Por Siro Darlan –
Uma mulher, negra e favelada foi perseguida pelo Juizado da Infância e da Juventude em 1995, porque acolhera em seu barraco na Favela do Jacarezinho 25 crianças e adolescentes.
O titular do Juizado da Infância e da Juventude era o escritor dessa reflexão, que cumpria um mandado de busca e apreensão para recolher as crianças para abrigos públicos. Sorte que apareceram dois empresários, os irmãos Werneck, investidores de ações sociais através do Instituto da Criança. Pessoas que com grande dose de responsabilidade social dedicavam seus empreendimentos a fazer o bem e à solidariedade social.
Os irmãos Werneck socorreram essa mãe social e promoveram a sobrevivência dessa Família Social que progrediu em desenvolvimento e número. Passaram a viver numa casa com dignidade no Rio Cumprido, depois a casa ficou pequena e passaram para um sitio em Jacarepaguá, para finalmente se alojarem em São Gonçalo. Flordelis dos Santos de Souza, cantava seus louvores e progredia socialmente lançando discos um atrás do outro, livro e filme sobre sua história exemplar de acolhimento dos indesejáveis.
A família crescia e se tornava motivo de estudos e orgulho para uma sociedade que trata mal suas crianças abandonando nas ruas, na miséria e na violência. Com Flordelis era diferente, acolhia com amor e solidariedade. Seu amor incompreensível numa sociedade tocada pelo ódio, era única e estranha para ser compreendida. Mas como mulher, preta e favelada ela cometeu um pecado mortal no conjunto da aristocracia escravocrata e racista: saiu do gueto e brilhou. Seu brilho atraiu corvos e invejosos que lhe tentaram como no paraíso com promessas de cargos políticos, que ela aceitou e caiu na armadilha.
Eleita deputada federal com grande votação, passou a trabalhar em Brasília, onde não reside a solidariedade e sim o egoísmo e a inveja. Seu sucesso levou-a ao ocaso, e sua estrela começou a se apagar. Deixou de ser dona de seu destino e devido aos compromissos assumidos, assim como a ascensão ao poder, teve que declinar de seus cuidados com a família, deixou de ter independência e passou o comando de sua vida a assessores e ao marido. Anderson passou por várias experiências com sua “mãe social” ultrapassando a categoria de filho afetivo para marido, de marido, para coordenador de sua vida, “pai social” de seus irmãos e irmãs. Assumiu o comando e dirigia os passo de Flor designando sua agenda e compromissos. De marido passou a Ceo, de chefe a assessor parlamentar, daí a managing.
Essa divisão no comando da família gerou divisões, invejas e os comentários dos “filhos” demonstram que alguns eram preferidos, outro preteridos. Há notícias de abusos, violências familiares, dissenções e inveja entre os membros dessa família, agora com 55 membros das mais variadas diversidades, DNA e experiências de vidas diferentes.
Ora se Caim matou Abel, o que pode se passar dentro de uma família tão diferente com 55 membros?
Finalmente, ocorre o “desastre” e Anderson morre. Inevitável todo tipo de especulação, mas a mais fácil e previsível tornou-se a versão preferencial. A novela precisa ser escrita de modo a tornar o “mordomo o principal suspeito”. Quem é o mordomo dessa história: uma mulher negra, favelada que saiu da “senzala” para ter todo sucesso que não lhe é permitido.
O quadro de racismo estrutural está montado como que um painel da História do Brasil que tornou escravos cidadãos trazidos da África e não se conforma com uma lei de doía artigos que os tornou pessoas livres, mas que não podia estudar, porque a educação lhe foi vedada, não podia comprar terras porque uma lei proibia.
Não podiam ter ascensão social porque deviam ser mantidos nos guetos de miséria e pobreza. Criado o cenário de uma acusação representada por arianos, estudiosos do direito penal nazista para perseguir os indesejáveis. Era esse o cenário do Tribunal do Júri quando fui depor. Uma mulher negra e favelada encolhida, acusa de praticar o mais horrível dos crimes: tirar a vida de seu semelhante e do outro lado uma acusação de colonizadores e para jugar um colégio formado por três homens e quatro mulheres, três deles com menos de trinta anos, sendo quatro brancos e três negros. Se os três negros tiverem noção da história persecutória do colonizador contra os negros o resultado pode surpreender, mas se forem apenas, como é a nossa polícia militar, negros a serviço da causa do colonizador, o resultado já é previsível: 40 chibatas na negra que tentou sair da senzala.
A história se repete.
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ. siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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