restringem às africanas. A
música de tradição oral do Brasil, muito utilizada nas minhas músicas, tem forte
bagagem indígena e presença portuguesa, holandesa e espanhola, e esse tipo de música
forma uma identidade brasileira. Entretanto, certos movimentos de uma composição
minha, Suíte Gestaltina (2020), Op. 50, para piano solo, teve inspiração em ritmos
africanos, mas a pesquisa sobre esses ritmos não teve como objetivo formar uma
consciência negra.
Os ritmos foram utilizados para fins composicionais e formação de uma linguagem própria, que se baseia em células rítmicas de música de tradição oral.
Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a crítica da música contemporânea no Brasil? Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho que merecem seu reconhecimento no campo da música contemporânea no Brasil e no exterior?
Helder Oliveira: Não sou de ler constantemente críticas musicais em jornais e revistas, mas através das mídias sociais tenho tido acesso aos textos rebuscados do Samuel Cavalcanti Correia e principalmente aos textos do Irineu Franco Perpetuo. Posso falar um pouco mais sobre o trabalho desse último, que vem buscando acompanhar incessantemente as novidades musicais no cenário nacional e internacional e valorizar a produção artística de brasileiros por meio de seus textos, principalmente na Revista Concerto e em seu livro “História Concisa da Música Clássica Brasileira”.
Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação.
Helder Oliveira: A minha formação musical tem início nas músicas de Beethoven,
Mozart, Strauss Jr., Vivaldi, Chopin, Liszt, Bach, Handel e Haydn. Costumava ouvi-las
desde muito pequeno. Na adolescência, pude conhecer obras de Edino Krieger,
Hindemith, Philip Glass e outros compositores, pois participava de uma camerata de
flautas doces do CEFET-RN, e o regente, Roderick Fonseca, apresentava obras do século
XX aos membros do grupo. Aos 17 anos, durante a universidade, tive acesso a diversos
compositores incríveis cujas obras participavam do meu cotidiano, tais como Vaughan
Williams, Walton, Bernstein, Bloch, Schnittke, Stravinsky, Scelsi, Bartók, Arvo Pärt, Reich
e principalmente Messiaen. Para ingressar no curso de mestrado na UFPB, tive que me
aprofundar no repertório de música do século XX. Dentre as músicas que mais me
influenciaram e me agradavam, destacam-se as obras de Gubaidulina, Britwistle, George
Crumb, Britten, Lutoslawski, Xenakis, Penderecki, Stockhausen, Varèse, Alban Berg,
Takemitsu, Ligeti, Sciarrino, Carter, Maxwel Davies e Ruth Crawford Seeger. Dentre os
compositores brasileiros, sou apreciador das obras de Almeida Prado e Gilberto
Mendes. Também acompanho e me identifico nos trabalhos dos grandes e queridos
Jorge Antunes, Marlos Nobre, Ronaldo Miranda e Alexandre Schubert. No cenário
internacional, admiro e acompanho os trabalhos de James Lee III, Thomas Adès, Simon
Steen-Andersen, Beat Furrer e Unsuk Chin. Por fim, dentre as obras que moldaram meu
pensamento musical destacam-se Réquiem, de Mozart, O Cravo Bem Temperado, livros
I e II, de Bach, A Sagração da Primavera, de Stravinsky, Sinfonia Turangalîla, de
Messiaen, Asyla, de Adès, Quarteto de Cordas N.º 4, de Bartók, Sequenza III, de Berio,
Danças Folclóricas Romenas, de Bartók, Réquiem, de Ligeti, Piano Trio, de Bernstein,
Missa Brevis em Ré, de Britten, Kammermusik 1 e 2, de Hindemith, Sinfonia em Três
Movimentos, de Stravinsky, Concerti Grosso 1 e 2, de Schnittke, Offertorium, de
Gubaidulina, e Quarteto para o Fim dos Tempos, de Messiaen.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Qual o seu interesse na música eletroacústica?
Helder Oliveira: Minhas músicas passeiam por várias vertentes da música a partir do
século XX. Irei apresentar alguns exemplos. Incursões no serialismo de meados do século
XX (Babbitt e Boulez) estão presentes na minha obra Mini-Suíte Trevo (2012-13), Op. 15,
para trompete e piano; neoclassicismo está presente incipientemente em Criancice
(2012), Op. 1, para quarteto de flautas doces, Sonata (2007), Op. 4, para oboé e piano,
e em Kadidja (2012), Op. 12, para jazz band; influências do jazz estão presentes em
Cocoon Jazz (2009), Op. 8, e Kadidja; o minimalismo tem como representante em meu
catálogo a obra Minimus (2011), Op. 9, para grupo de violas/cellos/clarinetas;
romantismo tardio ou início da música moderna tem como representante L’appel du
vide (2018), Op. 37, para piano ou quinteto de palhetas, e outras obras que utilizam
polimodalismo, já mencionadas anteriormente, e politonalismo (Five Micropieces for
Piano, 2008, Op. 7); música textural (massas sonoras) foi o foco das obras Decathlon
(2013), Op. 18, para quinteto de sopros e quinteto de metais, e Progressões (2013), Op.
14, para orquestra de cordas, e está presente em determinadas seções de outras peças;
atonalismo do expressionismo está presente na maioria das minhas obras, e o
atonalismo livre está presente em Sonhos de Dali (2005), Op. 2, para piano solo, e
Decathlon por exemplo. Infelizmente, não tive oportunidade de participar de oficias de
composição eletroacústica.
Sou apreciador da música dessa vertente e tenho conhecimento teórico apenas. Aos poucos tentarei me dirigir à composição eletroacústica. É somente uma questão de tempo e oportunidades.
Prestes Filho: Suas composições foram premiadas e executadas no Brasil e no exterior – Alemanha, EUA, Canadá e Portugal. Seus prêmios são frutos exclusivos do seu talento ou demonstra que a música brasileira contemporânea é reconhecida mundialmente e atrai interesse? Você está seguindo por um caminho aberto por outras gerações?
Helder Oliveira: Há dois tipos de prêmios: por meio de concursos e por nomeação.
Quase 100% dos prêmios de composição em concursos, os quais participei, são
concedidos aos compositores vencedores após uma avaliação de partituras submetidas
sem informações sobre o compositor, ou seja, sem nome e local de nascimento. Os
poucos que permitem tais informações são aqueles concursos exclusivos para
compositores de início de carreira. Dessa forma, não tem como saber se a música
submetida é brasileira, por exemplo, a menos que a banca de julgamento conheça certas
características e padrões da música do nosso país. Na verdade, para que haja esse
reconhecimento, é preciso que a música tenha aspectos musicais brasileiros facilmente
perceptíveis, como uso de percussão e ritmos característicos. No que se refere ao
reconhecimento e interesse mundial da música brasileira contemporânea, eles podem
ser vistos em prêmios por nomeação concedidos a certos brasileiros notáveis, tais como
o querido Arthur Kampela, pelas suas competências e valor artístico de suas obras. Ainda
não tenho um prêmio de tal tipo. Voltando a falar sobre os prêmios de concursos de
composição, os meus resultados positivos são frutos de um talento aprimorado ao longo
dos anos, passando por muito esforço e estudo pesado. O conhecimento que tenho
ainda é muito pouco, mas à medida que vou aprendendo sinto necessidade de externar
esse novo conhecimento na forma de composição, e os resultados positivos me dão
ânimo para continuar na trajetória artística. Professores e intérpretes das obras
vencedoras têm parte desses méritos também, pois a influência, ensino e observações
fornecidas por eles formam um nível de trabalho colaborativo enriquecedor, lapidando
tais obras musicais. O caminho que sigo é a continuação da trajetória de compositores
brasileiros que se dedicaram de corpo e alma à música. Fico muito feliz em participar
dos mesmos festivais, ser convidado para fazer palestras e ser entrevistado tal como
eles são. Agradeço novamente aos organizadores desses eventos e séries.
É também uma honra representar a “nova” geração de compositores do país. “Nova” entre aspas, porque há compositores mais novos que eu participando ativamente no cenário musical brasileiro e no mundo.
Prestes Filho: Em “Impressões nº1” a palavra, a voz e a interpretação dramática compõem um único corpo. A palavra inspira a sua música ou a música vem antes da palavra? Detalhe as etapas de composição desta obra? Quais projetos você está desenvolvendo com a mesma linguagem?
Helder Oliveira: Nas minhas composições, na maioria das vezes, elementos musicais
vêm antes dos elementos textuais, porém em Impressões – n.º 1 (2011), Op. 10, o texto
foi pensado durante o seu planejamento composicional. Essa obra faz parte de uma
série de peças para instrumentos não acompanhados que utilizam predominantemente
técnicas estendidas dos instrumentos, inspiradas nas Sequenze, de Berio. Até agora, há
um total de cinco obras na série “Impressões”, a última ainda não estreada. Impressões
– n.º 1 é a minha segunda obra mais interpretada e foi selecionada para participar do
Twin Cities New Music Festival, 2020, Minnesota, EUA, mas por causa da pandemia ela
será apresentada este ano em formato virtual. Ela é uma música experimental, ou seja,
seu resultado final foge muito além do meu controle como compositor. Nela, utilizo os
dois ramos da música experimental: acaso na composição e opção na performance. No
que se refere ao primeiro ramo, os aspectos musicais decididos pelo acaso durante o
planejamento composicional foram: dinâmica, recursos tímbricos modernos e tempo. O
âmbito das possibilidades de cada aspecto foram: a) ppp a fff — total de 8 componentes
para a dinâmica; b) grupos de técnicas estendidas numerados de 1 a 8 (1 – nota mais
aguda possível ou nota mais longa possível, 2 – flutter tongue, 3 – inspirar/expirar com
voz ou sem voz, 4 – efeitos com abertura da boca e/ou nasal, 5 – fonemas ou fala, 6 –
trêmulo gutural ou com a mão, 7 – batida de língua ou som de beijo, 8 – Sprechstimme
ou Sprechgesang); c) tempo: há três progressões aritméticas crescentes com razões
diferentes (2, 3 e 4, respectivamente) que definem a estrutura de Impressões – n.º 1 em
três seções. Cada intensidade é agrupada com uma quantidade de segundos de forma
inversamente proporcional, ou seja, quanto maior a intensidade, menor sua duração.
Veja a características das oito subseções (grupos temporais) da primeira seção, cuja
razão é 2:
Grupo: A B C D E F G H
Intensidade: fff ff f mf mp p pp ppp
Duração: 2s 4s 6s 8s 10s 12s 14s 16s
O acaso ocorre na decisão por sorteio da combinação do grupo (letra) com os grupos de
efeitos tímbricos (números) e na sequência dos eventos. O resultado foi a seguinte
ordenação, estabelecendo uma sequência que se torna padrão para toda a peça: 3G–
8D–7B–6F–5C–1A–2E–4H. Em relação à opção na performance, os elementos deixados
à escolha do intérprete são: altura limitada, ritmo (duração de cada som, que não deve
ter um padrão), número de repetições, sequência e duração das sonoridades dentro dos
blocos de muita atividade. Para o elemento altura, o intérprete escolhe uma nota dentro
do âmbito determinado na partitura. Antes da prática composicional, foi feita uma
serialização do aspecto registro de alturas que serviu de base para os seguintes grupos:
1 – notas mais graves que Dó3 (central), 2 – Dó3 a Si3, 3 – Fá#3 a Si3, 4 – Dó4 a Fá4, 5 –
Fá#4 a Si4, 6 – o mais agudo possível, 7 – Dó3 a Si3, e 8 – Dó4 a Si4. Embora seja precisa
essa distribuição das alturas, na partitura — e consequentemente na performance — a
delimitação de cada grupo supracitado não é determinada, fazendo com que o
intérprete tenha apenas uma noção visual do registro que ele utilizará durante a peça.
A sequência desses grupos que forma uma série foi feita ao acaso. A série formada foi a
seguinte: 3–4–7–6–8–2–5–1. Essa série é apresentada inicialmente e variada no
decorrer da obra. Ao todo, há 25 grupos temporais: oito para a primeira seção, 8 para a
segunda e 9 para a terceira, que sofreu ligeiras adaptações na progressão aritmética. As
três seções estão separadas por pausas indicadas por caesuras com tempos definidos,
de 2 e 3 segundos, respectivamente. As outras composições da série “Impressões”,
contêm certos momentos de liberdade na performance em aspectos musicais distintos,
porém não se comparam ao nível de experimentalismo presente em Impressões – n.º 1.
A que mais poderia se assemelhar é a quinta peça da série, Impressões – n.º 5 (2019),
para flautim solo, e com previsão para estreia ainda este ano. Vale salientar que essa
série não tem prazo para encerramento.
Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira?
Helder Oliveira: Os compositores brasileiros vivos de música contemporânea seguem as
tendências mundiais e também fazem inovações sonoras e teóricas. Estão
acompanhando o desenvolvimento artístico mundial, sendo capazes de representar
bem o país. Estão contribuindo para a formação de novas gerações antenadas com a
arte contemporânea mundial e que serão capazes de fazer inovação. Na minha opinião,
há ainda dois grupos de compositores de música contemporânea, os que compõem com
brasilidade explícita, que podem ser chamados de nacionalistas, e aqueles que não
apresentam explicitamente aspectos da cultura brasileira. Uma proposta brasileira,
portanto, pode existir tanto no primeiro grupo, que exala nacionalismo por meio de
ritmos, texturas e características melódicas típicas da música “acadêmica” tradicional e
de tradição oral, como no segundo grupo, através da brasilidade abstrata, apresentada
na forma de títulos alusivos, uso de instrumentos musicais brasileiros, ideias inspiradas
em enredos locais e a própria diversidade do povo brasileiro representada
musicalmente por uma variedade de propostas sonoras em simultaneidade ou
justaposição.
Prestes Filho: Por favor, descreva cada uma das fases de sua trajetória. Apresente aquelas suas obras que considera serem as mais significativas. Em especial, gostaria de conhecer o processo de invenção das obras para orquestra sinfônica: “Ascensão”; “Hudhud”; “Frustum”; “Kesem”; “Gênesis”; “Segmentos”; “Dimensões”; “Guerra pela sucessão do trono”; e “Ventos do Destino”. O que aproxima e o que as distancia as mesmas?
Helder Oliveira: Talvez seja difícil pensar em fases composicionais, por eu ser um
compositor de início de carreira e jovem. Isso porque tenho poucas obras em meu
catálogo. A pergunta foi vinda em uma hora boa, pois fazia tempo que eu gostaria de
escrever algo sobre os distintos aspectos da minha linguagem musical no decorrer dos
anos. Essa vai ser a primeira vez que faço uma categorização das minhas obras segundo
critérios diversos, como estilo. O objetivo é encontrar as fases da minha trajetória, e
essa classificação eventualmente pode mudar à medida que novas reviravoltas da minha
forma de compor apareçam. Primeiramente, é preciso informar que meu catálogo
começa em 2002 com a obra Criancice, Op. 1, por ela ter sido gravada e lançada em CD
pela Camerata de Flautas do CEFET-RN. Eu componho desde os seis anos de idade,
porém só tenho um trabalho registrado em partitura durante minha infância e outro
cujas ideias foram reaproveitadas mais adiante. Esse trabalho em partitura consiste em
um Introitus de Réquiem que eu preciso resgatar, pois não sei onde o material se
encontra. Posso considerar no meu catálogo o fim da primeira fase composicional
marcado pela obra Cocoon Jazz (2009), Op. 8, para sopros de câmara e percussão. Essa
primeira fase (2002–2009) consiste em obras predominantemente tonais, resultado de
estudos de trilha sonora, orquestração e harmonia com o professor Manoel Nascimento
no Instituto Waldemar de Almeida (Natal-RN) e contraponto com o professor Ivo Sousa.
Ainda nessa fase, há obras vindas de experimentações como autodidata e dos primeiros
estudos sistemáticos em composição contemporânea com o professor Marcus Varela
(UFRN). Dessa fase, destaco a obra Sonhos de Dali (2005), Op. 2, para piano solo, que
utiliza atonalismo livre, notação proporcional e técnicas expandidas do instrumento. A
segunda fase é curta (2011–12), e consiste em sua maioria em exercícios composicionais
a partir de estudo individual, por meio de leituras de artigos e livros, com objetivo
preparatório para a seleção do mestrado na UFPB. As obras nessa classificação são a
obra minimalista Minimus (2011), Op. 9, para grupo de violas/cellos/clarinetas, Celle
(2011), Op. 11, para quarteto de saxofones — as duas sendo as primeiras obras do meu
catálogo que utilizam a Teoria dos Conjuntos para a organização das alturas —, e
Impressões – n.º 1 (2011), Op. 10, a primeira a abordar técnicas expandidas de forma
sistemática e a primeira obra encomendada. Dessa fase, destaca-se essa última citada,
por ter sido bastante interpretada e selecionada em festivais nacionais e internacionais.
A terceira fase pode ser considerada entre 2012 a 2016 e consiste nas obras oriundas
dos estudos em composição contemporânea com o professor Liduino Pitombeira
durante o mestrado. Essa fase inicia-se com Devaneio (2012), Op. 13, para quarteto de
cordas, minha primeira obra a vencer um concurso de composição e logo provavelmente
o concurso mais importante do cenário nacional de música “acadêmica”, o “Prêmio
Funarte de Composição Clássica 2012”, promovido pela Funarte, vinculada ao antigo
Ministério da Cultura. Destacam-se ainda nessa fase as obras Plural (2013), Op. 16, para
oboé/sax soprano e clarinete, por ser a minha obra mais interpretada até o momento,
e as obras para orquestra Segmentos (2013), Op. 19, Kesem (2014), Op. 21, Resiliens
(2015), Op. 24, e Frustum (2015), Op. 26, por estarem em primeiro lugar em concursos
de composição. Posso considerar como obra que marca minha quarta fase (2017–19) o
duo para violino e piano intitulado Ponteado, Op. 31. Essa foi a minha primeira obra
completada assim que ingressei no curso de doutorado na UFRJ, sob orientação de
Liduino Pitombeira. Ela utiliza uma técnica composicional desenvolvida por Pitombeira,
a Modelagem Sistêmica, que até então eu não havia trabalhado e tive que aprender
durante o curso. Um dos resultados desse estudo (Apophrades, 2017, Op. 33, para grupo
de metais e percussão) foi bem-sucedido, visto que foi vencedora do I Concurso
Itamaraty de Composição Musical, promovido pelo Ministério das Relações Exteriores.
Essa obra utiliza a técnica de Pitombeira, mas teve acompanhamento do professor
Rodrigo Cicchelli, da UFRJ. É nessa quarta fase que revejo meus princípios como
compositor de música contemporânea, pois até então tinha sido influenciado pela
tendência de considerar música contemporânea (e de valor) a música em linguagem
atonal. Mas os professores da UFRJ expandiram meus horizontes. A partir dos meus
estudos na UFRJ, pude revalorizar e resgatar a música modal e tonal já estudas por mim
na primeira fase. Pude, então, enaltecer e utilizar novamente a harmonização paralela
“hollywoodiana” e as escalas modais (incluindo as exóticas) em um sistema polimodal
ou através de técnicas de modulação escalar. Exemplos de polimodalismo no meu
catálogo são as obras Hudhud (2018), Op. 36, e Ascensão (2019), Op. 39, ambas para
orquestra sinfônica. Essa última obra se destaca por ser a minha primeira composição
orquestral a vencer um prêmio internacional, o Internationalen Eisenacher Bach
Kompositionspreis 2020, Alemanha. Dando continuação, considero como minha fase
mais recente a quinta fase (2019– ), que é marcada pela inserção de música para coro
no meu catálogo, a partir da obra Holy Spirit, Ever Dwelling, Op. 40. Essa obra foi minha
primeira obra composta ao chegar nos EUA e recebeu o 1.º lugar no A Hymn of Mercy
Competition 2019, Irlanda. Das 19 obras dessa fase, onze são para coro, incluindo
canções antigas que ainda não tinham sido anotadas em partitura e uma que teve
supervisão de dois membros do Chorus Austin, Texas, um compositor (Carlos Cordero)
e o regente do coral e diretor artístico Ryan Heller. Essa obra, intitulada El Cielo en Una
Estrella (2020), Op. 55, para coro a cappella, está prevista para ser interpretada pelo
Chorus Austin em dezembro deste ano. Em relação às peças para orquestra sinfônica,
primeiramente queria agradecer pelo interesse em conhecer o processo composicional
dessas obras. O que as distanciam são as fases composicionais nas quais estão inseridas.
Ascensão e Hudhud são da quarta fase e fazem parte de um grupo de peças que utilizam
escalas modais. Ascensão utiliza os sete modos eclesiásticos como base, uma para cada
seção da obra, conectadas por mudança mínima de ascensão por semitom de um dos
graus escalares. Em algumas seções, além da escala principal determinada para ela,
outras escalas foram utilizadas concomitantemente (polimodalidade), contendo muitas
notas diferentes da escala-base. Há vários temas na obra, mas há dois temas que são
bastante reelaborados durante a peça. Certas células rítmicas de gêneros nordestinos
foram utilizadas como suporte rítmico em Ascensão, tais como as do xote, toada e
xaxado, para fazer menção à vida de Lampião em Pernambuco. Elementos do
nacionalismo musical, como uso de células rítmicas e características melódicas de
tradição oral, estão presentes nessa obra, e há um pôster de minha autoria na
plataforma da Syracuse University Libraries que detalha esses elementos. Em Hudhud,
utilizei principalmente dois temas pentatônicos como um fator estrutural ao longo da
peça. Esses temas originais foram inspirados nos cânticos Hudhud da comunidade de
Ifugao (Filipinas) e presentes nessa peça em uma variedade de ambientes sonoros.
Outras escalas modais e pentatônicas são utilizadas em Hudhud, e há uma mistura de
alguns dos gêneros tradicionais em todo o mundo. Essa obra também utiliza
polimodalidade tal como em Ascensão. Outras características em comum nas duas obras
são a presença de uma seção responsorial (pergunta e resposta entre solista e
orquestra) e uma seção final em andamento rápido contendo ostinato. Em relacão às
diferenças, Hudhud apresenta trechos com estrutura harmônica diferente,
Klangfarbenmelodia (distrubuição das notas de uma melodia passando por diversos
instrumentos) e ritmo oriental. Frustum, Kesem, Gênesis (2014), Op. 20, Segmentos e
Dimensões (2013), Op. 17, fazem parte da terceira fase e utilizam técnicas
composicionais oriundas dos meus estudos durante o mestrado, incluindo o atonalismo
através da Teoria dos Conjuntos. O aplicativo computacional CAGE (Computer Assisted
Gestalt Environment), criado pelo programador Raphael Santos, possibilitou a produção
de linhas melódicas segmentadas segundo as sugestões de Tenney e Polansky (1980)
para as seguintes leis de organização perceptual segundo a Teoria Psicológica da Gestalt:
proximidade (objetos que estão próximos entre si tendem a ser agrupados) e
similaridade (partes semelhantes tendem a se unir). A primeira seção de uma melodia
gerada por esse aplicativo foi selecionada para a elaboração do segundo movimento de
Segmentos. Essa obra, tal como Frustum, baseia-se pura e integralmente na aplicação
de princípios de organização perceptual segundo a Gestalt. Vale informar que
Segmentos é a obra vencedora do primeiro lugar no 1.º Concurso Nacional de
Composição Jorge Antunes em 2017. Frustum, por sua vez, foi a obra vencedora do 1º
Concurso de Composição Opus I 2015, promovido pela Orquestra Filarmônica de Goiás.
No segundo movimento de Segmentos e em Frustum, características específicas foram
atribuídas para reforçar a segregação de unidades gestálticas, como alternância de
naipes da orquestra, tratamentos harmônicos e tipos de textura. Os movimentos 1 e 2
de Segmentos apresentam características mais tradicionais em relação ao segundo
movimento. As outras seções da melodia gerada pelo aplicativo CAGE foram
aproveitadas em Kesem e Frustum. Em Gênesis, também se encontram sugestões
musicais para determinadas leis segundo a Teoria da Gestalt. Nessa obra, tal como em
Kesem, eventos bíblicos serviram como inspiração para a estrutura formal e gestos
musicais. No caso de Gênesis, há uma descrição dos seis dias da criação do mundo,
enquanto que em Kesem há uma descrição das dez pragas do Egito Antigo. Nessa obra,
a ação das forças da natureza serviu de base para o gerenciamento dos gestos musicais.
É ainda relatada em Kesem a ausência das pragas do Egito na terra dos judeus — cujo
provável nome seja uma derivação da palavra Kesem — em seções alternantes de
caráter e construção semelhantes. Essas duas obras também se assemelham em relação
ao uso extensivo de seções sem temas melódicos definidos, típico da associação dos
sons com os elementos da natureza e do mundo animal. Em relação às diferenças,
Gênesis, por exemplo, acrescenta uma disposição harmônica distinta nos acordes longos
em tutti, baseada na série harmônica e sua inversão. Kesem é a obra vencedora do 1º
lugar no 3º Concurso Nacional de Composição EM-UFRJ–Centenário Guerra-Peixe, em
2014, e Gênesis recebeu o segundo lugar no Concurso Nacional de composição GuerraPeixe: 100 anos, também em 2014. Frustum, Kesem e Gênesis também partilham outra
característica em comum além do uso de princípios gestálticos: a técnica de composição
harmônica denominada teias estruturais, utilizada em algumas obras de Ligeti. Minhas
três obras usam o tipo 2 da técnica, que consiste na transformação cromática de células
melódicas através de constantes expansões e contrações intervalares, uma nota e uma
voz por vez. Uma díade passa a ser um tricorde (em arpejo). Gênesis vai mais além ao
utilizar mais dois tipos de teias estruturais. No que se refere à obra Dimensões, ela foi
minha primeira composição orquestral sob orientação do professor Liduino Pitombeira.
Pude aprender através dessa obra diversas técnicas de orquestração, como
ressonâncias e defasagem em pirâmide, técnicas instrumentais, notação, endogenia
harmônica e parcimônia, procedimentos que eu passaria a utilizar em obras futuras.
Essa obra, junto a Mini-Suíte Trevo (2012-13), Op. 15, foi de grande importância na
minha mudança de linguagem musical por causa dessas e outras técnicas. Sobre a
descrição poética da obra, o tema de Dimensões e cada uma das suas quatro variações
são representações de um único ser vivo que atua em cinco dimensões paralelas
distintas, segundo as leis intrínsecas de cada uma dessas dimensões. Uma dimensão
difere da outra em aspectos como andamento, textura e caráter. Sobre orquestração,
Dimensões é talvez a mais rica de todas as minhas obras, pois há pequenos solos para
diversos instrumentos, alternância de famílias instrumentais em curtos intervalos
temporais, recorte da linha melódica para distribuição entre os instrumentos, acúmulo
progressivo de vozes para uma mesma melodia oitavada como reforço e uso de técnicas
diversas nas cordas. Essa obra recebeu o terceiro lugar no renomado Concurso Nacional
de Composição Camargo Guarnieri, edição 2013. Infelizmente, não pude assistir à
estreia de Dimensões, e não houve registro audiovisual dela. O mesmo ocorre com
Gênesis. Almejo em breve ouvir e assistir pela primeira vez a apresentação dessas obras
por alguma orquestra que valorize a música de compositores jovens vivos. Infelizmente,
são poucos os programas de concertos, principalmente no Brasil, que incluem obras
orquestrais de compositores vivos, principalmente se forem de início de carreira. A única
oportunidade para os jovens compositores acontece quando se vence concursos de
composição. Deixando essa digressão de lado, todas as obras orquestrais citadas até o
mento nessa resposta têm em comum certas características típicas da minha linguagem
musical, tais como: 1) as melodias são geralmente em grau conjunto; 2) o tratamento
harmônico é fortemente baseado no grau de endogenia, com a tendência para as
sonoridades dissonantes, 3) distinção clara entre materiais musicais através de recursos
métricos e rítmicos; 4) técnicas contrapontísticas globais, como fuga e passacaglia, e
locais, como o movimento contrário entre vozes; 5) uso da Teoria dos Conjuntos de
Classes de Alturas para geração de material melódico-harmônico; 6) evitação de
reiteração de classes de alturas nos primeiros tempos dos compassos; 7) presença de
subclímaxes; 8) padrão de transposições graduais de grupos de alturas (escales ou
classes de conjuntos); 9) mudanças de caráter geralmente a cada trinta segundos ou um
minuto; e 10) uso de padrão afro-brasileiro e células rítmicas da música de tradição oral.
Por fim, Guerra pela Sucessão do Trono (2008), Op. 6, e Ventos do Destino (2008), Op. 5,
são obras da minha primeira fase composicional, resultado dos primeiros estudos em
orquestração, harmonia, trilha sonora e contraponto. Ventos do Destino é bem simples,
pois o objetivo foi praticar os novos conceitos aprendidos, enquanto a outra é bem
robusta na proposta e eu pude ter mais liberdade nos aspectos texturais, melódicos,
harmônicos e rítmicos. Portanto, Ventos do Destino é um exercício composicional. Eu
faço questão de deixar algumas obras consideradas simples no meu catálogo para
apresentar a variedade de estilos da minha produção e valorizar meu esforço nos
estudos composicionais. A ideia nessa peça foi apresentar coerentemente um tema que
surge após uma introdução. Esse tema é interpolado por seções contrastantes ou
reiterado em textura variada. O objetivo final foi dominar a “extramusicalidade” através
de ambientações musicais diversas sobre uma história pré-estabelecida, se não me
engano, ambientada no velho oeste. Em Guerra pela Sucessão do Trono, há também um
enredo por trás dos eventos musicais. É importante informar que essa obra é na verdade
um conjunto de três obras. O seu enredo é o seguinte: após o esplendor, doença e morte
do rei de uma terra longínqua e seu primogênito, narrativa descrita na primeira parte
do ciclo, os membros da família real apresentam-se em reunião para discutirem quem
será o novo rei. Durante essa reunião, divergências aparecem e pactos são desfeitos,
narrativa apresentada na segunda parte do ciclo.
Por fim, uma batalha sangrenta pela sucessão do trono real é descrita musicalmente na terceira parte. Essas duas obras orquestrais da minha primeira fase estão em semelhança com as outras em aspectos como: 1) as melodias são geralmente em grau conjunto, e 2) mudanças de caráter geralmente a cada trinta segundos ou um minuto.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares? Porque hoje é tão rara a presença de compositores negros na música de concerto do Brasil?
Helder Oliveira: Acredito que o compositor deve, sim, estar consciente do seu papel de
melhoria da cultura do país e participar, da maneira que ele pode, nas lutas populares,
pois a alienação aos problemas sociais e políticos é uma forma de cumplicidade. Uma
forma de participação eficaz é por meio de associações especializadas, nas quais o
compositor pode apresentar problemas e soluções principalmente em relação à cultura.
Um grande exemplo de compositor ligado às questões sociopolíticas é Jorge Antunes,
que faz parte da ABM, o maior representante da classe musical no país. É um órgão
reconhecido pelo governo federal cujo objetivo, segundo o próprio governo, é contribuir
junto a ele no estudo e solução de problemas para a melhoria da cultura brasileira. É
uma associação cujos membros incluem intérpretes, musicólogos, educadores e
compositores. Em relação à presença rara de compositores negros na música “de
concerto” no Brasil, isso se deve a diversos fatores. Um deles é a falta de condições
necessárias para a formação musical especializada de jovens. A maioria da população
no Brasil vive em situação delicada, e os negros são predominantes. Mesmo havendo
escolas disponíveis, elas são sucateadas, mas o problema maior é que a manutenção da
casa fala mais alto que a formação escolar. Os responsáveis precisam que suas crianças
trabalhem cedo para ajudar nas despesas da família. A educação é interrompida cedo.
É um ciclo difícil de ser quebrado. Outro motivo para essa interrupção educacional é o
meio em que o jovem simples vive, cheio de opções que podem atrapalhar sua vida,
como as drogas e prostituição. O jovem pobre, para sobreviver, precisa passar por vários
caminhos, excluindo muitas vezes a música. Aos poucos esse cenário está mudando.
Projetos diferenciados para a inclusão e permanência do jovem humilde principalmente
no ensino superior foram elaborados. No que diz respeito à população negra, ela
alcançará (tenho esperança) mais e mais cargos ocupados apenas por brancos. Outro
fator para a pouca presença de compositores negros no Brasil, a meu ver, é que não há
projetos de educação musical suficientes e nem projetos que incentivem a criação.
Quando o jovem consegue entrar em um programa de ensino musical — como o SESI,
cursos de extensão em instituições federais e diversas ONGs —, é apresentado para ele
cursos de instrumentos, nada de curso de análise ou composição. E se ele entrar em
curso superior, a oportunidade de emprego será geralmente priorizada, logo escolherá
fazer curso de licenciatura e/ou bacharelado em instrumento, para poder ganhar
dinheiro lecionando e/ou tocando em instituições (por meio de concurso inclusive) ou
em casas de festas, casamentos, bares ou até mesmo na rua. A composição musical no
Brasil não tem apoio devido. São raros os programas de residência artística para
compositores no país promovidos por orquestras ou grupos de câmara e não há
empregos para compositor residente em instituições musicais ou de ensino
especializado. Só resta para o compositor trabalhar com música popular ou, caso haja
concurso, ser professor em universidades. Gostaria de mencionar, por fim, um terceiro
fator, o racismo estrutural. Gestos, situações e falas intrínsecas da nossa cultura
promovem de forma direta ou indireta a exclusão e preconceito racial. Há ainda um
menosprezo não somente pelo negro, mas pelo pobre, feio, homossexual etc. É a falta
de empatia e respeito que fazem com que ainda haja preconceito de todos os tipos no
Brasil. Isso é preocupante porque uma das consequências do preconceito é o
assassinato ou suicídio. A outra consequência é a marginalização desses grupos pelos
governantes e sociedade, não os colocando como prioridade. Em relação à minha
experiência, esse texto contém um pouco do que passei, pois tive aulas de trompete no
SESI-PB, e também graças aos meus pais não precisei largar os estudos. Minha primeira
fonte de renda veio por causa dos meus estudos. Fui estagiário do Departamento de
Artes no CEFET-RN aos 15 anos e por ter estudado nessa excelente instituição pude
ingressar no curso superior. Além disso, a minha religiosidade me manteve de certa
forma distante das más influências e manteve minha mente ocupada para o bem. Na
universidade, cursei Licenciatura para ter mais chances de conseguir emprego. Já em
relação ao racismo, já sofri inúmeras vezes o racismo social, implícito, quase que sem
intenção, mas também doloroso.
Já fui excluído momentaneamente de acessos a locais físicos e fui menosprezado, mas por causa das palavras de conforto de amigos não me desanimei.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Helder Oliveira: Se o governo e a sociedade não mudarem, a tendência é que se reduza
ainda mais os projetos e verba para a música e cultura em geral, projetos esses
organizados por meio de políticas públicas e iniciativa privada. As instituições privadas
seguem a onda econômica planejada pelo governo. Essa perspectiva é preocupante,
pois se houver interrupção momentânea de determinados projetos, a retomada pode
ser muito difícil, pois as pessoas, principalmente os governantes e líderes, podem achar
normal não haver mais programas culturais e, assim, não irão se preocupar em retomar
certos projetos culturais. A interrupção será permanente! Tive o privilégio de participar
de alguns projetos de valorização dos compositores de música contemporânea que
contavam com apoio financeiro suficientes. Alguns deles ainda resistem hoje em dia,
como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea. Se não lutamos com ardor para uma
mudança efetiva na política brasileira, que pelo menos possamos ser conscientes no
momento da votação. Porém o desafio de superar esse problema demanda a
participação constante não só por parte do governo, mas também da sociedade. O
desafio existe porque há falta de conscientização geral no que diz respeito à importância
da cultura nas novas vidas, que é capaz de salvar a alma, promover reflexão sobre
questões sociais, morais etc. e levar boas condições de vida para as pessoas de famílias
simples através de geração de empregos.
Para que haja essa conscientização, é preciso que líderes aproveitem seus cargos para dar exemplo e também propagar por meio de discursos, palestras e conversas a importância da cultura na vida do povo.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Helder Oliveira: Dentre as orquestras que mais admiro, menciono a Orquestra
Filarmônica de Goiás, que apesar dos problemas de gestão apresentou concertos com
programas incríveis sob a batuta e direção artística do maestro Neil Thomson. Houve
várias composições do século XX, incluindo de brasileiros, interpretadas por essa
orquestra formada por músicos incríveis. Devemos fazer a nossa parte para apoiar esses
músicos de todas as maneiras possíveis. Outra orquestra, a Filarmônica de Minas Gerais,
sob direção artística e regência de Fabio Mechetti, tem um impecável programa de
recitais e inclui o Festival Tinta Fresca, que mexe com o cenário orquestral brasileiro de
música contemporânea todo ano, com exceção dos anos pandêmicos. Nesse festival,
compositores submetem suas obras em um concurso anonimamente. O júri seleciona
obras finalistas para serem apresentadas em um recital aberto ao público. Os
compositores finalistas recebem passagens aéreas e hospedagem para acompanharem
os ensaios e fazerem observações sobre suas obras aos intérpretes ao regente
associado, em destaque o Marcos Arakaki (2011–19). O prêmio ao vencedor é uma
encomenda de obra para estreia em temporada futura da orquestra. Esse projeto é
grandioso e único no país.
O maestro que deve conhecer a minha linguagem composicional é André Cardoso, diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica da UFRJ, visto que ele foi o que mais regeu minhas obras orquestrais. Ele fez a estreia de duas obras minhas, Resiliens e Hudhud, como parte dos prêmios de concursos nacionais de composição.
Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles?
Helder Oliveira: Com certeza. Gostaria primeiramente de externar minha felicidade com a notícia que finalmente a universidade da minha Licenciatura, a UFRN, tem agora o curso de bacharelado em composição. Estou ansioso pela trajetória dos alunos desse curso. Um nome da nova geração de compositores brasileiros que me vem à mente é Matheus Souza, bacharelando em violino na UNIRIO e que vem aprimorando sua linguagem composicional contemporânea desde os estudos com o professor Arthur Kampela. Matheus é dedicado e apaixonado por composição e já tem seleções em concursos internacionais. Outro nome, mas talvez não seja de uma geração anterior à minha, é Rodrigo Valente Pascale, mestrando na Western Michigan University, ex-aluno de Liduino Pitombeira na UFRJ. Rodrigo já vinha participando de eventos nacionais desde 2018, e desde o ano passado vem recebendo prêmios, distinções e seleções em concursos e eventos internacionais por suas obras, em sua maioria eletroacústicas.
Por fim, gostaria de citar um nome promissor, Amanda Jacometi, mestranda em composição na USP, sob orientação de Fernando Lazzetta.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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