Por Roberto Amaral –
A proposta orçamentária do governo para 2021 expressa um projeto político cujo objetivo é cortar pela raiz qualquer expectativa de desenvolvimento nacional. Uma vez levado a cabo, retornaremos à condição de colônia, tal a dependência na qual nos encontraremos.
Ela desmonta o ensino – o ponto de partida é a destruição da universidade pública, a quem devemos a formação de nossos mestres e doutores, e algo como 90% da pesquisa científica –, a saúde pública, desestabiliza o serviço público, congela investimentos e parte para destruir o que temos de sistema nacional de desenvolvimento científico e tecnológico, estruturado a duras penas a partir dos meados do século passado com as criações do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e a ampliação do ensino universitário.
O governo pretende reduzir em 1 bilhão de reais os recursos destinados às universidades federais e impõe uma queda de 17%, dos recursos da função Ciência e Tecnologia. Do que fica, 48,82% passam a depender de créditos suplementares. Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT são reduzidos a números próximos dos que lhe eram destinados em 2015! Esse fundo apoia financeiramente, entre outros, os programas estratégicos de pesquisa na área da defesa e é ainda a única fonte de recursos para financiamento da pesquisa tecnológica nas empresas. E o empresariado nada tem a dizer sobre isso.
Se é impossível pensar em industrialização ou reindustrialização, como é o nosso caso, sem base científico-tecnológica, de que resulta a inovação, é de igual sorte inviável cogitar de desenvolvimento científico sem formação acadêmica. Essa era uma preocupação brasileira nos meados do século passado, quando foram criados o CNPq e a CAPES. Pois a CAPES sofrerá, em 2021, uma redução de 10,27% em seu orçamento, considerando os magros recursos de 2020, que, ademais de magros, foram ainda contingenciados. O que isso significa? Menos bolsas de estudos, e bolsas com valores reduzidos. Mesmo assim, os valores prometidos só garantem oito meses de bolsas
Fundado, como a CAPES, em 1951, o CNPq tem como finalidade o fomento da pesquisa científica e tecnológica, e o incentivo à formação de pesquisadores de alto nível, mediante a concessão de bolsas de estudos e pesquisas, e o auxílio financeiro a instituições de ensino e pesquisa, cursos de pós-graduação e fundações estaduais que se destinam ao fomento do ensino e da pesquisa. O esvaziamento das fundações implicará a inviabilização da pesquisa nos Estados, com a exceção de São Paulo, onde, porém, o governador pretende apropriar-se de recursos da FAPESP. Pois o CNPq sofrerá, se aprovada a proposta do governo, uma redução de 57% de seus recursos, consideradas as cifras do orçamento de 2021. Só em bolsas de estudos a dieta representa 64% dos recursos alocados em 2020. Os recursos sobreviventes só garantem quatro meses de bolsas.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-INPE dedica-se a pesquisas científicas, desenvolvimento tecnológico e capacitação de recursos humanos, nos campos da ciência espacial e da atmosfera, das aplicações espaciais, da meteorologia e da engenharia e tecnologia espacial. Com seus satélites, por exemplo, mapeia o desmatamento na Amazônia. Mas o capitão não gosta dos dados que o INPE apura e revela.
Quando a Amazônia e o Pantanal são transformados em um fogaréu, o governo pune o INPE com um corte de 43,8% de seus recursos.
Há poucos consensos neste país, mas um deles certamente é relativo ao reconhecimento da competência da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-Embrapa. Não há quem ponha em dúvida seu papel, decisivo, no desenvolvimento da produção agrícola brasileira, ao permitir a expansão de sua fronteira. Graças à Embrapa é que o agronegócio se transformou no primeiro item de nossa limitada pauta de exportações.
Apesar disso, nem a Embrapa foi poupada, pois o corte a ela destinado representa uma redução de 53,6% de seus recursos.
O que tudo isso significa?
Voltamos aos tempos coloniais, quando a regra era não ensinar para que nada fosse aprendido, e, por isso mesmo, todo o conhecimento era o saber dos conventos dos padres, e o ensino “superior” era o das escolas militares de engenharia. O império seria governado por traficantes de escravos, latifundiários e representantes do latifúndio, que constituíam o poder legislativo e os gabinetes de uma monarquia descolada de qualquer noção de progresso ou indústria.
O desenvolvimento científico, pelo seu papel na dinâmica do capitalismo, de há muito vem sendo considerado como força produtiva. Esta questão se coloca com máxima pertinência quando se torna uma obviedade afirmar que o grande fator de produção, hoje, é o conhecimento, vale dizer, o domínio da ciência e da tecnologia, a capacidade de invento e criação, base de todo o desenvolvimento contemporâneo, inclusive da indústria. Se não se conhece um só exemplo de país desenvolvido que não seja, antes, uma potência industrial, e, por uma razão e por outra, um grande mercado consumidor, de igual sorte não há hipótese de desenvolvimento industrial sem prévio e sólido desenvolvimento científico e aplicação tecnológica. Estão à vista as lições dos EUA, da Comunidade Europeia, do Japão, da China e da Coreia do Sul. Essa história deita raízes na primeira revolução industrial (que perdemos) e se transforma em desafio de vida e morte quando ingressamos na chamada quarta revolução industrial, fundada na informática, na robótica, na cibernética e na inteligência artificial transformando o conhecimento (e sua aplicação) na matéria-prima do desenvolvimento.
A atual divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos caminha para a díade países detentores de conhecimento versus países dependentes de conhecimento, aqueles, capitães do progresso (de que se beneficiam seus nacionais); estes, servidores do passado e da pobreza, a que são condenados, majoritariamente, seus povos. A vala de separação será mais larga e mais profunda do que aquela que hoje separa países industrializados e país ditos “em desenvolvimento” ou, de ultimo, “emergentes”.
Estamos em face de um processo irreversível que decretará, por séculos, o atraso daqueles povos que não souberem dar o salto de qualidade exigido pelo desenvolvimento tecnológico, com todas as consequências conhecidas, inclusive sociais, em face das transformações que já se estão impondo no campo das relações de produção e do trabalho.
A inevitável e crescente substituição da mão de obra por operações automatizadas só não se transformará em crise social se novas vagas forem abertas em novas iniciativas a serem criadas pelo próprio desenvolvimento. Só o desenvolvimento produz desenvolvimento.
O desafio de nosso país, se almeja o progresso e a construção de uma sociedade menos injusta, é, pois, voltar-se, com todas as suas potencialidades, ao desenvolvimento científico acelerado; se quisermos ser contemporâneos, deveremos dar saltos de qualidade, tão grande é hoje nosso atraso, não apenas em face dos países líderes em desenvolvimento, mas mesmo em face dos chamados “emergentes”. Porque pouco investimos em ciência e tecnologia, porque nossa base industrial não se modernizou e, apêndice da indústria multinacional, não persegue a modernização.
Lamentavelmente, há a registrar a coerência de propósitos do governo, de que é síntese a proposta orçamentária. Trata-se de projeto diabólico, mas coerente e eficiente, pois até aqui conta com o silêncio da sociedade, a indiferença de uma grande mídia alienada dos interesses nacionais e de um empresariado deslocado dos interesses do país. Essas reduções de recursos orçamentários sobre atividades essenciais se somam às demais medidas que visam ao estancamento de qualquer possibilidade de retomada do desenvolvimento.
Não são, pois, fatos isolados a desmontagem da Petrobrás, a virtual renúncia aos frutos do pré-sal, a anunciada privatização da Eletrobrás (responsável pela geração e fornecimento de 40% da energia elétrica consumida pelo país), o desmonte do programa espacial e a entrega da base de Alcântara aos EUA, o desmatamento da Amazônia, as limitações impostas ao BNDES e os projetos de privatização da Caixa Econômica e do Banco do Brasil.
Os objetivos do bolsonarismo e seus associados daqui e dalém mar, generais em comissão e os procuradores do rentismo (Rodrigo Maia e Paulo Guedes) precisam ser barrados, e já, no congresso, com a rejeição da proposta orçamentária, cujo objetivo é impedir o desenvolvimento nacional, impondo-nos a dependência científica e tecnológica, industrial e econômica, por fim a dependência política e estratégica.
ROBERTO AMARAL – Escritor, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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