Por Jeferson Miola –
Em 31 de março e 19 de abril, o Brasil foi assombrado por mais uma escalada de ameaças e ataques de Bolsonaro e generais à democracia e ao Estado de Direito.
Essas duas datas, comemoradas como efemérides pelas cúpulas partidarizadas das Forças Armadas, representam, na realidade, mistificações ideológicas e celebrações farsescas.
O 31 de março, que marca o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart em 1964 e instalou a ditadura e o terror de Estado, jamais seria celebrado em qualquer democracia minimamente funcional. Afinal, é no mínimo paradoxal uma real democracia comemorar atentados que a debilitam e ameaçam sua própria existência.
No Brasil, entretanto, as cúpulas militares, protegidas pela impunidade imposta na transição tutelada e controlada, anualmente relembram a data em mentirosas e ultrajantes “Ordens do Dia” lidas nos quartéis, como aconteceu no último 31 de março.
Generais conspiradores que pisoteiam o direito à memória, à verdade e à justiça, como Mourão, Azevedo e Silva, Etchegoyen, Villas Bôas, Ramos, Braga Netto e demais, exaltam a ditadura como “revolução democrática” ou barbaridades do estilo. Vários deles, inclusive, elogiam facínoras como Brilhante Ustra e defendem a tortura e torturadores.
O 19 de abril, decretado em 1943 originalmente como “Dia do Índio”, a partir de 1994 passou a ser considerado, também, “Dia do Exército Brasileiro” [decreto presidencial].
A historiografia militar fixou esta data em alusão à “Batalha dos Guararapes”, de 1648 – evento que, na visão dos militares, seria “o ‘Berço da Nacionalidade’, cujos feitos marcaram a gênese do Exército Brasileiro” [sic] [Ordem do Dia de 19/4/2022 assinada pelo Comandante do Exército].
Ao atribuírem a esta batalha – travada em 19 de abril de 1648 e em 19 de fevereiro de 1649 pelas tropas portuguesas com apoio de indígenas e negros contra os invasores holandeses – o “mito fundacional” da nacionalidade e da identidade brasileira, os militares consideram a si próprios o “ente fundador” da Nação e da identidade nacional.
Isso não passa, porém, de tola mistificação para alimentar fantasias e delírios das cúpulas militares antiprofissionais e conspirativas que historicamente acalentam a ideia de um projeto próprio de poder militar para a condução permanente dos destinos do país.
Ora, em 1648 o território brasileiro era dominado pelos invasores portugueses que subjugaram os indígenas – os verdadeiros fundadores do Brasil – e traficaram negros à força da África para serem escravizados como mão de obra escrava. Eles, os indígenas e o povo negro, e não as tropas portuguesas ou os militares brasileiros, foram os verdadeiros responsáveis pela construção da economia, da nacionalidade, da identidade, da sociabilidade e da cultura brasileira.
Em 1648 o território brasileiro sequer era um Estado nacional. Era uma colônia portuguesa sem status jurídico de Nação independente e soberana. Não possuía, portanto, um Exército nacional, mas sim tropas portuguesas subordinadas diretamente ao Reino de Portugal.
O Exército só foi oficialmente criado em 1822 – 174 anos depois da Batalha de Guararapes, portanto. A despeito desta realidade factual, contudo, a patética Ordem do Dia deste 19 de abril cita “374 anos de uma existência alicerçada em valores e tradições, e impregnado de um incansável comprometimento com a Nação Brasileira […]”.
Oliveiros Ferreira, que nos anos 1980 descreveu o Partido Militar, se vale da caracterização do escritor francês Alfred de Vigny, de que “o Exército é uma Nação dentro da Nação”, para concluir que o Exército se considera “um corpo distinto da sociedade política, único a cuidar da defesa do Estado, podendo por isso mesmo orientar-se por suas próprias leis”.
Esta ideia-chave é demonstrável na realidade insular, de isolamento e autonomia ilimitada de uma instituição que age como uma verdadeira “Nação [militar] dentro da Nação”, com uma legalidade própria, alheia à Constituição civil e a princípios republicanos e democráticos elementares.
As Forças Armadas possuem um regime exclusivo e privilegiado de pensões e aposentadorias e possui, também, um sistema próprio e ultra ideologizado de educação e formação. Manejam um orçamento anual de 110 bilhões de reais com pouco ou nenhum apreço pela austeridade, publicidade e legalidade.
Possuem, ainda, uma justiça própria e cujo presidente do Superior Tribunal Militar [STM] – general 4 estrelas da ativa do Exército – criminosamente debocha de torturas e assassinatos cometidos nas instalações da ditadura e acobertados por seus antecessores no STM.
Assim como os responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos ficaram impunes, os mandantes e executores de crimes de terrorismo como o atentado à bomba à sede da OAB [1980] e a explosão no Riocentro [1981] ou morreram impunes, como o general Newton Cruz, recentemente, ou seguem vivendo impunemente e gozando de polpudas aposentadorias.
Como escrito anteriormente [31/3, aqui], Forças Armadas comandadas por generais e oficiais sem compromisso com a legalidade, com o profissionalismo e com o dever de obediência à Constituição, não podem ser consideradas instituições de Estado. Porque, neste caso, se convertem em tropas armadas agindo como milícias fardadas que tratam o próprio povo brasileiro como o inimigo a ser combatido e dizimado.
O Brasil está confrontado com o desafio extraordinário de eleger o ex-presidente Lula em outubro próximo para deter e derrotar a escalada fascista-militar e retirar o país do precipício. No contexto de recuperação e de reconstrução da democracia, a reestruturação profissional das Forças Armadas com foco exclusivo na defesa nacional será uma necessidade prioritária e incontornável.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial
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